O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 01
O
inverno paulistano de 2003 está irremediavelmente inquietante. O relógio
luminoso, no centro da avenida, marca 22 horas e 09 graus. O vento frio levanta
a poeira, invade as casas, balança as árvores... As folhas, desatadas dos
galhos voam pelo alto; parecem pipas desorientadas em mãos de garotos pequenos.
Não demora, a garoa cai, transforma a poeira em barro, causando a comoção em
dois idosos, que sentados à cama, veem pelas frestas da janela do 3º andar de
um edifício destratado, no centro velho da cidade, o mau tempo se levantar.
Cobertos por um fino manto de lã, relembram o passado, época em que o bonde
cortava a cidade, as meninas pulavam amarelinha e as bicicletas concorriam, com
os poucos carros, as avenidas.
Ao longe, uma família de migrantes, recém-chegada
do Nordeste, abriga-se debaixo de caixas de papelão aos pés de um viaduto. O
bebê chora de fome no colo da mãe, que nada pode fazer se não suplicar por
misericórdia aos poucos que passam, que acostumados àquela cena, ignoram o
fato. O pai, cuja barba atinge o peito, olha para a criança e apenas lamenta
pela decisão de ter trocado o interior pela cidade grande na falsa esperança de
uma vida melhor. Consegue reunir algumas poucas madeiras de galhos envelhecidos, taca-lhes fogo, precisam se aquecer; a história deles, já cheia de
desgraças, poderá receber a sentença final se não conseguirem sobreviver à
noite terrível que já cai sobre a cidade que não dorme.
Por eles passa o belo carro importado. Nele está
Ricardo Médici, herdeiro de uma das maiores fortunas da capital, com o celular
em mãos; aparenta uma felicidade um pouco exacerbada! Talvez esteja feliz,
porque carrega nas veias a seiva da adolescência, o combustível essencial à
explosão da libido.
O
carro estaciona em frente a uma badalada casa de shows, nos Jardins. Ricardo
desce, olha para todos os lados e suspira. Está diante do palco da elite
paulistana. Ao ensaiar subir a escadaria, ouve alguém chamá-lo. Ao virar-se, é
agarrado com força por uma linda garota, de uns 18 anos, que o beija com uma
vulgaridade voraz. Ele não mede esforços para retribuir o carinho, ainda que o
fato constranja alguns dos convidados.
A
festa em homenagem aos 22 anos da filha de um dos maiores empresários da
siderurgia nacional corre solta. Vestidos exclusivos de grandes nomes da
alta-costura europeia desfilam pelo tapete vermelho e espelham o poder de uma
classe que só enxerga a si mesma.
Ricardo
dança o tempo todo, bebe o que pode, extravasa suas emoções e, lá mesmo, em
meio aos outros pares, tal como se estivesse em um bacanal¹, devora em beijos
depravados a jovem mênade², sem se preocupar com julgamentos. Aliás, pouco se
importa com o nome de sua família, o que mesmo deseja é satisfazer-se, curtir
intensamente cada minuto de sua vida. Os organizadores até pensam em
expulsá-lo, mas são advertidos pelo assessor de imprensa do evento, pois o
fato, além de se transformar em um grande escândalo e render meses de fofocas
às colunas sociais - uma vez que o pai de Ricardo é um grande industrial do
ramo petroquímico -, ainda imporia muitos embaraços jurídicos e transtornos
“financeiros” irreparáveis à empresa responsável pela festa.
A opção plausível, apesar dos protestos dos
convidados, é aceitá-lo, ignorando suas investidas. E assim acontece.
O
jovem Médici, como é chamado pelos mais íntimos, é o centro da festa, ofusca
até mesmo a aniversariante, que, revoltada, exige dos pais, patriarcas da
família Marcondes, uma atitude à altura da canalhice daquele verme, mas para
seu inconformismo, esta atitude não vem.
— Por que o senhor não faz nada, meu pai? Ele
está transformando minha festa numa sessão de strip-tease.
—Não
posso!
—
E por que não? O que o impede de colocá-lo a pontapés para fora daqui?
—
Minha dívida com o pai dele.
—Co-co-como
assim? Acovarda-se por dever alguns à família daquele traste? – cobra a garota,
visivelmente descomedida.
—Alguns,
não, minha princesa! Tudo! Basta o pai dele, meu maior credor, estalar os dedos
para que este castelo de areia se vá com a menor ventania.
