4x10 - Lupercália
de Vladimir Ferrari
Os olhos. Na escuridão rompida apenas pelos tubos de neon ao redor do balcão, o olhar da garota — de soslaio, apreciativo e cheio de segundas intenções — despertou-o. Hermes estava quieto, apreciando o sabor do whisky, preocupado apenas com aquele leve ardor do álcool entre as gengivas. Escancarou as portas de seu raciocínio ao paladar, de modo a entorpecer-se e não se permitir às lembranças de Eva virem lhe açoitar, prendendo-o num carrossel de remorso e tristeza. Mas os olhos da garota o fisgaram.
Ela passou ao longe, indo em direção ao banheiro. Jogou os cabelos negros e lisos sobre o ombros, e disparou o olhar matador para o pensativo, desligado e solitário macho sentado diante do balcão. Um olhar de predador identificando a presa. Vaidosa, havia circundado os cílios com o lápis na medida correta, vestindo a íris com lentes coloridas de um verde insidioso e artificial, servindo bem ao propósito de atrair a atenção para seu belo rosto. Usava roupas vermelhas, contrastando com a pele muito branca.
Hermes pressentiu o dito olhar. Assimilou-o, sem, no entanto, desviar o foco do copo sobre o lábio inferior. Observava as pedras de gelo no fundo. Mantinha-se imóvel, como se aguardasse a glote fazer o trabalho de esvaziar a boca, deixando-a pronta para o próximo gole. A visão periférica captou o giro leve da cabeça dela e até mesmo o suave entreabrir dos lábios rosados. Mágica. Tal e qual a visão do seu mundo na tela de cinema fosse direcionada para aquele rosto.
Ela seguiu seu caminho e ele fechou os olhos, apreciando o restante do sabor da bebida desaparecendo na saliva. Pousou o copo sobre o balcão e baixou o queixo até encostá-lo no peito. Tentava agarrar-se ao restante daquela sensação de desapego de sua realidade. Desejava esquecer o passado recente. Não queria sucumbir à memória da última discussão, da troca de insultos, da percepção do arrependimento no seu agora. Viriam outros, lá adiante. Quando não existisse mais saída e tudo se limitasse às lembranças. Pensou nisso a caminho daquele bar. O arrependimento e suas facetas.
— Somos movidos a pensar assim - dizia para si mesmo. Sobre avaliar sempre nossas escolhas. Pesamos tudo na conta da paixão, do tesão avassalador. Sua ação opressiva nos empurra para as loucuras, sem nenhum senso de limites ou juízo. Vestimo-nos de remorso para justificar nossa insanidade diante de uma paixão, quando ela adoece ou termina.
Hermes sabia que o desgosto deixaria de ser um sintoma de momento, para transformar-se em um companheiro constante no futuro, pescando memórias e assombrando seus dias. Por isso, entregava-se ao fiel companheiro dos iludidos, dos artistas apaixonados, dos boêmios e dos desvalidos: o whisky.
— Não é no fundo do copo que se esconde, pode apostar nisso, Hermes. - Ele pensava.
O perfume era inebriante. Não precisou abrir os olhos para saber quem era a voz, e quem se sentara ao seu lado. Mas o fez, mesmo assim. O macho primitivo, movido a testosterona, despertou. Girou o rosto na direção da voz, ainda no meio daquela frase. Para surpresa dele, a moça segurou firme na beirada do balcão e inclinou-se para olhar algo nas suas costas e completar:
— É seu nome, certo? Não me lembro de o Sírio-Libanês ter um pivô chamado Hermes.
Reconheceu minha camisa! - pensou. Quis assentir com um leve movimento de cabeça, quanto ao nome, mas viu-se obrigado a interromper a ação e sorrir. A camisa personalizada foi um presente de Eva. A moça sorriu de volta e Hermes percebeu outro detalhe encantador naquele rosto: uma diminuta fresta entre os incisivos superiores. Havia trocado o batom. Os lábios, agora bem vermelhos, emolduravam o sorriso luminoso. Algo naquela boca fez suas pupilas dilatarem. Os olhos permaneciam ali, verdes, espetaculares, com as escleróticas muito limpas. Sobrancelhas grossas, naturais. Parecia uma Cleópatra. Ou até mais misteriosa e sedutora, como uma fada ou uma bruxa saída de uma festa pagã, pronta a devorar o escolhido. Absolutamente hipnótica.
— Sou Lílian, e atesto que seu caso está para um recomeço. Lhe ajudarei com isso.
