2x06 - Bonde da Linha 11
de Vinícius Bianchi
— Isso não vai dar em nada.
— Como pode ter tanta certeza?
— Não tenho. Mas é um bom palpite - sorriu o homem de um jeito jocoso, como se soubesse de algo mais.
As manhãs de julho pareciam sempre mais frias naquele canto da cidade. A névoa branca e densa decorava a vista de um jeito funesto, revelando-se o mais adequado ornamento para mais um dia de trabalho na linha 11.
— Estão atrasados de novo…
— Por que você nunca considerou a possibilidade de você estar adiantado, Silveira? - respondeu o mais novo deles com verdadeiro bom-humor, ao fiscal que já ocupava seu posto.
— Todos prontos? Que Deus nos acompanhe em mais um dia! - disse o motorneiro já tomando a manivela com elegância, para que o uniforme cáqui não amarrotasse.
— Amém! - respondeu Rafael, descortinando o medo de uma rotina sinistra que pressentia nunca se acostumar, ainda que perdurasse ali, como condutor, pelo resto de sua vida.
À medida que o bonde tomava as ruas estreitas do centro até encontrar os primeiros passageiros do dia, Rafael voltava ao assunto:
— Silveira, você acha que iremos para o Bonde da Morte?
— Isso não vai dar em nada…
— Você e o Manuel agora combinam respostas? - disse, realmente incrédulo, com uma inocência que lhe era peculiar.
— O Bonde da Morte já somos nós, Rafael… - fez uma pequena pausa ponderando se era melhor ficar calado, ao mesmo tempo em que o elétrico diminuía a velocidade até parar por completo - Vamos, faça seu trabalho… as passagens! - apontava impaciente para as pessoas que subiam, aliviado pelo fim da conversa.
O jovem condutor equilibrava o corpo pelos estribos, recebendo os pagamentos e entregando os tíquetes pela força do hábito. Sua mente estava bem longe dali: exatamente no ponto final daquela linha, enquanto tentava entender o que, no fundo, Silveira queria dizer.
Ecoavam rumores pelas ruas de pedras da cidade, de que tramitavam planos de se aproveitar os trilhos da linha 11 para anexar ao trajeto um vagão fúnebre, levando os mortos dos hospitais do centro, até o campo santo da cidade; o que se tornava um pesadelo popular batizado de “O Bonde da Morte”.
Se já não bastasse repetir aquele percurso inúmeras vezes ao dia até o Cemitério do Fundão, e lidar com a incerteza costumeira se cobrava as passagens de vivos ou de mortos, Rafael temia ter que dividir sua companhia com cadáveres reais “de carne (ainda que fria e imóvel) e osso”, como costumava dizer aos colegas. Não imaginava que o ano de 1935 tomaria um rumo tão esquisito e grotesco, quando se pegava pensando na calorosa festa de Ano Novo de alguns meses atrás. Além de exausto, estava apavorado. Procurava se distrair de seus pensamentos sombrios, ajudando moças e senhoras a subirem e descerem nas paradas. Mas era em vão.
Gostava do trabalho, verdade. Apreciava a companhia rabugenta de Silveira e o modo caricato como Manuel conduzia o bonde. Mas estar justamente na linha 11 era um pesadelo. Ele mesmo já havia vivenciado coisas que não sabia como explicar, tampouco acreditaria, se não fosse ele próprio a testemunhar.
Manuel vivia a contar histórias. Era motorneiro da linha desde o início. Não se incomodava de transitar entre o mundo dos vivos e dos mortos, tantas vezes ao dia. Parecia acostumado com aquilo de tal maneira, que Rafael nunca entenderia; afinal, sentia vorazes e indomáveis calafrios todas as vezes que, já, do início da Avenida da Saudade, era capaz de avistar - ainda pequenino - o Cruzeiro das Almas.
O dia seguiu lento e anuviado. O céu desbotado de cores se envolvia ao ar gelado de um jeito convidativo a um prenúncio macabro. O vento rasgava seco o bonde que, depois de muitos vai e vens, seguia para sua última viagem daquela quarta-feira. Cumpria sua jornada pelas ruas que ainda guardavam vestígios do dia anterior, entre papéis picados e pétalas murchas das comemorações e homenagens aos combatentes de 1932.
No alto da via mais movimentada que cortava o centro, juntou-se aos passageiros um sujeito. Rafael dirigiu-se ao homem na intenção de recolher algumas moedas quando chamou-lhe a atenção a farda, em caimento perfeito ao corpo alto e de tronco largo. Olhava o homem, tentando entender por que seus pensamentos insistiam em lhe arrastar em busca de alguma memória perdida e enterrada, entre tantas outras? Não entendia por qual motivo aquele uniforme lhe prendia tanto A ATENÇÃO, quanto lhe causava estranheza. Algo lhe soava familiar naquele desconhecido.
— Rafael?