—Mas
a festa é minha! - indigna-se.
—Ou
é isso ou a sarjeta, o que prefere?
A garota se cala, enquanto Ricardo, para atiçar ainda mais a ira dos organizadores, intensifica as carícias vulgares na acompanhante, que fora de si - talvez pelo uso de algum entorpecente – retribui da mesma forma. Aos poucos, tornam-se os únicos donos da pista, para a indignação dos convidados, que se retiram aos poucos.
Já não suportando as pernas, a moça, de nome
Anna, pede para descansar um pouco. Suada, recolhe-se ao toalete. Em sua ausência,
Ricardo canta outra convidada, prometendo-lhe amor eterno! Como senhor absoluto
do prazer, consegue convencê-la a transar num pequeno corredor lateral, que dá
acesso aos fundos. Está louco para deleitar-se de mais um corpo; sem qualquer
tipo de remorso, sorve-lhe toda a essência, despreocupado com o possível
flagrante.
Ao
retornar, Anna até arrisca procurar o rapaz; mas como se encontra esgotada,
desiste da empreitada e pede ao seu motorista que a leve para casa. Satisfeito,
o rapaz se levanta, arruma as calças, ignora a mulher, pega um cálice de vinho
e corre pelo salão, completamente fora de si! Duas lindas mulheres foram suas;
uma delas, além do prazer de beijar, teve a oportunidade de desvirginar.
Cambaleando,
atravessa o salão, cumprimentando com sarcasmo todos os olhares de cólera que o
fitam. Desce a escadaria que dá acesso ao estacionamento com a ajuda dos
seguranças.
—Que
noite!!! - vangloria-se, completamente alcoolizado. — Vamos lá, minha cama me
espera!
—Não
quer que chamemos um táxi? O senhor não está em condições de dirigir! – alerta
o valet —Senhor! Ei, ouça...
Ignorando
os conselhos do funcionário, Ricardo liga o carro, anda algumas quadras e para.
Tudo gira, precisa respirar, abre a porta e sai. Está gélido, não pelo frio da
madrugada, mas pela sua própria condição. Senta-se na calçada molhada pela
garoa, abaixa a cabeça, quando alguém lhe estende as mãos.
—O
sinhô intá bem? – pergunta o nordestino de há pouco, correndo as mãos pelos
próprios braços na intenção de aquecê-los.
—Quem
é você? – pergunta o rapaz, à beira da náusea. —Quer me assaltar? Pois vai
quebrar a cara, não tenho dinheiro!
—
Deus mi livre guardi! – faz o sinal da cruz. —Eu sô apenas um...um amigo. Intô
veno que intá mar.
—”Mar”?
– caçoa. — O mar fica no litoral – vira-se para o pobre e, após uma análise de
relance, despreza-o sem piedade. — É apenas mais um miserável! Se não quer me
assaltar, então o que quer? Fale! Fale logo! Gente como você não presta! Fale,
vagabundo!
Não
mais aguentando, vomita. O homem, mesmo diminuído à condição de um verme, presta-lhe
ajuda.
—Por
que me ajuda? Já disse, não tenho di... – é interrompido pelo vômito.
—
Maria!!! – grita o homem pela mulher.
—Sim,
José! U qui cê qué?
—Traiz
água, u homi tá mar. Vamu, muié!
E
assim é feito.
—Tomi,
homi, é água.
—Tire
de perto de mim esta caneca, deve estar cheia de bactéria. Vocês, pedintes, desconhecem limpeza.
—Istá
limpinha, moçu! Minha muié lavô!
—Sai
daqui, fora, fora, eu já disse!
Vomita
mais uma vez, sendo apoiado pelo humilde migrante.
—Tomi
a água, vai si sinti mió – insiste. Mesmo reticente, chega uma hora que Ricardo cede.
—Beba,
moçu! Vai miorá! Beba! Isso! Beba mais!
O
jovem Médici para quando ouve o choro do bebê.
—Quem
está chorando?
—Meu
fiu Jesuis! Nóis conseguiu uma papa de maisena e demo pra eli, mais achu que não
feiz muito beim!
—Pudera!
Com toda esta imundície, o que esperava? Este lugar fede a esgoto. Que nojo! –
comenta consigo mesmo. —Preciso sair daqui. Vamos, me ajude ir até o carro –
ordena.
