O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 02
O dia clareia...O canto dos galos, tão comum no
interior, é substituído, na capital, pelas buzinas dos caminhões, pelas sirenes
das ambulâncias, pela correria desatinada dos ônibus.
A São Paulo de todos os santos está acordando,
novos momentos de glória e tragédia estão prestes a ser gravados com sangue,
suor e lágrimas nas páginas do grande livro de sua História.
O entregador de jornal, montado em uma velha
motocicleta, atravessa com a mesma velocidade de um raio as avenidas
monumentais de Alphaville. Tem pouco tempo para despachar os mais de 1000
exemplares contratados à região. Na entrada de uma das casas está Marcos, o
motorista, aguardando a chegada do periódico, a pedido de seu patrão, o pai de
Ricardo.
Por falar no rapaz, lá está ele, entregue ao
travesseiro.
—Ricardo ainda não acordou? - pergunta, com cara
de poucos amigos, o patrão à empregada, enquanto degusta uma fatia do legítimo
queijo mineiro.
—Não senhor! O bicho está “forgado”, seu
Leonardo.
—Como pode isso? Ele tem uma prova para fazer
daqui a pouco! Como pode ser tão irresponsável, Jacira? Aliás, se pensarmos
bem, a culpa é sua, toda sua.
—Minha? – surpreende-se a mulher. — Aqui não,
Suzicreide!
– diz, com a cabeça empinada e a mão à cintura.
—Sua, sim, Jacira! Sua, sim! - confirma, num
misto de cólera e deboche. —Se tivesse deixado eu dar umas cintadas nele ontem
à noite, com certeza, agora ele estaria aqui, sentado à mesa, tomando seu café,
mas não...
— O senhor ainda acredita que cintadas mudam
alguém? Em que século vive, seu Leonardo? Aquele moleque é homem-feito e
dono da própria vida. Pode o senhor desejar
controlá-lo, mas saiba, só passará mais nervoso. E olhe lá!
—Enquanto ele morar debaixo de meu teto, terá de
me respeitar e fazer tudo o que eu mandar.
—Pago para ver! Ricardo é terrível, basta ver o
que ele apronta pela cidade ou o senhor não lê as colunas sociais deste jornal?
– aponta para o periódico que está em cima da mesa, ao lado da cesta com
frutas. — O bicho é tranqueira, passa o rodo em tudo que é mulher, não tem
respeito por ninguém, porque sabe, tem como escudo o dinheiro de sua família.
Hum!
—Por que diz isso? O que ele fez? – cobra,
pegando o jornal. — Não acredito! – o homem se assusta com as fotos e os
comentários maldosos sobre as atitudes condenáveis do filho.
— Pois é! De anjo este moleque não tem nada, nem
as asas.
—Mas...mas... logo com a família Marcondes? Olha,
Jacira!
Que horror! Ele perdeu o senso do ridículo.
—Ridículo? Não diga, Suzicreide! Faz é tempo!
—Pare com este negócio de “Suzicreide”. Não sei
de onde tira isso!
—Como pega no meu pé, homem! Sai pra lá, chulé!
—Mais respeito, Jacira, mais respeito!
—Respeito quem deve ter é o seu filho e não só
pelo senhor, mas por todo mundo. Acha! Se ele tivesse feito isso que o jornal
diz na festa de uma filha minha, certamente, não pensaria duas vezes e lhe
meteria umas balas, mas como essa gentalha que se intitula “elite” tem medo de
escândalos, deixa tudo como está. E o que adiantou tanto receio? Agora ilustra
as páginas sociais dos piores críticos da cidade.
—Não acredito! Essa não foi a educação que lhe
demos. Aliás, com quem será que ele está aprendendo essas coisas?
—Na rua! E do jeito como anda, logo uma fila de
garotas estará à nossa porta, reivindicando a paternidade de seus filhos ou não
viu a mancha de sangue que estava na calça dele? Hum! No mínimo, o senhor sabe,
ele tirou a pureza de alguma fulaninha ou... de várias! Prepare o bolso!
— Irresponsável! – repete duas ou três vezes,
correndo a mão sobre o rosto consternado.
— Isso sem falar da bebida, né? Vive mais pra lá
do que pra cá.
—Eu não a entendo, taca lenha na fogueira o tempo
todo, mas quando a chibata se levanta para endireitá-lo, corre em sua defesa.