Hermes abriu ainda mais o sorriso e por um instante se admirou quando ouviu a palavra “recomeço”. Passeou pela imagem dela, apreciando o cabelo, a parte visível de seu pescoço e o decote comportado da camiseta, sob a jaqueta vermelha. Admirou os ombros, o porte físico. Escorreu seu olhar pela silhueta, até conferir os sapatos enroscados no apoio da banqueta. Deveria ter uns vinte centímetros a menos, que ele. Transpirava uma sensualidade inteligente, completamente oposta à de Eva.
— É sua proposta? Ficarmos juntos? — disse ele, torcendo as sobrancelhas para evidenciar o tom de ironia.
— Creio muito nos desígnios de minhas visões. O número trinta e três estava claro em minha mente quando entrei no banho nesse começo de noite. É uma época especial, e esta noite é especial. Lupercália, já ouviu falar?
Ele balançou a cabeça de leve, mostrando-se ignorante ao assunto. Passou a mão pelo próprio tórax, onde também havia o número 33. Sorriu olhando dentro dos olhos dela. Girou o corpo e pediu outra dose ao barman.
— Você bebe algo, Lili?
Ela abriu os olhos admirada. Sua fala não se acentuou no segundo “i”, como sempre. Não soava como, por exemplo, “Lilia”. Soava como “Lilith”. Cerrou ligeiramente os olhos e desenhou um sorriso sacana nos lábios. Hermes explicou-se e espantou-a mais ainda:
— Eu sei! — disse sorrindo — É que é um tanto surreal ser chutado por uma Eva, e envolver-se com uma Lilian, ou Lilith, a outra mulher de Adão, né?
Os olhares se sustentaram por um momento. Os feromônios da paixão flutuam naquele diminuto espaço entre os dois. Então, ela escorregou os olhos verdes para a boca dele, admirando por um milésimo de segundo os lábios em meio a barba rala e descuidada. Foi menos que um piscar. Mordeu o lábio inferior e avançou. Apenas a ponta da língua tocou nos dentes de Hermes. Foi o suficiente para fisgá-lo. Quando afastou o rosto um pouco, jogando conforme as regras da sedução, ele avançou. Espetou-se naquele anzol. Parvo. A mão correu para a cintura, mas suas bocas se separaram abruptamente, pois a moça o empurrou sutil e convincente. Sorriram.
— É químico, não é? — disse — Uma loucura, essa atração repentina. Temos de ir com calma, não acha?
Ele sorriu levando a mão ao queixo, e apoiando o cotovelo no balcão. Semicerrou os olhos admirando-a mexer no cabelo, como se fosse amarrá-lo em um rabo de cavalo. Lilian se empertigou e soprou o ar, se recompondo. Mas no instante seguinte, colocou um dos braços sobre o ombro de Hermes, imitando sua pose com o cotovelo e o rosto apoiado. Rostos muitos próximos e olhos nos olhos. As bocas se uniram outra vez, sobre o balcão, colando os lábios num crescente de volúpia.
Lilian o fez sentar no sofá e foi até a cozinha, voltando com uma taça grande de vinho. Depositou-a sobre a mesa de centro e retirou a blusa vermelha, dobrando-a sobre o braço da poltrona. Depois ajoelhou-se sobre o colo dele, envolvendo sua cabeça em um abraço, enquanto beijava-o com voracidade. As mãos de Hermes correram dos joelhos até as coxas, alisando o bumbum e subindo pelas costas, por baixo da malha branca, enroscando os dedos e puxando-a para cima. Ela se desvencilhou outra vez, impedindo-o de prosseguir com sua intenção.
— Calma! Você pode me despir lá dentro, no quarto. Primeiro, iremos beber vinho ritual.
Tirou as mãos das costas dela, e abandonou-as comportadas nas coxas. Lilian torceu o corpo e trouxe a taça de vinho com as duas mãos, até o meio deles. Bebeu um pequeno gole e abaixou a cabeça, fechando os olhos por um instante. Hermes achou engraçado a história de um ritual. Lilian explicou:
— A bênção do vinho é importante, em rituais de recomeço.
Hermes não soube dizer se as quatro doses de whisky com estômago vazio tinham lhe afetado o discernimento, mas o riso veio fácil e achou uma tolice muito engraçada aquele “joguinho”. As palavras, carícias e emoções iriam terminar levando-os para a cama. Mas, resolveu não atrapalhar e fazer as vontades da garota. Lilian permanecia de cabeça baixa, com os lábios à beirada da taça.
— Você já ouviu falar de um fenômeno chamado de Lua Negra, Hermes? Quando os ciclos da lua se sucedem de modo a termos duas luas novas no mesmo mês, a segunda é chamada de Lua Negra, sabia? — O tom era professoral e ela girava a taça lentamente, como se misturando o líquido, com os olhos fixos nos dele. Havia retirado as lentes, e o par de íris negras o hipnotizava. — É o momento ideal para a renovação. Você é um afortunado por romper seu relacionamento com Eva sob essa Lua Negra.