—
U sinhô intá bem pra dirigí? Num qué qui ieu chami arguém pra ajudá?
—Cale
a boca! Quem aqui poderia me ajudar? Só há pobres criaturas que vivem do lixo... do
nosso lixo!
O
homem não se abate com as ofensas e o ajuda a caminhar até o veículo.
—Tome! – Ricardo retira da carteira alguns reais.
— Tome! Isso servirá para alguma coisa!
—Não
percisa, moçu! Nóis não qué seu dinhero. Brigado! Fizemos tudo de bão coração.
—Pare
de história! Desde quando miseráveis como vocês rejeitam o nosso dinheiro?
Vejam onde moram... debaixo de caixas de papelão. Pegue logo e se vá! Aproveite
que hoje é o seu dia de sorte, porque não costumo ter tanta benevolência com
tipos da sua laia.
Uma
lágrima desce desorientada pela face do homem, que se retira, cabisbaixo, com o
choro preso à garganta.
—É
o primeiro pobre que vejo recusar uma esmola. Deve estar doente, pudera, com
esse cheiro podre no ar, não há quem mantenha o mínimo de juízo. Liga o carro, antes de partir, dá uma última
olhada na família, percebe que eles trocam algumas palavras, mas não tem forças
para especular o que seria, então parte sem olhar para trás.
—U
qui foi, José? Pru que chora? – pergunta a mulher, comovida com a tristeza do
marido.
—Não
é nada, minha Maria! Apenas tive pena daqueli moçu, eli ainda há de sofrê muito
nessa vida.
—Virge
Santa, pru que diz isso, homi?
—Num
sei! Apenas sintu isso! Mas vamu drumi, aproveitá qui u Jesuis se calô.
Daquele
viaduto até sua casa, em Alphaville, são quase sessenta minutos de viagem.
Durante o percurso, o jovem Médici vangloria-se de suas conquistas, como se a
felicidade fosse apenas carnal, reduzindo-se apenas a desejo, sedução e prazer.
Não entende, por mais que se esforce, que a felicidade pode estar em qualquer
lugar, seja no beijo de
um pai miserável em uma criança faminta ou no simples gesto de querer ajudar o
próximo sem exigir algo em troca. Que a felicidade nada tem a ver com a
verdadeira pobreza: a de espírito.
Chega
à mansão. Sai do carro, caminha até o hall de entrada, passa pelo living e, ao
se aproximar da escadaria que dá acesso aos aposentos, sente náuseas de novo.
Leva uma das mãos à boca enquanto a outra, apoiada à parede, o mantém em pé. Dá
mais dois passos e inicia o doloroso trajeto até seu quarto. No último degrau
está seu pai, um senhor de cinquenta e cinco anos, mas que pela aparência, não
se dá mais que uns quarenta. Visivelmente emocionado, observa o filho sofrer
para vencer os muitos degraus que os separam. Não se contendo, resolve
ajudá-lo. Ao tocá-lo, sente o rapaz gélido como os mortos.
—Ricardo,
meu filho, por que faz isso consigo mesmo? Meu Deus! Venha! Deixe-me ajudá-lo.
A
porta do quarto se abre e o rapaz se entrega a um sofá.
—Já
estou melhor! Pode ficar tranquilo!
—Por
que bebe deste jeito? Parece querer fugir do mundo! É isso?
—Me
deixe, pai! – resmunga. — Preciso descansar! Antes de se retirar, o senhor o
recorda:
—Depois
de amanhã você tem exame na faculdade, lembra-se? Você deve estar preparado,
meu filho, pois se não o fizer, será reprovado. Perderá todo um semestre de
estudo! E se isso acontecer, irá trabalhar na fábrica como operário; assim dará
valor ao dinheiro que lhe dou e que você só utiliza para se embriagar junto a
estas garotas de programa... – antes que pudesse finalizar o sermão, o filho já
havia caído no sono.
No dia seguinte...
—Onde
está o Ricardo, Jacira?
—Ainda
dormindo, seu Leonardo. Passa a noite toda vadiando e durante o dia não presta
para nada. O senhor precisa colocar um freio nesse moleque, porque ele está demais.
Se dona Nathalia estivesse viva, ele iria ver o que é bom para tosse.