—Coração de mãe é assim!
—Você...Deus me oriente! Hum! Vou acabar com essa
palhaçada agora mesmo! - anuncia o doutor, ao levantar-se da mesa e jogar o
jornal contra os alimentos.
—Ele só se esquece de que aqui não é um circo,
aliás, pensando bem, até seja, basta cobrir com uma lona – comenta consigo
mesma, às gargalhadas, enquanto o homem sobe as escadarias.
—Onde está o doutor Leonardo? – pergunta o chofer
à empregada, que retirava a louça do café.
—Acabou de subir, disse que ia dar um jeito no
Ricardo, acha?
—Será? Eita nós!
—Será nada, Suzicreide! – debocha. — Não conhece
o seu Leonardo? Só fala! Isso, na verdade, é tudo culpa dele, porque é um pai
ausente e o mundo que não é bobo, toma o lugar que deveria ser dele, sem
qualquer remorso. Tudo para ele se resume à cintada! O filho cresceu, é um
homem-feito, precisa ser orientado, mas ele não entende isso! Como sinto falta de dona Nathalia!
Se ela estivesse aqui, este moleque passaria apenas a pão seco, mas se
endireitaria, ou não me chamo Jacira.
O pai entra no quarto, abre todas as janelas e se
volta para o filho aos berros:
—Ricardo! Acorde! Vamos! – pega-o pela orelha.
—Ai, ai, pai, que é isso?
—O que você fez aos Marcondes? Fale!
—Eu não fiz nada – diz, soltando-se.
—E o que são aquelas fotos depravadas no jornal e
aqueles comentários infames?
—Inveja!
—Inveja? Como é abusado! – Dá-lhe dois ou três
tapas. —Você não tem jeito mesmo, acho que terei de mandá-lo estudar fora do
país, quem sabe toma juízo.
—ASSIM FICARÁ LONGE DE MIM, NÃO É? PENSA QUE NÃO
SEI QUE É O QUE MAIS DESEJA?
— De onde tirou isso? Você ficou louco? – surpreende-se.
O rapaz não responde.
— FALE!!! – exige.
Os olhares de Ricardo são tomados de
ressentimento.
—FALE!!! Você só apronta, que dia terei um
momento de paz?
—Quando eu morrer!
As palavras caem como bombas no âmago do homem,
que se retrai.
—Fi-fi-filho, por que diz isso? Só quero seu
bem, menino!
—Como queria o de minha mãe?
—Não o entendo! Do que está falando? Ricardo se
fecha.
—Eu te amo muito, meu filho! – diz, ao abraçar o
garoto com lágrimas a saltarem dos olhos. —Não faça mais isso.
Por fim, o rapaz se arrepende das palavras e o
abraça.
—Tentarei contornar o que você fez. Como os
Marcondes me devem uma fortuna, não será difícil de eles aceitarem um pedido de
desculpas.
—Você vai se desculpar? – desacredita.
—E o que mais poderia fazer? Você passou de todos
os limites, não tem ideia de como poderia ter maculado a imagem de nossa
família.
—Sei... – desdenha.
—Pelo menos se preservou, né? Porque a festa foi
boa! Consegue me entender?
—Claro, pai! SEMPRE!
—Melhor! Não quero nenhum neto batendo à minha
porta, até porque, ainda não estou preparado para ser avô.
—Você diz cada coisa!
—Tentarei retornar mais cedo. Sei que lhe dou
pouca atenção, que precisamos conversar mais...Mas vamos ver, são tantas
reuniões que às vezes penso em me mudar para o escritório.
Ricardo entorta a boca em protesto às intenções
do pai.
—Estava apenas brincando – justifica-se,
dando um sorriso acanhado.
—Está tudo bem, pai! Fique tranquilo!
—Você estudou?
—MUITO! – é de um cinismo que convenceria ao
maior dos incrédulos.
—Que bom! Fico feliz!
Mal sabe que o garoto não estudou, preferiu
prosear com um desconhecido, que acabou por aterrorizá-lo com sua maneira
exuberante de teclar.
—Agora vá lavar o rosto enquanto lhe separo a
roupa – diz o homem, como se almejasse alguma redenção.
