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Antologia Lendas Urbanas: E se forem reais? - 2x01 (Season Premiere)

Conto de Jessica Bittencourt
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Sinopse: Clarice é fascinada por lendas e sempre visita um cemitério famoso na cidade. Juntamente com seus amigos que moram num convento próximo, resolve jogar o tabuleiro ouija e coisas estranhas acontecem.

2x01 - Os Noviços, a Garota e a Lenda
de Jessica Bittencourt


    
       
Clarice pegou firmemente entre suas mãos o livro de Isaac Grinberg falando sobre as lendas da cidade. Cada uma das historietas tinha seus atrativos e em muitas delas era possível imaginar as cenas fielmente se passando nos diferentes locais da cidade – além disso, ter nascido e continuar vivendo ali a fazia transitar mentalmente sem dificuldades entre as ruas que costuravam o mapa das lendas. Àquela altura, lia sobre a menininha inocente que morreu por causa do preconceito de sua mãe que, ao fechar as portas devido a procissão do santo negro, São Benedito, distraiu a filha com pipoca. Como que por vingança do além, do desconhecido, a pequena acabou falecendo, engasgada pelo milho estourado. Em sua lápide, houve a tentativa de refazerem a imagem da uma jovem, pequena e angelical, segurando flores, porém, todos viam claramente, ao invés das flores, as malditas pipocas.

        Findou a história e, em seguida, resolveu abrir o seu notebook para conversar com alguns amigos que estavam distantes, especialmente com o seu namorado, que não aparecia há dias e a deixava angustiada pela falta de notícias. Nesse momento, seu chá estava ao lado da escrivaninha para que tentasse acalmar seus ânimos interiores um pouco e para que fosse também capaz disfarçar a fome, já que a comida nenhuma conseguia descer pela sua garganta, “tal a menininha da pipoca”, pensava sem dar asas ao pavor. No notebook apareceu a notificação de Victor, um amigo não tão próximo, com o dobro de sua idade, mais ou menos, que perguntava o motivo de não estar tão bem, depois de ter recebido suas mensagens. “Vamos nos encontrar amanhã, tenho que te dizer algumas coisas...”, ele escreveu na última linha.

        Quando seu senso de humor estava em baixa, ela preferia a reclusão. Ao ler o convite, não sabia se seria exatamente uma boa ideia sair de casa, pois, como ela se conhecia de uma vida toda, tinha certeza de que demoraria muito tempo para melhorar o humor, ao contrário de outras pessoas que saem e instantaneamente ficam plenas. Victor era um velho certamente com mais de sessenta anos, conhecido naquela região como um bruxo, mesmo sem pertencer a nenhum grupo específico como, por exemplo, wicca. Tinha os olhos claros e barba branca (enorme, que ia até a metade do peito), dando-lhe a aparência de bruxos e magos famosos, que só se viam em filmes. Clarice não ligava tanto para a aparência das pessoas, mas, no seu íntimo, lhe agradavam suas feições de bruxo. Depois de se convencer pelo mistério das palavras de Victor, esperou-o, como combinado, em uma praça. Mal se sentou no banco quente e foi surpreendida com o capacete, jogado propositalmente em colo. Olhou atentamente para quem o tinha lançado e observou o velho amigo na moto ligada, esperando que ela fosse ágil, colocando o capacete e ocupando a garupa ao mesmo tempo.

        – Vamos! Temos que ir num lugar. – disse ele, apressado. 

       – Victor, você sabe que eu detesto moto... e você corre demais.

        A brisa mostrava que o clima do ambiente, embora triste e calado, estava confortável sob aquele imenso calor de verão. Naquele momento, o silêncio pairava, exceto pelos passos das pessoas que caminhavam rumo a algum enterro que acontecia nas proximidades. 

        – Fique em silêncio. Vamos visitar uma alma agora. Aliás, a alma dele ainda está aqui e não deu um único para frente sequer. Você poderá senti-lo se fechar os olhos... – disse Victor, em tom um tanto professoral.

        Ela ficou em silêncio, cerrou os olhos, sentiu o seu corpo ir ficando imóvel por conta própria e, ao abrir os olhos repentinamente, notou os pelos dos braços arrepiarem.