— Eu te falei de Eva? — indagou ele, meio aturdido.
Ergueu a taça até o alto, como se a oferecesse aos céus, e Hermes baixou os olhos para os mamilos intumescidos sob a blusa. Como mágica, ao baixar a taça, as luzes se reduziram. A surpresa fez um arrepio correr pela espinha de Hermes. Lilian ordenou:
— Beba agora!
Mais uma vez a mente o traiu e deixou-se levar pelo entendimento de tudo acontecer por culpa da bebida. Sorveu o vinho, e deixou-o por um momento na boca antes de engolir, saboreando. O gosto era forte, adocicado até. Ela insistiu e o incentivou. Tomou outro gole e, dessa vez, a quantidade de líquido que desceu pela garganta foi maior. Um calor subiu pelo esôfago e se espalhou em seu peito. Fechou os olhos. Deixou-se ao sabor dos acontecimentos, afastando quaisquer resistências. Até as insinuadas, nas profundezas de seu juízo. Eva estava devidamente sepultada e apenas a mulher diante dele, importava. Desejava-a e se submeteria a todas as ordens para possuí-la. A taça voltou para a mesa e Hermes a abraçou, forçando-a a deitar-se no sofá. Despejou seu peso de leve sobre o corpo dela, enquanto se uniam em um beijo cheio de fome. A mão rodeou a cintura e subia pela barriga em direção ao seio, quando, outra vez, ela o interrompeu com um movimento de perna. Hermes desabou no tapete, surpreso pela força da ação da moça.
Sua visão girou, e a sala pareceu seguir o movimento. Os cabelos dela emolduravam o rosto pálido, os olhos brilhavam e a boca parecia vermelha demais. As mãos dela sobre seu tórax, os joelhos ao redor de sua cintura o imobilizaram, de certa maneira. A imagem ao redor do rosto dela se modificou, e as cores e formas dançavam, como uma alucinação.
Ela arrancou sua calça e abaixou-se. As imagens continuavam dançando diante de seus olhos, e pouco importava o que os outros sentidos estivessem captando. Estava viajando. Só se importou com o tato, ao ver o rosto dela invadindo aquele arco-íris psicodélico, com um sorriso escancarado de prazer. Jogou os cabelos para trás e ajudou-o a penetrá-la. O efeito visual dos cabelos lisos girando sobre a cabeça de Lilian o deixaram extasiado. O orgasmo não demorou e foi muito forte. Pareceu sugar todas as suas forças num instante. Sentiu-se jogado em um precipício, com o corpo solto no ar, sem controle ou gravidade para o detê-lo na queda.
Eva chorou boa parte da madrugada. Quando a discussão acabou, foi para a casa da irmã. Contentou-se em tomar um banho longo, alimentar-se e dormir. Despertou no meio da noite, por conta de um pesadelo. No sonho, passeava com Hermes pelas alamedas do shopping e, sem aviso, ele a empurrou e deitou-a no solo. Rasgou suas roupas, e tudo indicava que iria possuí-la ali mesmo, em meio ao público. Voltou os olhos, submissa, para lhe ajudar a tirar as calças e a imagem mudou. Um enorme lobo cravava os dentes em seu ventre e, entre o sangue, as vísceras e a boca daquela terrível mandíbula, pôde ver a si própria de braços estendidos, implorando clemência, como se um redemoinho a tragasse para a morte. Despertou assustada com um grito abafado. Desvencilhou-se do lençol, enojada pelos ecos do sonho. As lágrimas vieram na sequência e não cessaram até o amanhecer.
Seus olhos estavam inchados, escondidos atrás das lentes escuras dos óculos. Sua cabeça se movia atrás do volante do carro, procurando uma pista de onde Hermes poderia ter passado a noite. Intencionava pegar algumas de suas coisas, e tinha se preparado para outra discussão, mas encontrou o apartamento vazio. O porteiro informou que ele saíra logo depois dela, e não havia retornado. Ela quis não se importar, mas a curiosidade a venceu. Rodou pelo circuito de bares, e não viu o carro de Hermes. Preparava-se para voltar para a casa da irmã, quando pareceu reconhecer a frente do Jaguar, estacionado em uma viela.
***
Ele abriu os olhos diante dos cabelos negros de Lilian, quando a claridade da manhã penetrava pelas frestas da veneziana. Não se moveu de imediato. Estava assombrado com sua audição. Podia ouvir claramente os ruídos do lado externo, além da janela. Pássaros piando ao longe, e o vento soprando nas folhas das árvores da praça, do outro lado da rua. Ouviu o tec-tec das unhas de um cachorro no passeio, e o ruído do focinho dele, enxergando o mundo. Ecos de bêbados voltando para suas casas, após outra noite de carnaval, a léguas dali. Um receio surgiu em seu coração. Como pode? — pensou. Ouviu a respiração pesada de Lilian, e como os líquidos fluíam dentro do corpo dela.