A muito custo, o jovem se levanta. Ao entrar no
toalete é abalado pelo susto: os cacos do espelho - quebrado na noite passada
após um momento de desequilíbrio - estão por toda parte. O suor lhe toma a
face, enquanto a mente, acelerada, arquiteta uma forma de evitar que seu pai
flagre o local daquele jeito, o que poderia lhe render uma discussão
interminável. Receoso, tranca a porta. Após uma longa inspirada, recolhe os
cacos, fazendo o menor ruído possível.
Minutos se passam...
O silêncio é predominante. Os últimos cacos já
estão em sua mão para serem jogados no lixo. Espreitando pelo buraco da
fechadura, nota que o quarto está vazio, por este motivo, abre a porta, dá
outra conferida, para só depois sair. Sentando-se à cama, apoia a cabeça contra
as mãos, enquanto respira aliviado. Levantando os olhos, encontra estendidos no
sofá, a alguns metros, uma calça de linho marrom, uma camisa branca de gola e
uma jaqueta.
Após se vestir, prepara-se para se retirar,
quando avista o micro. Toda a história da noite passada lhe ressurge diante dos
olhos, o que acaba por lhe despertar um misto de sensações indescritíveis. Um
desejo curioso e atrevido sussurra-lhe aos ouvidos, quer ligar o computador e
àquela estranha criatura se reconectar.
Como uma dessas marionetes conduzidas por mãos
habilidosas, Ricardo dá dois passos em direção ao micro; parece enfeitiçado.
Quando o monitor emite seu brilho, ele cai em si, repelindo a atração por
aquilo que há pouco lhe causara tanto medo.
Confuso, resiste à ideia, apaga a luz e sai.
Desce as escadarias sem olhar para trás, na esperança de que seus problemas,
suas angústias e desejos mais estranhos tenham ficado aprisionados àquela
máquina, de modo que não os atormente mais, ou, na pior das hipóteses, por um
longo espaço de tempo. Durante o café solicita à empregada que lhe faça um
Capeletti in brodo¹ para o almoço.
—Até parece, Suzicreide! Uuuuhhhhhhh!!! – põe a
mão à cintura e dá uma reboladinha. — Pensa que sou sua empregada? Atendo às
ordens de seu Leonardo, não suas! Vá primeiro fazer um filho para depois querer
mandar em mim. Aliás, do jeito como a coisa anda, daqui a pouco terá um monte à
porta, ao gosto do freguês.
—Pare com isso, Jacira! – emudece por alguns
segundos, para logo em seguida cobrar. —Então foi você que foi encher a cabeça
do velho?
—EEEEEEEU???? Nunca! Não sou chegada à fofoca.
Com este mal eu não nasci e Deus é testemunha.
—Ele veio com uma história estranha de filhos...
—O que não é difícil, porque todo mundo sabe,
você é o galã da piranhada dos Jardins. Mas juro, por nosso senhor Jesus
Cristo, que não tenho nada a ver com isso!
—Sei! Acredito! Mas o que a impede de fazer o
prato que lhe pedi?
— Minha novela. Está nos últimos capítulos.
—Mas, mas, mas a novela não passa só à noite?
—Os capítulos inéditos, sim!
—Então...
—Moleque, deixe eu lhe explicar, eu perdi os dois
últimos capítulos porque seu pai não me dá paz, é um tal de pedir as coisas que
não para. E agora marquei de assisti-los hoje à tarde, porque meu videocassete
ainda funciona e gravou tudo tim-tim por tim-tim. Caso contrário, eu iria fazer
um escândalo tão grande que seu pai teria de se virar com os amigos dele para me
conseguir uma cópia. Você entendeu agora ou preciso desenhar?
—Nossa, você é fogo. Cada dia é uma nova. Bem,
deixe-me ir, pegue para mim a chave do carro.
—Que chave do carro?
—Ué, a minha! E de quem mais seria?
—Seu pai pediu para que o Marcos o leve à
faculdade.
— Mas por quê? Isso não é certo!
—Acha mesmo, Suzicreide? – zomba, levando a mão à
cintura. —Chega todo porra-louca, com o bafo tomado pela cachaça e a roupa
manchada de sangue e ainda pergunta? Faça-me o favor!
—Isso é coisa sua, né, Jacira?