—
Já lhe pedi mais de mil vezes, criatura, que não fale de Nathalia. Eu...
eu...eu ainda não superei a perda dela.
—O
senhor me desculpe, mas não há como, quando dona Nathalia era viva, tudo isso
aqui era um paraíso, nada lhe escapava ao olhar.
—CHEGA!
Eu já disse, não quero que me lembre dela – diz, com os olhos agigantados e
visivelmente contornados por lágrimas. — Você não entende, Jacira, isso ainda
me causa muita dor. Quantas vezes terei de repetir? Poxa vida! – joga o
guardanapo de pano que limpava os cantos da boca na mesa e se retira.
—Credo!
O homem ainda sofre mesmo pela mulher – surpreende-se. —Mas que é verdade, é,
mulher igual à dona Nathalia não existe. Essa casa tinha uma calmaria de causar
inveja a qualquer um; hoje é este inferno.
—Acorde,
Ricardo! Acorde, vamos, você tem que estudar, vamos! Amanhã você tem uma prova
para fazer. Ricardo! Ei, acorde! – chama-o o homem.
—Pa-pai?
O que foi? – pergunta assustado ao abrir os olhos.
—Não
estou entendendo!
—Acorde
já! Pensa que dormirá o dia todo? Nunca!
—
Tá, já estou acordado! Que mau-humor!
—Estou
indo para a empresa, quando retornar, quero ver todos esses livros – aponta
para uma escrivaninha- devorados. Chega de moleza!
—Tá
pai! Tá!
E
sai batendo a porta, nada que assuste o rapaz, que se entrega mais uma vez ao
sono profundo.
—
Ricardo, seu moleque atrevido, levante-se, já são nove horas da noite, seu pai
está para chegar. Vamos! Sabe como ele é, fará um escândalo por nada. Bem, nada
não é, porque você está mesmo merecendo uma sova. Bebe que nem um porco! Daqui
a pouco trocará água por cachaça. Tenho dó do seu fígado, se bobear, já deve
estar com um pé na cova. Coitado! Ricardo – mexe-o com força-, acorde, moleque!
Pois você vai ver do que sou capaz de fazer para se evitar uma briga. Espere ou
não me chamo Jacira.
A
mulher vai à cozinha e de lá retorna com um copo cheio d’água. Molha as
próprias mãos e as passa no rosto do rapaz, que dá um salto.
—O
que está acon-acontecendo? Meu Deus! Você está jogando água em mim?
—Melhor
água que cinta, não acha? Pois seu pai está vindo aí e se o encontrar ainda
nesta cama, certamente partirá para o cipó; não que você não mereça, mas...
—Que
cipó o quê, acha que está onde? No sertão?
—Diga
isso para seu pai!
—Sou
maior de idade e não devo satisfação a ninguém.
—É
mesmo, Suzicreide???? – afina a voz, põe a mão na cintura e dá uma reboladinha.
—Uuuuhhhhhhh!!!!! Até parece!
—Pare
com isso! Não gosto destas brincadeiras!
—Então
tome vergonha nessa cara e levante, só não lhe dou umas palmadas porque...
—...Porque
não é minha mãe! – completa o rapaz, ainda contrariado.
—Posso
não ser de sangue, mas sou de criação. Ou se esquece de quem o criou quando
dona Nathalia partiu desta para melhor? Ingrato!
Ricardo
se arrepende.
—Desculpe,
Jacira! Eu...eu...
—Sempre
com essas desculpas esfarrapadas. Agora levante, vamos, você tem uma prova para
fazer. Seu pai...
—Seu
pai o quê? – interrompe-o o homem, entrando no quarto. — O que iria dizer,
Jacira? Complete!
—Seu
Leonardo? Deus meu! – assusta-se a mulher. — Eu...eu...
—E
você, Ricardo, ainda não estudou pelo que vejo – diz, abrindo o cinto.
—Estudou
sim, eu vi! – dissimula a mulher. — É...é...que ele deu uma cochilada agora há
pouco.
—E
ficou o dia todo com a mesma roupa? Sei! Levante-se já desta cama e vá estudar!
– volta-se para a empregada:— É assim que você quer que eu o conserte, Jacira? Ajudando-o
a mentir para mim?
—Não
se conserta alguém com violência! –rebate.
O
homem, contrariado, respira fundo, balança a cabeça, fecha o cinto e sai.
