Lilith - Morte na Lua Negra
de Felipe Gallindo
I
– O que é isso na sua mão meu amor? – Perguntei curioso para minha namorada, enquanto ela arrumava nossos equipamentos e acessórios para a gravação de mais uma live para o nosso canal “Paisagens Sobrenaturais”. Desta vez, gravaríamos de madrugada no interior do famoso e quase bicentenário cemitério de Santo Amaro, próximo ao centro do Recife.
– Esta é a reprodução de uma placa de terracota muito antiga conhecida como o Relevo de Burney. Ela teve origem na Mesopotâmia nos tempos do rei Hamurabi, aquele que criou o primeiro código de leis escritas. Sempre impressionado com o conhecimento histórico de minha amada continuei perguntando.
– Isso aconteceu há muito tempo?
– Sim! A plaqueta original tem mais ou menos uns mil e oitocentos anos antes de Cristo. Isso quer dizer que ela já tem quase quatro mil anos! – Os olhos dela brilharam quando falou da antiguidade da peça original.
Indaguei mais uma vez.
– E hoje onde está a tal plaqueta das antigas?
– No Museu Britânico – Respondeu de bate-pronto.
– Posso vê-la? – Perguntei estendendo a mão para pegar o estranho souvenir.
Eva tremeu levemente e hesitou por instantes em me passar o estranho objeto.
– Meu amor ! Fique tranquila ! Não quebrarei seu “tesouro!! – Apelei sorrindo.
Ainda um tanto hesitante, Eva me entregou a plaqueta lentamente e observou com um ar inusitadamente severo.
– Eu sei que você não irá quebrá-la. Ela é talhada em carvalho. Mas é que está há muito tempo em minha família. Para nós é uma valiosa relíquia.
Engolindo o sorriso me pus a examinar atentamente a tão preciosa “relíquia” de família.
O estranho artefato tinha entre 50 e 37 centímetros de comprimento e largura por 2 a 3 centímetros de espessura no seu alto relevo. A figura mítica representada era a de uma bela mulher alada inteiramente nua encimada por uma coroa e tendo os seus pés como garras de águia por sobre o dorso de dois pequenos leões deitados placidamente aos seus pés (ou melhor sob suas garras). Ladeando a exótica figura duas corujas com os olhos bem arregalados. Sem pensar muito, perguntei.
– Que diabos é isso que você leva consigo como uma relíquia de família?
– Baby! Take it easy! É só uma reprodução de uma antiga peça do Museu Britânico que minha bisavó comprou em Londres, na década de 1940. Não tem nada de estranho. O nome atual do artefato é “Lilith, a senhora da noite”.
Não fiquei muito convencido com a explicação de Eva, mas preferi não prolongar a discussão e devolvi o esquisito objeto ao que ela prontamente guardou dentro de uma caixa de ébano.
Então retomei a conversa sobre nosso roteiro noturno.
– Ok ! Vamos ver então como será nossa live esta noite no cemitério de Santo Amaro. Você sabe que esta é a primeira vez que venho para a Veneza Brasileira, mas você já esteve aqui anteriormente.
Eva aquiesceu e disse.
– Sim ! Já visitei estas plagas em passados recentes. Tenho alguns amigos aqui que nos ajudarão a entrar de madrugada no velho cemitério.
– Como faremos isso? – Indaguei.
– Já tenho tudo bem articulado, meu amor! Conheço um alto funcionário da prefeitura que administra o cemitério municipal de Santo Amaro. Ele me passou as dicas fundamentais para entrarmos sem sermos percebidos pela segurança e irmos até a capela central daquela cidadela dos mortos para gravarmos nosso vídeo. E depois de tudo sairmos em silêncio e sem sermos notados.
– E como se dará esse esquema tão “perfeito”? – Perguntei com certa ironia.
Eva não titubeou em retrucar.