—EEEEEEU??? Imagine!!! Sou uma santa e Deus é
testemunha. E não reclame, senão da próxima vez irá de buzão. Imagine um Médici
todo exibido feito você cheirando o sovaco do povão... – gargalha.
—Não tem graça!
—O que não tem graça é você ficar me enchendo a paciência.
Já tomou seu café, não tomou? Pois agora chispa daqui, tô ocupada! Ô moleque
chato!
—Ir de limusine à faculdade. Que mico!
Contrariado, Ricardo pega uma pasta quase vazia,
que se encontra no final da mesa e se vai. Caminha silenciosamente pelo jardim,
de onde é possível avistar os muitos prédios que arranham o céu. Com os olhos
fitos naquele cenário, perde-se, por alguns instantes, em pensamentos até então
proibidos. O Desbravador, com todo seu vernáculo peculiar, havia cravado um
buraco em sua alma, por mais que não aceitasse, e ceder aos caprichos daquele
infeliz parecia ser uma possibilidade real. Retorna-se a si ao ouvir o chamado
do chofer. Marcos o aguarda a alguns passos com a porta da limusine aberta.
Enchendo os pulmões, segura a pasta contra o peito e segue ao encontro do
veículo.
Os corredores da pauliceia desvairada, como de
rotina, vivem mais um dia de tráfego intenso. A cortina de fumaça negra jorra
pelos escapamentos dos coletivos envelhecidos que, na forma de paus-de-arara da
modernidade, levam a plebe aos mais distantes pontos da cidade. Não há tempo
para nada, muito menos para sorrir. O esgotamento físico, parente mais próximo
da depressão, é visível na face da população. A limusine corre... Shoppings
chiquérrimos, praças com crianças nadando em fontes, casebres de papelão
construídos aos pés dos viadutos e o horripilante Tietê - uma versão maculada
do saudável Tâmisa²- correm-lhe pelo vidro e se perdem nas lembranças de uma
terra voraz por desenvolvimento.
Ricardo chega à faculdade. Pede ao motorista que
o busque ao meio-dia. Entra cabisbaixo. Sabe que uma nova bomba explodirá
quando mais esta nota chegar às mãos de seu pai. O exame se inicia. Sentado na
última carteira da primeira fileira, o rapaz só tem cabeça para aquele que ousou
desafiar sua existência viril, pondo em dúvida sua própria condição como homem.
A prova lhe é entregue. Há muitas questões sobre
o tema que deveria ter estudado. Lê a primeira pergunta. Não sabe! Lê a
segunda, a terceira, por vez, a última. Não é capaz de responder a nenhuma
delas. Será a sua bancarrota estudantil. Como pôde deixar isso acontecer? Como?
Inquieto, não encontra uma posição na cadeira que
o conforte, o que chama a atenção de um aplicador, que se aproxima.
—Algum problema, jovem Médici?
—Todos!
— E por quê? Não estudou?
Abaixa a cabeça e não responde, fazendo com que o
homem se afaste. Ainda tem a esperança de que algum milagre aconteça e o salve
de um novo fracasso, por isso apela a todos os santos – logo ele, um
incrédulo-, um deles, compadecido de sua situação, certamente, o ajudaria. Que
criatura ingênua!
O tempo passa, a tensão aumenta, a ponto de a mão
trepidar e a face ser tomada por um suor que não cessa. Precisava reagir, mas
como? Não sabia nada! “Que se dane! Desisto!” – pensa ele, que se desvia para
outras coisas, como as lembranças da noite passada. Uma válvula de escape
inteligente? Vindo dele...
Pôr à prova a tese esdrúxula de um tresloucado,
que afirma, com base em experimentos científicos de origem duvidosa, que o
homem, posto diante da incitação da libido, é capaz de praticar o ato,
ignorando a condição sexual do próprio parceiro, permanece a lhe despertar
sensações desconhecidas. Será que ele, um rapaz atraente, desejado por parte da
socialite, seria capaz de transar com outro homem, só pelo fato de estar
excitado? Quanta loucura! – solta um risinho.
Meio-dia em ponto. O sino toca. O exame termina.
Ricardo olha espantado para a prova, para não a entregar em branco, assinala a
questão “a” de todas as perguntas. Pelo menos evitaria o zero.