—Viu
o que você fez? O homem está uma fera! Agora faça o que ele mandou, moleque!
Por favor! – suplica. — Parece que você gosta de ver seu pai brabo feito um
touro. Se ele te pega... coitadinho de você!
—Tá,
vou levantar! - resmunga. — Ninguém merece!
—Ninguém
merece é sua preguiça. Só é homem na hora de fazer as coisas – diz, percebendo
as marcas de sangue na calça dele. —No resto, hum, como disse seu pai, não
passa de um zero à esquerda.
—Com
quem pensa estar falando, sua atrevida? Também sou seu patrão!
—É
mesmo, Suzicreide? Uuuuhhhhhhh!!!! Não diga! Pois sai prá lá, moleque! A sorte
é que te amo como um filho meu – dá-lhe um beijo no rosto. —Sua sorte! E agora
vá estudar!
E
se vai. A muito custo, Ricardo se levanta, roga duas ou três pragas ao pai e à
empregada, arrasta-se até o toalete e se olha no espelho: está acabado! Pudera,
deu conta de duas em uma só noite... Que maravilha! Olha para a calça suja do
sangue daquela virgem e sorri! Foi o primeiro homem daquela, agora, flor
consumida! O estômago permanece embrulhado. Apalpa-o com cuidado, até que
arrota! Vendo-se novamente no espelho, passa a mão pelos cabelos longos, lisos
e negros. Os olhos azuis estão opacos, a bebida os havia roubado o brilho.
Mesmo
não se aguentando em pé, liga o computador. Tudo é feito de maneira lenta e
descompassada! Quando os programas são iniciados, ele se conecta a Internet.
Precisa terminar de ler os artigos que tratam do comércio bilateral. Por
incrível que pareça, este “senhor das noites” almeja ser um megaempresário.
Tudo é possível àquele que crê, mas este será o caso dele?
Desde
a morte de sua mãe, naquele trágico acidente na Rodovia Castelo Branco, Ricardo
jamais se importou com algo. Sua vida sempre foi regada a gastos desnecessários
e a prazeres efêmeros. O pai, ausente, preocupa-se apenas com os negócios, na tentativa
de esquecer a mulher que tanto amara e que ainda lhe insiste ressurgir ante os
olhos quando as lembranças se tornam insuportáveis.
A
Ricardo só restou a tia Márcia, que, mesmo distante, tenta acompanhá-lo,
orientá-lo e estimulá-lo na busca por aquilo que deixou de acreditar. Foi por
ela que ele resolvera prestar o vestibular, concorrer a uma das poucas vagas
para o curso de Economia - carreira que fizera de sua mãe uma das mais
prestigiadas diretoras de banco da Grande São Paulo-, de uma das mais renomadas
universidades da capital e se classificar entre os trinta primeiros aprovados.
Atualmente está no quinto semestre e corre sério risco de ficar em dependência
na disciplina que rege o comércio exterior. A única chance de ser promovido
para o estágio seguinte é obter nota oito no exame que acontecerá logo que o
dia clarear.
E
foi novamente por Márcia que ele ligou o computador, conectou-se à Internet, na
busca por textos que lhe possibilitem construir alguma crítica realista sobre a
bilateralidade comercial em época de globalização.
Enquanto
pesquisa, resolve abrir outra página, a de um bate-papo. Seu nick: “Gostoso e
Eterno”. A sala está cheia. Trinta e cinco internautas teclam acerca do que
lhes interessa. Joana, a perseguida, flerta com Gláucio, o pegajoso; Mari grita
com Lucas lambe-lambe; Viajante concorda com Sozinho; Stella suspira por
Raquel... Enfim, companhias das mais aproveitáveis! Ricardo deixa um pouco o
chat e retorna ao site de busca. O tema, demasiado cansativo, o transporta, em
definitivo, à sala de bate-papo.
—Muito
mais atraente que as teses defendidas pelos economistas neoliberais, insanos
adoradores do Consenso de Washington³.
Ao
retornar, nota a presença de um novo internauta, desta vez, com um nick
curioso: “O Desbravador de Identidades”. Intrigado, lê com desvelo as duas
primeiras mensagens deste misterioso visitante.
—Há
nesta sala alguém inteligente e arrojado para uma conversa de bom nível? -
questiona o dono do misterioso apelido.