– Você não me pega, baby! A partir das 18 horas todos os 4 portões são fechados. Ninguém entra. Só os visitantes saem, além, é claro, dos funcionários. A iluminação interna é acesa e uma dupla de vigilantes de moto percorrem as principais avenidas daquela cidade dos mortos. São 4 raios ou avenidas nos sentidos norte, sul, leste e oeste de um cemitério projetado em meados do século XIX no formato quadrangular que se encontram numa capela central em forma octogonal. Tudo sob a inspiração francesa dos Champ Elysees parisienses que se encontram no Arco do Triunfo. Não havia como competir com Eva nas aulas de história. Mesmo assim insisti. – Certo ! Mas como entraremos após os portões fechados ? – Fique frio, baby! Um portão lateral estará aberto para nós à meia-noite em ponto. Dali seguiremos sorrateiramente por escuras vielas sepulcrais até a capela central. Antes que você pergunte, ela também estará com uma porta só aparentemente fechada e poderemos adentrar sem encontrarmos obstáculos. Então poderemos iniciar a gravação do ritual, quer dizer, da live sobrenatural. – Ritual??? – Perguntei espantado. – Não, baby! Me expressei mal. É que vejo nossas lives como um ritual de jornalismo sobrenatural. II Havíamos contratado um motorista com sua van para nos locomovermos pela cidade do Recife durante nossa estadia para a gravação antes de retornarmos para São Paulo. Como ainda teríamos a tarde e a noitinha livres, aproveitamos para circular um pouco pela capital pernambucana. Nos foi recomendado que não andássemos pelo roteiro histórico e religioso dos seculares bairros de Santo Antônio e de São José no centro do Recife devido à violência urbana. Recentemente turistas estrangeiros haviam sido vítimas de assaltos nas ruas em plena luz do dia. Infelizmente um deles havia falecido em decorrência de tal abordagem criminosa. Após termos passado por diversas pontes e termos vislumbrado belas paisagens, dentre elas a cidade de Olinda ao longe num horizonte crepuscular e uma belíssima praça ladeada pelo Palácio do Governo e pelo famoso e mal-assombrado Teatro de Santa Isabel, fomos para o bairro à beira-mar onde o Recife nasceu. O bairro conhecido como Recife Antigo. Depois de andarmos um pouco pelos pontos turísticos do bairro em volta de uma praça circular denominada de Marco Zero, sempre na companhia de nosso motorista que também fazia a função de segurança, nos dirigimos até um dos restaurantes à beira do mar que ficava num antigo galpão do porto do Recife que fora reformado para alojar lugares de lazer gastronômico e etílico. Entre uma Margarita e outra e degustando afrodisíacos casquinhos de caranguejo eu e Eva combinávamos os últimos detalhes para a nossa gravação noturna. Abraçados admirávamos a deslumbrante vista do Atlântico que se espalhava após a linha dos arrecifes e do famoso Parque das Esculturas de Brennand onde despontava um monumental obelisco falo gigantesco desvirginando o oceano segundo seu criador. Após a terceira Margarita quebrei o silêncio. – Eva, por que você escolheu justamente esta noite para gravarmos em um cemitério? – Ela sorriu e se aconchegou ainda mais em meu peito e falou baixinho. – É a noite da lua negra baby! Lua negra. – Lua negra? – Respondi imediatamente.
– Sim! Era assim que os antigos povos do oriente chamavam as noites de lua nova quando o céu era mais negro apenas pontilhado por longínquas estrelas. Nestas noites ainda segundo velhas tradições a primeira mulher – Lilith – reinava soberba e fogosa sobre os filhos de Adão. – E você acredita nestas coisas meu, amor? – Perguntei meio intrigado. Ela sorrindo respondeu. – Pense que os mitos nos falam de verdades e fantasias há muito esquecidas e invisibilizadas pela Ciência. Arquétipos universais e fatos históricos eram narrados numa linguagem mitológica que revelava uma das dimensões primevas da humanidade. Além disso, por hoje termos uma noite sem luar a escuridão será nossa amiga fiel. Como retrucar diante de tanta inteligência e beleza? Afagando seus lindos cachos negros como a noite que já nos envolvia ainda ousei perguntar. – Mas você Eva! Você acredita que existiu uma mulher primeira chamada Lilith? Eva se endireitou na cadeira. Pegando sua delicada taça sorveu o último gole da Margarita rubra e olhando para o infinito do horizonte falou como nunca havia falado antes. – Isso, na verdade, não importa! O que eu sei é que existiram e existem milhões de Lilithis no mundo. Castradas sexualmente, escravizadas, seviciadas, espancadas e assassinados por seus pérfidos parceiros elas gritam perante a eternidade seu brado de libertação e vingança! Nessa Lilith