        – Não era uma menininha pequena? – indagou pensando na lenda.

        – Eles não têm idade e nem sexo. Agora ele está com você...

        Naquela visita misteriosa, Victor revelou algo que a deixou intrigada e pensando por meses naquela criança, sem sexo, sem idade, com identidade incompreensível e que agora, a princípio, estaria ao seu lado. “De que jeito?”, se indagava em algumas situações. Ao longo desse período extenso de reflexão e enigmas, recebeu a notícia do falecimento do amigo bruxo. Assustou-se, incrédula, por alguns minutos, mas, mesmo assim, não ousou desmarcar seus compromissos no decorrer do dia para sentir o luto.

        Naquele dia, estava prevista uma reunião com seus amigos que moravam no enorme casarão histórico. Todos conheciam suas entradas e saídas alternativas, mas, ao contrário do que se pensa de um convento, naquele lugar, pouco importavam os que fugiam à noite ou os que faziam bagunça. Dava trabalho demais essa demanda e, por essa razão, todos se acostumaram com a ideia de ter uma rotina alternativa. Para os jovens, era certo que jamais alguém desconfiava das fugas, às vezes diurnas, às vezes noturnas. Para os religiosos, era certo que todos sabiam que, ao fundo, havia uma necessidade de permitir a liberdade fora dos votos e das orações. Os equívocos por lá eram maiores do que as crenças.

        – Vocês virão? Conseguirão fugir do convento mesmo por três horas pelo menos? Eu já comprei algumas bebidas... e tragam a ouija. Vou aguardar no túmulo de que sempre ficamos perto. – Clarice questionou os amigos, mantendo-se positiva com relação às aventuras no cemitério.

        Os amigos eram quatro noviços, que moravam no convento mais antigo da cidade, conhecido por todos. Assim como todo casarão com leve aspecto de patrimônio tombado, o convento era carregado de lendas que transgrediam os noviços de diferentes gerações. Um deles era Jean, que chegou segurando o ouija, um tipo de tabuleiro com letras, números e um indicador em formato de flecha, usado em rituais espirituais. Tobias, o segundo, segurava a vela e o isqueiro. Thomas e Henrique, os últimos, estavam lá a contragosto, de braços cruzados, expressando arrependimento e reclamando que não queriam estar por ali.

        Um pouco diferente do que se vê em filmes clássicos de ouija, esse tabuleiro era desenhado na madeira, envernizado e com algumas decorações incluindo um pentagrama. Como previa o ritual, a pequena vela já estava no seu local juntamente com um copo d’água. Um dos moços colocou o objeto com cuidado em cima de um túmulo, o que deixou o restante dos meninos com medo, imaginando que seriam sendo descobertos por alguém da igreja e fantasiando que carregariam aquelas más energias desencadeadas de um mundo espiritual desconhecido. No ápice do medo, pensavam que com aquele ato poderiam, inclusive, ir para o inferno quando tivessem que prestar contas com o Deus que acreditavam existir e ser supremo.

        Thomas pediu para ficar de fora e recebeu um olhar reprovador de todos ao mesmo tempo:

        – Você é quem sabe, mas antes disso quero te informar que quem está assistindo tudo de fora e não participa é pior. – disse Jean.

        “Deixe esse idiota aí e vamos começar logo antes que vocês voltem para aquele convento que parece mais uma prisão”, pensou Clarice ao ver que as bebidas poderiam ficar ruins logo e o tempo passar rápido a ponto de não servir para cumprir o rito. Resolveu, por isso, tomar a iniciativa logo:

        – Alguém está querendo se comunicar? – perguntou de olhos fechados, esperando que algum espírito vagante quisessem fazer contato. “SIM”, apontou o indicador no tabuleiro. Algumas respostas eram embaraçosas demais para serem interpretadas, outras, no entanto, tinham sentido bem claro ao grupo todo.