Alguns
jovens tentam manter contato com o estranho rapaz que, por sua vez, os repele,
um a um, com a deselegante frase “Você não serve...”. Toda a conversa
transcorre livremente. Não suportando a curiosidade, Ricardo arrisca:
—Quem
você pensa que é para ser tão seletivo?
—Hum!
Parece-me mais afoito e cativante que os demais... Isso é muito bom! Então está
pronto para ser desbravado, conhecer novos mundos, ser o dono do céu e da
terra, do pecado e da virtude, senhor “Gostoso e Eterno”?
—Está
louco? Com quem pensa estar falando, seu idiota? Vá desbravar sua mãe, talvez
ela esteja precisando. Acha que sou tolo em cair numa conversa insana como
esta? Deve ser um desclassificado!
—
Não, sou apenas letras... Consoantes e vogais que se desprenderam de um corpo
físico na tentativa irrefreável de encontrar alguma essência que as alimente
eternamente. E como são aprazíveis os vis contornos da eternidade, proponho a
você pacto de amor obsessivo e fidelidade perversa. Se aceitar, receberá as
chaves do inferno, um local instigante, desafiador, em que o sexo e o prazer
são as moedas de maior valia! Nunca mais será o mesmo, desejará sempre beber
das águas da luxúria e da amoralidade - rios que dividem o vale da tentação.
—Desgraçado,
você é um homossexual! - grita o rapaz, enraivecido.
—
NÃO!!!- nega o estranho, com veemência. —Estou apenas querendo sentir novos
prazeres, fugir um pouco do cotidiano. Acredito que o homem é capaz de sentir
os mesmos deleites, ou talvez maiores, se mantiver relações com parceiros do
mesmo sexo!
—DE
ONDE TIROU ISSO? ESTÁ LOUCO, CARA? – grita. — E QUE VOCABULÁRIO É ESTE? POR ACASO MACHADO DE
ASSIS FUGIU DO TÚMULO?
—
Acalme-se, querido, ele não fugiu não, este sou eu mesmo!
—Suas
palavras ...bem...sei lá...elas me entorpecem, nem sei se esta é a palavra
certa.
—
Acalme-se! Acalme-se!
—Chega
de conversa, de onde tirou essa bobagem?
—
Não é preciso nervosismo – ri. —Na verdade isso é resultado de uma tese que li
recentemente, cujas linhas afirmam, que para o homem, pouco importa o parceiro;
de fato, o que se está em xeque é o alcance do orgasmo e a satisfação do corpo.
—Não
acredito nisso, estou aqui perdendo meu tempo com um boiola.
—
Não sou isso que acabou de dizer.
—Como
não? Você está me cantando na cara dura.
—EU?
Meu jovem, não coloque palavras em minha boca. Estou apenas tentando dizer que
a maioria dos homens sente excitação aloucada e prazer descomedido quando
pratica sexo com rapazes, por se inserir neste contexto, além do anseio, os
riscos de ver sua própria sexualidade exposta à sociedade. Transar com mulheres
é como comer arroz com feijão: todo dia se tem! Então, o que acha de pormos à
prova esta tese?
—ESTÁ
LOUCO? SOU HOMEM! MUITO HOMEM!...- diz, Ricardo, apossado por uma raiva descomunal.
—MUITÍSSIMO HOMEM! TENHO NOJO SÓ EM PENSAR.
—
Por que grita? Em algum momento eu o ofendi ou disse algo contrário a esta
afirmação?
—
Não! Não disse! – contém-se. — Mas, mas, por que me convida para tal disparate?
O que pensa estar fazendo?
—
Acalme-se! Sei que teve um dia difícil e quero apenas ajudá-lo...Será que
posso?
—Dia
difícil? Que conversa é essa?
Exasperado,
Ricardo desconecta-se da sala e, aos berros, profere blasfêmias àquele que se
intitula o maioral da obscuridade. Anda em círculos pelo quarto, não
acreditando ter participado de uma conversa tão abjeta. Acha? Ele, um dos
senhores da noite paulistana, desejado pelas mais belas da metrópole, caído aos
pés de um homem, talvez um reles plebeu, na condição de um fajuto investigador
das práticas surreais de teses despropositadas? Logo ele, príncipe viril dos
mais irrequietos caprichos da alma feminina? Inacreditável!