O fiscal toma-lhe a prova e solicita sua
retirada. No corredor, sem que pudesse imaginar, encontra a garota que
desvirginou na festa da noite retrasada. Ela está irradiante, pudera, perdera a
pureza carnal para um dos rapazes mais desejados da alta sociedade paulistana.
Um verdadeiro príncipe da selva de pedra. Pede-lhe um beijo, mas o rapaz, frio
como um defunto, dispara, sem qualquer ressentimento:
—Quem é você? Já nos vimos alguma vez?
—Co-como? Ricardo, sou eu, lembra-se? O rapaz
permanece impassível.
— Sou eu, nós fizemos...bem... naquele corredor
lateral, na festa dos Marcondes. Não é possível que tenha se esquecido! – os
olhares da garota, então reluzentes como os raios solares de um dia lindo, se
apagam com a chegada intrínseca de nuvens carregadas.
—Não me lembro! Desculpe! – diz, sem esboçar
qualquer reação, ao se afastar.
Ela o segura pelo braço e pergunta uma outra vez:
—Não se lembra mesmo de mim? Eu...eu...agora me
sinto uma mulher de verdade e graças a você – os olhos pingam lágrimas. — Está
brincando comigo, não está? Diga! Você foi o meu primeiro homem, não é possível
que tenha se esquecido.
—Bom para você! – ironiza, batendo palmas. — Não
vai ficar para titia!
—MONSTRO! – dá-lhe um tapa com toda a sua força.
— Pensei que fosse alguém legal.
Agindo feito um sátrapa³, Ricardo acaricia a face
avermelhada, enche-se de sarcasmo e dá o golpe de misericórdia.
—Tirar a virgindade de mulheres insignificantes é
algo que mais faço e por que me lembraria de você? Foi mais uma entre tantas, se
é que de fato tenhamos feito sexo. Pois não me lembro! Agora me dê licença,
tenho outra “dondoquinha” para desvirginar.
Dá-lhe as costas e se retira, deixando a jovem em
prantos.
—Por que o senhor fez aquilo com aquela moça, seu
Ricardo?
pergunta o chofer, horrorizado, após testemunhar
o fato.
—Porque eu quis! – limita-se. —Agora vamos, estou
com fome.
As horas voam...Depois do jantar, o já atiçado
rapaz se tranca no quarto, liga o micro, na esperança de reencontrar o estranho
que tantas sensações o instiga.
Por incrível que pareça, lá está o estranho, no
mesmo Chat, esperando-o.
— Pensou em mim hoje? - inquire o desbravador,
com certa prepotência.
Ricardo hesita em responder.
— Pensou em mim hoje? - insiste. —Pois eu pensei
muito em você. Acho que estou me apaixonando! Logo eu, a quem o mundo dotou
apenas de razão.
— E por que pensaria? Por acaso é alguma Giovanna
Antonelli? – responde, ainda que contrariando as reais intenções de seu âmago.
—Estou perplexo! - gargalha o invasor de
personalidades.
—E por quê? – tenta conter a curiosidade.
—Por ter pensado em mim durante o dia todo! Isso
muito me alegra! Sinto-me como se estivesse à porta do trono de Baco, cuja
senha de entrada, seria um beijo seu... Só seu!
—Você...você...eu...
— Meu prazer advém da possibilidade real de que
logo o conhecerei e o terei em meus braços. - completa o desbravador,
interrompendo-o.
— Como pode ter tanta certeza? - exige assombrado
o rapaz.
— Só por estar aqui, já é um sinal de que também
me quer!
Ricardo engole a saliva com dificuldade. Sem
condições de continuar o diálogo, pelo menos sóbrio como estava, surrupia da
adega uma garrafa do mais fino vinho do Porto e a sorve em grandes goles.
Sob o efeito do álcool, volta à sala de
bate-papo. Agora, sem o controle da consciência, o sensor natural, exalta a
figura do desconhecido, como se também quisesse tê-lo ao seu lado.
— Não o esqueci um só minuto! Você me atiça de um
jeito que...não sei explicar!
—Eu sei! – confirma o estranho.
—Fale mais de você. Quantos anos tem? - pergunta
Ricardo.
—Pela maneira como escreve, deve ser mais maduro
que eu.
—Está me chamando de velho?
—Longe disso! Acho-o envolvente, exuberante com
as palavras, excitante na abordagem, se é que me entende.