atemporal e multifacetada eu acredito piamente. E a ela eu entregaria com alegria minha vida! – Mas você não é minha, meu amor? – Perguntei já um pouco assustado. Ela sorriu e respondeu. – Sim… E murmurou algo tão baixinho que não compreendi. Mas antes que eu falasse algo Eva retomou a palavra. – Seria preciso fazer uma verdadeira arquelogia histórica e antropológica para rastrearmos as citações ao mito de Lilith nos escritos canônicos e os considerados profanos. A existência de uma primeira mulher anterior a Eva está presente no Talmud hebraico. E num livro popular do povo judeu durante a Idade Média chamado “O Alfabeto de Ben-Sira”. Na Bíblia consta apenas uma breve citação no livro de Isaías que fala de Lilith como uma moradora do deserto e senhora dos ventos da noite. Mas esta citação é apagada das traduções em língua portuguesa. – Por que quiseram apagar a memória deste mito? – Perguntei sinceramente curioso. – A história dela não é conveniente para os monoteísmos machistas e patriarcais. Segundo os relatos míticos, Lilith foi criada por Deus da mesma matéria que Adão e não de sua costela como Eva. Criada para fazer companhia a Adão desde o primeiro momento, ela não se curvou ao seu pretenso domínio. E o primeiro e decisivo confronto foi de caráter sexual. Ela não aceitava ficar embaixo de Adão durante o ato sexual nem de ter que se abrir para ele. Dizia que como eles haviam sido feitos por Deus da mesma matéria não se submeteria a uma posição inferior. Adão não concordou e eles continuaram discutindo até que num dado momento Lilith parou de discutir e pronunciou o inefável nome de Deus. Neste exato instante ela criou asas e voou para fora do Jardim do Éden indo viver no deserto às margens do Mar Vermelho. Deus ainda insistiu enviando 3 anjos para convencê-la a retornar, mas não teve acordo. Ali começou o eterno exílio de Lilith, a senhora da noite, rainha dos ventos e das tempestades. Depois foram milhares de anos sendo demonizada pelo judaísmo, cristianismo e islamismo. – Que viagem!!! – Comentei maravilhado. E continuei. – Mas não seria melhor pedirmos a conta e nos prepararmos para ir ao cemitério? Não podemos perder a hora de nossa live. – Sim! Está chegando nossa hora! Concordou com presteza minha doce Eva. III Eram 23:45 quando o motorista quebrou um longo silêncio dentro da van. – Já posso encostar próximo ao portão? Ao que Eva olhando seu celular respondeu. – Ainda não. Só mais um pouco. Sonolento, eu olhava distraidamente a rua mal iluminada onde ficava o tal portão do cemitério. Rua deserta. Não passava nenhum carro. De repente um pio tenebroso ecoou na noite escura e silenciosa. E outro pio ainda mais hediondo respondeu. Tremi ficando todo arrepiado. Barulho de pequenas asas passando rapidamente sobre a van. Eva prontamente olhou pela janela em direção ao portão do cemitério e disse. – É o sinal! – Sinal? Que sinal foi esse? Aliás, o que foi isso que emitiu tal som pavoroso e passou voando sobre nós? – Falei asperamente. Inesperadamente foi o motorista que respondeu. – Foram duas corujas. E ele deu partida na van nos levando vagarosamente até bem próximo ao portão. Eva então me perguntou. – Tudo certo com o equipamento, baby? – Respondi afirmativamente com a cabeça. Novamente ela perguntou. – Você já tomou a pílula? – Que pílula? – Perguntei na sequência.
– Essas senhor. – E o motorista me ofereceu um frasco com pequenas cápsulas azuis.
Atônito, fiquei parado olhando para Eva sem entender nada. Então ela me tranquilizou. – São estimulantes com cafeína, baby. Para ficarmos bem ligados lá dentro. Ela abriu o frasco e me deu um comprimido. Obedeci mecanicamente e ingeri o estimulante. – Comece a gravar, baby! Vamos apresentar nossa live desta noite da lua negra! Liguei a câmera e foquei no lindo rosto de Eva. Ela então começou a falar. – Boa noite, amigas e amigos do nosso canal “Paisagens sobrenaturais”! Estamos nesta noite da lua negra bem na frente de um dos mais antigos e famosos cemitérios do Brasil para mais uma transmissão ao vivo! Vamos daqui a instantes entrar nessa mansarda dos mortos para tentarmos contato com o outro mundo. Aguardem que já voltaremos! Fazendo um gesto de despedida, encerrei a gravação e descemos da van em direção ao velho portão de metal. Cuidadosamente, Eva tocou no portão e ele se moveu para dentro. Realmente estava aberto! Poderíamos entrar e iniciar a transmissão. Abrimos um pouco o portão e entramos um de cada vez. Primeiro Eva, depois eu. No início, demoramos um pouco para nos acostumarmos com a escuridão. Aí ela sussurrou para mim. – Liga a câmera no modo visão noturna Eu vou conectar