Vai
à sacada. Apoiado ao guarda-corpo, testemunha a fumaça das chaminés encardirem
o céu com um cinza carregado e fúnebre. O relógio da sala de estar anuncia a
chegada da meia-noite.
Enquanto
seus olhos se perdem no horizonte, sua mente é invadida por pensamentos
perigosos. Quem estará por trás daquelas palavras? Será alguém que conhece,
zombando de sua “ingenuidade”? A curiosidade, tão viciante e letal quanto ao
ópio, lhe encoraja a prosseguir a conversa, na intenção de desvendar a
identidade do desequilibrado e lhe dar uma surra. Afinal, não pode se dar ao
luxo de permitir que um demente zombe de sua sexualidade apenas por um mero
capricho particular.
—
Estava esperando-o ...- confidencia-lhe o tal Desbravador de Identidades, ao
vê-lo retornar ao diálogo.
—
Voltei para dizer que...
—
... Que aceita minha proposta? - completa o estranho, entrecortando-o.
—
NÃO! - responde Ricardo, surpreso com a insistência do estranho. — Voltei para...
para desmascará-lo e descobrir o real motivo deste jogo cretino. Por que está
fazendo isso?
—Porque
quero sexo, prazer, algo que sei que é capaz de me oferecer! Pensei ter sido
claro! Vamos marcar um encontro, provar o gosto de nossos corpos, deliciar-nos
numa cama, fazer verdadeiras loucuras. Verá como é bom ser possuído por outro
homem!
Um
arrepio, com a mesma velocidade de uma facada, desce a coluna de Ricardo, que
consternado, olha para os lados, respira um pouco e se apoia sob o teclado,
como se não acreditasse estar teclando com um possível maníaco.
—Quanta
pretensão! – repudia o estudante. —Louco!
—
Louco por você! Por seu corpo, sua alma, seu cheiro... Deixe-me fazê-lo feliz!
Topa estar comigo? Passaremos horas nos acariciando... Será um relax de dar
inveja a qualquer sauna gay.
Ricardo
pensa em desconectar-se e esquecer toda a conversa; todavia, a arrogância – este
verme que se hospeda em corações adeptos ao poder - o faz voltar atrás e mudar
toda a estratégia. De presa, passa a caçador, num jogo em que o prêmio pode ser
o próprio surto. Astuto, revê os diálogos, altera a postura, baixa a
resistência e dispara o golpe de misericórdia.
—
Como você é?
—Hum!
Vejo que está mudando de opinião e isso me excita!
—Quando
não se pode vencer; junte-se ao inimigo! - ironiza o rapaz. — Vamos ao que
interessa: VOCÊ! Fale, como é?
—Uau!
Adoro homens sarcásticos e dominadores, principal- mente adolescentes que se
completam na figura exuberante daquilo que interpretam ser.
—Não me considero adolescente, tenho 21 anos, portanto, deixe de escapismo e descreva-se logo! - ordena o rapaz, não disfarçando a irritação.
—Desculpe-me, “adolescente de 21 anos”, não foi
minha intenção encolerizá-lo. Bem, sou louro, olhos verdes, 1,82 m, 72 kg,
carinhoso, apaixonante! Aquele que agora ousa me completar poderá ser feliz
pela eternidade, ainda que a perda de um dos pais lhe cause dor por toda uma
vida.
—
COMO SABE QUE PERDI MINHA MÃE? FALE! - exige, Ricardo.
—
Nenhum feiticeiro revela sua magia...
—
PARE COM ISSO! EU ORDENO! COMO SABE DISSO? NÃO TOCO NESTE ASSUNTO HÁ ANOS- confessa o rapaz,
num misto de medo e surpresa.
—
Bebeu muito hoje?
—
Bem...- levado pelo desconhecido a mergulhar no poço das lembranças doloridas,
Ricardo mal percebe ter deixado o papel de protagonista - se é que o foi em
algum momento - e assumido a função de coadjuvante, num jogo considerado
perigoso, cujo final poderá ser diabólico.
—Não
precisa me dizer mais nada, está perdido em sua própria vida! Seu pai lhe
persegue, suas namoradas duram alguns segundos e se esvaem no tempo...Precisa
de um amigo de verdade, a quem possa confidenciar seus mais íntimos devaneios,
suas verdades que são versões mal-acabadas de uma realidade fugaz e dolente –
persuade-o o Desbravador, transvestindo-se de anjo.