— Claro que o entendo! – gargalha. — Aplausos
para a minha nova “presa”.
—Presa??? Não sou sua presa! Eu...eu...tô bebendo
demais...
—Beba...beba mesmo...beba tudo o que puder,
porque aqui não há censura! O céu é o limite e a orgia o destino.
—EU QUERO VOCÊ! – assume o jovem, agora afoito,
com os olhos agigantados fixos ao monitor.
—Mas ontem me disse que era o senhor dos saraus
paulistanos, o queridinho das virgens e que, na condição de macho alfa, jamais
se prostraria aos pés de um ser da mesma espécie... O que acontece agora é uma
inversão dessas mesmas afirmações ou o descortina- mento de uma fantasia que
nunca deixou de ser realidade?
— Quer me deixar perdido? Nossa... – volta-se
para si-, o que estou fazendo? Eu disso aquilo mesmo? Não! Não! – vira a
garrafa de novo.
—Cadê você? – inquire o desconhecido, percebendo
a ausência dele no bate-papo.
Ricardo não responde.
—Ei, vai me deixar esperando? Tudo bem! Sou todo
seu nesta noite e o tempo é só um detalhe.
—QUEM É VOCÊ? FALE! – exige com veemência.
—SOU AQUELE A QUEM VOCÊ MAIS DESEJA NESTE MOMENTO!!!
—ESTÁ LOUCO??? – grita.
—Você está! E por mim!
—EU NÃO GOSTO DE HOMENS, MEU NEGÓCIO É MU- LHER,
ENTENDA!
— Tem certeza, majestade? - ironiza o estranho.
—Leia o histórico de nossa conversa e perceba o quanto mudou desde o nosso
último encontro. Você já é meu! Invadi seu corpo e, como um espírito imundo,
desbravo sem piedade cada canto de sua essência, fazendo de seu coração a minha
morada- sentencia o déspota virtual.
—Pare! Pare...- suplica-lhe o jovem. —Você está
me confundindo, eu...eu...
—Quer me conhecer agora? - desafia. —Venha! Venha
para meus braços, vou ajudá-lo a desvendar aquela que sempre foi a sua
verdadeira identidade! Venha, estou louco por ti! Tão louco quanto o lobo por
carne de cordeiro.
— Se-se-serei seu cordeiro? - balbucia Ricardo.
— Se quiser... – responde o enigmático sedutor.
Ricardo dá mais duas ou três goladas na garrafa e
acaba por se revelar.
— ESTOU LOUCO POR VOCÊ!!! ONDE EU O ENCONTRO? FALE! NÃO ESTOU ME AGUENTANDO MAIS!
—Que avanço! - gargalha o desbravador. —Prova de
que a tese estava certa!
—Talvez! Vamos ver isso na hora certa!-
contra-ataca o rapaz, como se a bebida o tivesse libertado de todas as
correntes sociais que o impediam de voar, conhecer novos mundos e prazeres
considerados profanos; ou, como dizia o desconhecido, o verdadeiro Ricardo
agora estava à sua frente, sem qualquer maquilagem, porque o outro Ricardo, o
que a sociedade se acostumara a apreciar com reticências, poderia ser uma
máscara criada para manter em sigilo esta criatura que agora o irrompe despudoradamente,
depois de viver tanto tempo trancafiada nas masmorras intrínsecas de seu
próprio criador.
—Onde quer me encontrar? - pergunta, sinistra e
contundente, o desbravador de identidades.
—Quer que eu vá buscá-lo? - rebate o agora
descaracterizado garanhão das ninfetas da alta sociedade paulistana.
—Nossa! Quanta gentileza! - vibra.
E ali ficam os dois a tramar o caso. O incrível
de tudo é ver o rapaz se entregar à persuasão de um estranho, sem se atentar
para os perigos que poderia estar correndo. Mergulhado numa sensação letárgica
de prazer - algo que só o vinho poderia lhe proporcionar– ele não percebe o
abismo que há entre a realidade e a ficção.
Tal é o desatino que não se importa com a
situação homossexual desenhada entre ambos, pelo contrário, diverte-se com a
possibilidade de adentrar a um novo mundo, regado por belas descobertas e
carinhos exacerbados. E a ira por ter sido cativado por alguém do mesmo sexo
parece, ainda que contrariando todas as expectativas, enterrada a sete palmos
abaixo da terra.