o microfone sem fio. Logo em seguida estávamos transmitindo. Então ia apresentando as ruas e vielas escuras do cemitério contando suas mais famosas histórias de mal-assombro. Estava começando a me sentir esquisito. Suando muito apesar da noite fresca e com o coração ficando acelerado. Parece que Eva percebeu meu mal-estar que perguntou. – Você está se sentindo bem, baby? Quer parar a transmissão? – Não amor ! De jeito nenhum ! Vamos em frente! – Respondi falseando a verdade. Ela gostou da resposta e pegando delicadamente minha mão livre foi me guiando até próximo da tal capela central. Enquanto isso, ela continuava a transmissão. – Hoje temos uma noite muito especial! É a noite da segunda lua nova do mês. A noite da lua negra. A noite na qual a primeira mulher, Lilith, pode caminhar novamente sobre a terra e reclamar o que é seu por direito! Ela é a verdadeira rainha da noite! Eu não estava entendendo mais nada. Este discurso não estava no roteiro. A nossa live seria sobre as possíveis aparições sobrenaturais no cemitério, não sobre aquele mito esquisito. Mas não tive tempo de retrucar, pois Eva continuou falando para a câmera e para nosso público que já estava próximo das cem mil pessoas. – Agora entraremos na capela central do cemitério, onde faremos um ritual sagrado de invocação! Vem conosco, vem! Vamos chegar a duzentas mil curtidas nesta noite da lua negra! Eu estava ficando um pouco tonto e lutava para me concentrar na gravação. Não consegui articular minha crítica às últimas palavras de Eva. Que história era essa de invocação? Nós éramos pesquisadores paranormais e não curandeiros ou charlatães!
Mas antes que desse conta de mim já estávamos no interior da capela. Ela não estava na escuridão, mas iluminada por mil velas negras. Antes que percebesse Eva, havia tirado a câmera de minha mão e colocado-a sobre um pedestal de mármore bem em frente a uma grande mesa mortuária de mármore carrar no centro da capela. Desconcertado, não tive reação, ainda mais depois da fala de Eva olhando para a câmera. – Meus amores ! Daqui a pouco vocês verão a invocação de Lilith através de sua oferenda! Vi então quando Eva se despiu e ficando nua me conduziu a fria mesa mortuária. Lá ela também despiu. E me deitou sobre a mesa. Foi só então que percebi como estava incrivelmente excitado. Não compreendia como, mas estava! Eva então foi até sua mochila e retirou aquela exótica plaqueta. E também pegou um longo punhal de prata com um cabo de madrepérola. Vi então, paralisado de terror, quando Eva colocou a plaqueta sobre meu peito nu e subiu sobre mim olhando para a câmera e falando. – Como Lilith, a rainha da noite eu subjugo este homem ao meu prazer! Como Lilith no exílio eterno de Adão eu ficarei na posição superior! Senti seus movimentos ao nos tornarmos um só ser. Olhei para a tela lateral da filmadora e estávamos chegando a um milhão de visualizações! Estava ficando louco de prazer ou louco de verdade? Dos cantos escuros da capela surgiam sombras disformes que tremulavam na luz de miríades de negras velas. De repente, os movimentos de Eva ficaram mais rápidos e sua voz mudou, parecendo uma invocação nefanda vinda de suas úmidas entranhas. – Eu te invoco, rainha da noite!
Primeira mulher de Adão!
Tu que ousaste negar seu prazer obsceno!
Tu que disseste “não” ao infame Deus dominador!
Tu que voaste para fora do Jardim do Éden!
Tu que riu das súplicas dos três anjos covardes!
Glória a ti nas alturas dos infernos!!!!! Neste momento, naquele vai e vem alucinado, julguei ouvir um coro vindo das sombras ecoando as blasfêmias gritadas. – Glória a ti nas alturas dos infernos!!!! Cada vez mais rápido Eva se mexia e gritava. – Vinde a mim!
Devoradora de recém-nascidos!
Mãe de cem filhos por dia!
Amante de mil demônios!
Dona de todos os sêmens desperdiçados!
Senhora do deserto!
Rainha dos ventoes e das tempestades!
Rainha da noite !
Amante de Adão!
Amante de Deus!!!! – Glória a ti nas alturas dos infernos!!!!!! – Aaaaaahhhhhhhh!!!!!!! Estava consumado. No mesmo instante que atingimos o êxtase, sua vagina decepou meu pênis e a plaqueta maldita afundou com o peso de uma tonelada no meu peito… Antes de fechar meus olhos para sempre, ainda vislumbrei a cena surreal e blasfema!
Eva Lilith estava nua sobre o dorso de dois leões com seus pés de garras tendo ao seu lado aquelas duas malditas corujas! Coroada, ela gargalhava cercada por uma multidão infinita de sombras...
CAL - Comissão de Autores Literários
Suspense Music
Intérprete:
Gabriel Andrade Produções
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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