        Segundo conseguiram mapear, encontravam-se entre eles uma moça e um homem. Queriam algo que talvez não tivessem conseguido em vida. Disseram que não haviam conseguido sair dali pela ambição que tinham. Para conseguirem o que queriam, achavam que precisariam dos vivos totalmente, nem que fosse para ameaçá-los, e isso foi o que aconteceu. Clarice e Jean não sentiram nenhum medo até que olharam para o túmulo da criança inocente coberto de doces e um detalhe que nunca haviam visto antes: sangue e vísceras que não conseguiam identificar se eram humanas ou de algum animal servido de oferenda para alguma divindade ou entidade.

        Sendo uma coisa ou outra, por que estaria ali? Por segurança, chamaram os funcionários do cemitério para dar uma conferida, mas, ao chegarem até o local, não havia mais nada ali. Como estariam loucos? Teria sido uma alucinação, e coletiva ainda por cima? Não sentiram nenhum medo naquele lugar desde o início que se reuniram, até mesmo com o tabuleiro a ponto de criar uma histeria coletiva. Clarice, para retomar a sobriedade dos sentidos, pediu licença ao grupo e foi ao banheiro para lavar o rosto, recompor-se e evitar qualquer tipo de ilusão futura. Abriu a torneira e, quando a água tocou os seus dedos e, por último, seu rosto, olhou-se no espelho como de costume.

        Em letras garrafais, estava escrito no espelho “VOCÊ ME CHAMOU NOVAMENTE E EU VIM, MAMÃE.”, frase que não estava lá quando adentrou o banheiro para retomar a consciência. Olhou por minutos em silêncio e demorou mais do que o esperado, ao ponto de deixar os amigos preocupados, ponderando ir dar uma olhada para ver se algo tinha acontecido. Alguns minutos depois, Clarice apareceu com o rosto aparentando animação e sarcasmo, feições que desapareceram rapidamente dando o lugar à face de preocupação.

        – Eu não posso estar louca, mas devemos todos nos cuidar. – falou depois de contar o que tinha lido no banheiro. Ninguém quis conferir. Todos preferiram retornar, prudentes, e retomar as atividades cotidianas que os esperavam, mesmo que fosse, para os rapazes, rezar.

        Passado um mês da aventura espiritual no cemitério, soube-se que desencadearam nos rapazes algumas doenças durante o período de reclusão. Concomitantemente, Clarice começou a evitar espelhos, passou um tempo sozinha e mandou que colocassem uma estátua de São Benedito em seu quarto, no altar pagão que cultivava há quase um ano, período em que iniciou na bruxaria.

        – São Benedito, me perdoe por aquela vez. Não deixem que me atormentem. Não gosto desses meus ancestrais, livre-os do meu caminho. – ela falava em voz alta de vez em quando, depois de fazer mil associações sobre as alucinações que pareciam reais.

São Benedito estava ali há tempo. Clarice já havia se acostumado com a imagem a ponto de nem notá-la mais. Em um domingo iluminado pelo sol e tomado de paz, quando já tinha esquecido inclusive das angústias que acabou levando do cemitério para casa consigo, escutou alguns barulhos de vidro quebrando no lado de fora. Saiu para verificar e encontrou nada apenas que o jardim mais lindo do que nunca.

        Sentiu-se bem e aliviada. O bem-estar era tanto que parecia, inclusive, ter ficado mais jovem, pois aqueles dias pesados que prejudicavam seu sono pareciam ter efeito envelhecedor. Movendo-se com alegria, de um lado para o outro, sem preocupações, sentiu um cheiro de doce no hall, o que a deixou melhor ainda. Talvez Margarida, a diarista, estivesse cozinhando algo para agradá-la, já que havia uma proximidade muito amigável e filial entre as duas.

        Procurou encontrar o motivo do cheiro doce, mesmo depois de perceber que não havia ninguém na cozinha e nem na casa toda. Lembrou-se de que não era o dia da mulher em que Margarida estava pela casa. Subiu as escadas, foi até o quarto, sentou-se na cama e observou formigas amontoadas simetricamente em algumas partes do chão. Olhou com mais atenção e estremeceu quando notou as inúmeras formigas formando no chão a frase “MAMÃE, MINHA PIPOCA ESTÁ PRONTA?”. Desfaleceu na sua cama por longas horas do belíssimo dia. Somente São Benedito permaneceu sensato e contemplou os feixes dos raios de sol do alto de seu altar pagão.


Conto escrito por
Jessica Bittencourt

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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