Findado o papo, Ricardo corre para o chuveiro. Às
duas da madrugada o encontrará nas imediações da Rua Augusta. Terá uma noite de
puro êxtase!
Os minutos correm...O rapaz desce às escadarias
que dão acesso ao hall de entrada e quando ia abrir a porta, ouve seu pai
adverti-lo, numa voz rouca e pouco amigável, como já é de hábito:
— Não sabe que é perigoso sair a esta hora,
Ricardo? Perdeu o juízo?
—Faz tempo! – ironiza.
—Aonde vai? Por acaso pretende estragar a festa
de alguma outra conceituada família paulistana?
—Isso não é da sua conta! – responde, de costas
para o pai, com a mão na maçaneta.
—O que está dizendo?
O homem desce aos pulos os degraus e o segura
pelos cabelos.
—Me solte, seu velho rabugento! Não lhe devo
satisfações.
—Que hálito!!! Você bebeu de novo??? Pois só
sairá desta casa na companhia do motorista.
—NÃO MESMO! SOU DONO DO MEU NARIZ E NINGUÉM ME
IMPEDIRÁ DE FAZER O QUE EU QUISER!!! – berra.
—Que “auê” é esse? Ninguém consegue dormir nesta
casa com toda esta gritaria, pois já vou avisando, cobrarei hora extra por cada
minuto que me mantiverem acordada – resmunga Jacira, se aproximando.
—Suzicreide do céu! – assusta-se ao ver o patrão agarrado ao filho. —Mas, mas,
mas o que é isso? O que cê tá fazendo, seu Leonardo? Deixe o moleque.
—Ele quer sair a esta hora e encharcado desse
jeito – põe-se entre o filho e a porta. — Pois só sairá se passar por cima do
meu cadáver!
—Saia da minha frente! Eu tô mandando! Saia! Saia
velho dos infernos!
—Daqui você não sai!
—É mesmo? Pago para ver!
Ricardo o empurra violentamente contra uma mesa
de canto, que vira, estilhaçando um vaso de cerâmica italiano.
—Pare com isso, moleque, se não o encherei de
tabefes agora mesmo – ameaça a mulher, segurando-o pelo braço. —Ele é seu pai e
merece respeito.
—Respeito! Que respeito? Desde quando um
assassino merece respeito? Se não fosse por ele, minha mãe agora estaria viva e
não apodrecendo naquele túmulo.
—Você não sabe do que está falando. – diz o
homem, estarrecido com as palavras do filho. —Pois vou lhe acertar...cadê minha
cinta?
—PAAAAAARE! – grita Jacira. — Vocês parecem duas
crias brabas; quando é que irão se entender?
—Se depender de mim, nunca! – decreta o jovem.
—Não fale assim, moleque dos infernos, sua sorte
tá por um fio. Daqui a pouco quem lhe dará umas boas cintadas serei eu, não seu
pai.
—Ele só me provoca... Não é nem uma da manhã e já
está a me entojar com suas perguntas idiotas. Quem vê pensa que é o pai mais
dedicado do mundo.
—Abaixe esta crista, moleque, você anda muito
topetudo, e peça já desculpas ao seu Leonardo. Ninguém merece ser destratado,
muito menos um pai.
Com os olhos injetados de cólera, Ricardo os
ignora, abre a porta e sai.
—Vou atrás dele, seu Leonardo! Ô bicho ruim! Ele
está sem paradeiro, do jeito como anda, daqui a pouco baterá no senhor.
—Espere, Jacira, espere! Deixe-o ir, é maior de
idade e não temos como impedi-lo.
—Maior de idade? Oxi! Pois se fosse cria minha,
teria essa conversa não, lhe daria uma boa sova, daquela de deixar as per- nas
marcadas.
—Mas não é você que é contra violência, mulher?
—Sou contra violência gratuita, mas o que ele fez
ao senhor não tem perdão! Venha! Vou lhe preparar um chá, precisa se acalmar.
Venha!
O homem resiste.
— Venha! O que há? Está sentindo alguma coisa? –
pergunta, intrigada com o silêncio dele.
—Ele acha que sou o responsável pela morte de
Nathalia... – o homem cai no choro. — Preciso pedir ajuda à Márcia! Ela saberá
me aconselhar. Isso não pode ficar assim.