Com
uma mão apoiando a cabeça e a outra no teclado, ele escreve:
—Pare,
por favor! Eu lhe suplico! Você está me assustando!
Hipnotizado
pela dor, Ricardo verte-se em lágrimas. Arrasado, levanta-se da cadeira, abre uma das gavetas da
cômoda, de onde retira uma fotografia da mãe que tanta falta lhe causa.
Olhando-a com ternura, sente vontade de gritar, tão grande lhe é a perda; não o
faz por medo de que as feridas do coração possam, anos depois, desabrocharem e
o entorpeçam com seu aroma embriagante e mortiço. E a camisa, embebida pela
transpiração, é o aviso de que estas mesmas feridas estão por irromper a
qualquer instante. A muito custo, retorna ao bate-papo. Espreitando com afinco
o nick de seu possível carrasco, pergunta: —Por que desbravar minha identidade? O que, de
fato, quer? Só sexo mesmo? Como descobriu tanta coisa sobre
mim? Antes que Ricardo concluísse a frase, o
misterioso desbravador se desconecta, deixando-o, aparentemente, desolado.
Os
primeiros raios de sol cruzam o horizonte...
Após
desligar o computador, o rapaz cai no sofá, chora um pouco e acaba se deixando
transportar para uma terra distante, onde a realidade é refém da fantasia mais
libidinosa. Os pássaros tomam o céu, as crianças brincam de pega-pega e o rio,
que reflete a calmaria, desaba no mar. Tal é a tranquilidade do lugar que ele,
deitado no colo da mãe, observa a figura de um rapaz, do outro lado da margem -
em cuja distância se torna difícil ver a face-, que lhe acena.
Movido
pela magia do primeiro encantamento, levanta-se, aproxima-se do rio e, aos
gritos, pede para que o moço venha sentar-se ao seu lado. Precisa vê-lo de
perto, passar a mão em sua face, senti-lo em seus braços, tomá-lo pelo
espírito, sonhar um pouco... Almeja que ele seja o altivo Desbravador, aquele
que lhe ousou estraçalhar impiedosamente o coração... ou seria a razão? Que
dúvida cruel!
O
Ricardo de há pouco, que tantos preconceitos alimentava, havia, por algum
motivo, esfacelado. Em seu lugar nascera um outro, de um encorajamento de
causar surpresa. Uma obra perfeita do senhor da obscuridade, que montado num
cavalo branco, correra lhe realçar a verdadeira identidade, guardada a sete
chaves nas valas horripilantes de sua alma.
Aura
aprazível corta o local. O moço atravessa o rio a nado, também está ansioso,
quer logo chegar à margem, fixar-se aos olhos de seu possível novo amado e
beijá-lo intensamente até que a ausência de fôlego os separe. Ricardo o aguarda
em pé, com a felicidade a invadi-lo. E o que parecia impossível, acontece. O
desconhecido pula da água, pega-o entre os braços e o devora pelos lábios. Ouve-se
um relâmpago. A realidade liberta-se do cárcere e cai, como bomba, na cabeça do
estudante atormentado. De um pulo, Ricardo se levanta, corre ao toalete,
olha-se no espelho e pergunta:
—O
que está acontecendo, meu Deus? - morde os lábios para que o choro não se
apresente e faça morada. —Estou desvairado como aquele internauta. Como posso
estar imaginando ter algo com alguém do mesmo sexo? E desde quando sou
homossexual? Minha vontade sempre foi a de desbravar as virtudes das ninfetas
de Alphaville e não me prostrar aos pés de um...homem! Algo está errado comigo!
Preciso de um médico! Aquele cara me deixou perturbado com sua conversa
desatinada!
Descontrolado, pega um frasco de perfume e o atira contra o espelho.
Encerra com a música: (Bring Me To Life - Evanescence).
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1 Festa em que reina a devassidão; orgia.
2 Ninfa que fazia parte das orgias e festas de
Baco, o Deus romano do vinho.
3 O Consenso de Washington foi a forma como
ficou popularmente reconhecido um encontro ocorrido em 1989, na capital dos
Estados Unidos. Nesse encontro, realizou-se uma série de recomendações visando
ao desenvolvimento e à ampliação do neoliberalismo nos países da América Latina.
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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