Havia algo muito diferente ali. Soava como um alerta para ele. Um calor estranho o atingia, o amedrontava e o orgulhava. Tudo num mesmo sentir. Surpreso, percebeu do que se tratava: um embrião. Meu Deus, como consigo saber disso? Inspirou fundo, como em um suspiro, e todos os perfumes e odores pareceram invadir seu cérebro em uma só golfada de ar. Como se fosse atingido por um sem número de agulhas, sentiu o choque de compreender cada um daqueles cheiros. Ergueu a mão para tocar o cabelo dela, clamando por ajuda, e o medo lhe atingiu como um soco na boca do estômago.
Sua mão estava envolta em pelos negros, os dedos tinham se alongado e as unhas estavam pontiagudas, como uma garra animal. Recuou, temendo machucar a garota. Emitiu um ruído estranho. A intenção e o comando do lobo parietal foi emitir um “ah”, de assustado e admirado, mas o que se ouviu foi um um grunhido. Lilian virou-se para ele. Viu-o no momento em que ergueu as mãos diante do rosto e reparou, com olhos enviesados, na ponta do próprio focinho. O medo atingiu Hermes como uma guilhotina. Ofegou em desespero, quando Lilian se aproximou e o abraçou. O susto com o contato lhe tirou o ar, o fazendo perder os sentidos.
***
Quando despertou, ainda estava entre os lençóis e ergueu as mãos diante do rosto, temendo pelo pior. Seus dedos estavam ali, humanos e normais. Passou-as pelo rosto, testando o formato do nariz, dos lábios e a barba por fazer. O alívio o fez sorrir.
— Foi apenas um sonho, graças a Deus!
Um riso fraco, como uma soprada nasal e jocosa, atingiu seus ouvidos. Num canto mais escuro do quarto, Lilian sentava-se em uma cadeira de vime de espaldar alto. Envolta em um tecido vermelho e transparente, uma das pernas encolhida sobre o assento, como se tapando o sexo. O joelho servia de apoio para o braço esticado que segurava uma xícara vazia, enroscada no indicador.
— Não foi sonho, Hermes. Eu lhe avisei sobre o recomeço, não é?
Ele se ergueu, apoiando as costas na cabeceira, e conferiu o restante do corpo. Um ardor repentino em sua virilha chamou sua atenção. Cortes na pele, numa forma circular. Afastou o lençol e tocou de leve com a ponta dos dedos. Lilian continuou:
— Você foi marcado. Disse que dou muito valor aos desígnios. Com o passar do tempo, você irá esquecer-se de sua vida pregressa. Todo o sofrimento será posto de lado, e outro Hermes nascerá dessa sua casca.
— Eu....
Hermes tentava digerir aquela quantidade de informações. As sensações, cheiros e ruídos estavam todos ali. Tudo ao mesmo tempo, agora! — pensou num relance. Ela não o deixou falar.
— Sei que é muita coisa para entender de uma só vez. Mas, aos poucos, você se acostuma. O lobo agora habita em você, e irá lhe acompanhar durante a transformação, no seu novo ser. Não tema. Você não sairá matando pessoas para saciar sua fome. Você não se transformará em um lobo. Deve ficar aqui, neste quarto, por algum tempo. Eva está na esquina e está pensando em descer do carro e vir até aqui. Pode sentí-la? O cheiro dela está no ar. Ouça o coração dela apertado, cheio de dúvidas…
O terror emudecia Hermes. Conforme Lilian falava, as sensações se sobressaiam e a compreensão lhe saltava aos olhos. Através do olfato e da audição, podia “enxergar” Eva, do lado de fora da casa, em dúvida.
— Deixe-a tocar a campainha. Não iremos atender, não é?
O que lhe acontecera? Quem era aquela mulher? Viu-a se erguer da cadeira e avançar pela cama. Um perfume suplantou os demais e dominou seus sentidos, por completo. Sua mente afastou todos os temores e viu-se refém dos desejos dela, outra vez. Com um gesto, ela afastou as vestes e surgiu bela, nua e poderosa diante dele. Procurou sua boca e ele ofereceu-se, impotente. Um vislumbre da noite anterior surgiu entre aquele desvario de paixão: o momento em que, por brincadeira, ele a comparou a Lilith.
CAL - Comissão de Autores Literários
Suspense Music
Intérprete:
Gabriel Andrade Produções
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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