—Que Márcia? A sua cunhada? Deus que me livre,
Suzicreide! Não vou com a cara daquela bisca. Hum!
—Não fale assim, Jacira! – repreende.
— Tá bom! Tá bom! Mas quanto ao moleque, liga
não, ele tá bêbado; amanhã estará melhor e há de lhe pedir desculpas. Agora
venha, vou lhe fazer um chá de camomila, é bom pros nervos. Venha! Venha! Cuidado
com os cacos! - alerta. —Agora venha, venha, venha logo seu Leonardo, parece
burro empacado. Isso! Venha!
Ao chegar à garagem, Ricardo limpa o rosto,
estava todo marcado pelo suor. Pega um dos vários carros de passeios da família
e invade as ruas da grande São Paulo a cantar pneus. Voando, atravessa todos os
faróis vermelhos, quer logo estar com aquele que ousara desbravar sua alma.
Alguém que só conhece por meio de palavras, mas que, surpreendentemente, tanto
deseja, a ponto de enfrentar a família e invadir a madrugada, ignorando todos
os perigos que só uma metrópole como São Paulo poderia lhe reservar. Chega ao
local marcado faltando quatro minutos. A região está deserta. A escuridão é
assustadora.
Ele não se dá conta dos perigos que está correndo
por se encontrar numa zona dominada por traficantes, cafetões, prostitutas e
garotos de programa. Olha para o relógio, o desbravador está atrasado. “O que
terá acontecido?” – indaga-se, amedrontado.
Passam por ele dois travestis, que não deixam de
provocá-lo, na expectativa de que ele possa ser mais um dos inúmeros clientes
desta fria noite de inverno. Como não há reação à provocação, passam a
ofendê-lo e a chutar o automóvel! São contidos pela aproximação de uma viatura
policial.
—Algum problema, rapaz? - inquire o policial,
baixando o vidro.
— Bem...é... é... - balbucia, tentando conter o
desespero que lhe invade o corpo.
—Veio buscar o quê? Drogas, mulheres, bichas...?
Responda!– exige, com uma lanterna focando o rosto dele.
—Não senhor! Eu...eu...não estou passando muito
bem, acho que minha pressão caiu – disfarça, tentando esconder-se da luz com as
mãos.
— Você bebeu? – desconfia o oficial.
—Não... - treme de medo, poderia ser autuado.
—Dê-me sua carteira de motorista. E assim o jovem
o faz.
—Um Médici... tá bom! Tudo certo! Tem algum
telefone para que possamos contatar sua família? Não tem como dirigir deste
jeito e este lugar é muito perigoso.
—Não é preciso, seu guarda! Já estou quase bom!
Sério! Dentro de alguns minutos conseguirei partir. Juro!
Após as explicações, os guardas partem. Ricardo
continua trêmulo; olha para todos os cantos como se de algum lugar fosse surgir
- como num passe de mágica - a figura desafiadora da internet, alguém que
gostaria de ver, ouvir, bater um papo, tomar algumas doses de vinho, trocar
carícias, fazer sexo de uma forma inusitada, caliente, peculiar e inesquecível.
Mesmo amedrontado, não cessam os devaneios. Conta os minutos, até que não
suporta mais o cansaço e cai no sono. São quase quatro horas da madrugada
quando alguém se aproxima e um tiro é disparado.
Encerra com
a música: (My Immortal - Evanescence).
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1 Prato tipicamente italiano. Consiste em uma
sopa com um caldo (brodo) aromático e muito saboroso que pode ser à base de
carne, frango ou legumes. Cai como uma luva nos dias mais frios do inverno.
2 O Tâmisa é o principal rio da Inglaterra. Por
volta de 1858, ele era tão poluído que sessões do Parlamento às vezes tinham
que ser suspensas devido ao mau cheiro. Foram necessários muitos anos para
recuperar o rio. Construíram-se estações de tratamento do esgoto nas cidades
que antes jogavam seus dejetos diretamente nas águas do Tâmisa. Hoje, mais de
cem espécies de peixes podem ser encontradas no rio.
3 Nome dado aos governadores das províncias chamadas satrapias, nos antigos impérios Aquemênida e Sassânida da Pérsia. Indivíduo muito poderoso e arbitrário; déspota.
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
My Immortal - Evanescence
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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