Despertou de seu devaneio, com a voz de Manuel chamando por seu nome enquanto apontava com a cabeça para o lado de fora do elétrico. Duas paradas? Pensou o rapaz, curioso sobre como o tempo parecia ter passado bem mais rápido fora de sua cabeça, do que dentro dela. Firme ao estribo, estendeu uma de suas mãos a uma simpática mulher escondida por trás de uma enorme barriga. Ajudou-a a se acomodar, até dar sinal para que Manuel seguisse o percurso. Ao todo, onze preenchiam o vagão, contando com o trio em final de expediente.
A poucas quadras do ponto final, já com a maioria dos bancos de verniz gasto, vazios pelas pessoas que se despediram pelo caminho, Rafael sentiu o ar ficar ainda mais gélido. Talvez fosse pela hora avançada de um típico dia de inverno. Talvez fosse pelo aproximar do macabro cenário da última parada do dia. Percebeu que não era o único que inquietava-se naquele instante final. Manuel tilintava o indicador, enquanto manipulava a manivela como se aguardasse impaciente por algo que demorava a chegar. Silveira olhava para fora com os olhos distantes, bem diferentes do olhar de fiscal que tanto se orgulhava. A mulher por trás da enorme barriga parecia não encontrar conforto em posição alguma, e sua respiração ficava cada vez mais frenética e alta. Apenas o homem fardado permanecia rijo e alerta, sem demonstrar nada além da postura que qualquer bom soldado deve ter.
Assim que o elétrico aterrou de frente aos portões do Cemitério do Fundão, Rafael auxiliou, zeloso, sua última passageira para que descesse em segurança. Qualquer que fosse o destino daquelas pessoas, a partir de agora seria a pé; afinal, a jornada do bonde naquele dia, se encerrava ali.
Assim que a mulher pousou os pés no chão, curvou-se para frente abraçando a barriga, enquanto soltava um discreto grunhido. O jovem condutor, assustado, aproximou-se dela a fim de se certificar se ela sentia-se bem. Deu um pulo para trás, ao ser surpreendido por um grito estarrecedor da dor de alguém que era eviscerada viva.
Manuel, ainda de dentro do bonde, gritava, certo de que a passageira entrava em trabalho de parto. Silveira pulou para fora e correu aos arredores, em busca de qualquer ajuda.
—Eu possuo treinamento médico. Me permitam ajudar - surgiu uma voz, anunciada pela sombra dos escuros e lustrados coturnos que aterrissaram ao lado da mulher.
Rafael dava passos para trás, não para que o sujeito fardado que desembarcou do bonde seguro e tranquilo, pudesse chegar até a mulher; mas sim, porque aquela cena e aquele cenário se fundiam de um jeito estapafúrdio e aterrorizante, cuja combinação nefasta ele nunca imaginou ser possível existir. Mas existia, e estava bem diante de seus olhos.
A mulher gritava muito, fazendo com que a trilha daquele momento soasse ainda mais escabrosa. Ao chão, exausta, suja e rodeada por estranhos, sentiu o medo dar trégua, assim que o homem depositou em seus braços a criança miúda e chorosa, enquanto ele retirava-se com a pressa de quem estava atrasado para um compromisso inadiável.
— Está fazendo o quê parado aí, Rafael? Vai atrás dele! Pergunte seu nome e o agradeça! - disse Manuel, enquanto enrolava a menina em seu paletó - que o aguardava ao fim de cada expediente - tão engomado quanto seu uniforme.
Ainda estupefato, o jovem rapaz disparou atrás do homem fardado. Aquele tom amarronzado que tanto lhe causava estranheza, permitia que ainda o avistasse com certo destaque, mesmo na escuridão. Corria, enquanto via o Cruzeiro das Almas chegando cada vez mais perto de si. Não é possível, para onde esse sujeito está indo?
— Ei, senhor! Por favor, me diga o seu nome! Obrigado por ajudar a pobre mulher… não sei o que teria sido de nós sem você… não há viva alma por aqui e… ei, soldado, por favor! - interrompia a corrida esbaforido, apoiando as mãos sobre os joelhos, enquanto buscava recompor o oxigênio que se dissipou dos seus pulmões. O ar dali lhe recaía de um jeito sinistro.
Sentiu uma zonzeira lhe escurecer as vistas, quando notou o que tanto lhe prendia a atenção naquele sujeito. ‘’Mas… esses uniformes… não existem mais há três anos… o que está acontecendo?’’ - pensava. Ao passo em que se esforçava para não perder o homem que se tornava um vulto, misturado ao instante caótico.
Como num rádio fora de sintonia, ouvia uma asquerosa melodia que sussurrava seu nome e alguns chiados. Girava apavorado, o corpo em busca de quem quer que fosse que lhe chamava. O som de vozes desconhecidas e embaralhadas, somado ao cheiro das velas queimadas ao redor do Cruzeiro das Almas, lhe atiçava um pavor que corria feito veneno em seu corpo.
Sentiu, pela primeira vez, como o coração em seu mais violento batimento, era capaz de empurrar a carne de dentro para fora sem pudor, ao mesmo tempo em que pousava em seu ombro um calor descomunal.
— Calma. Está tudo bem… você vai ficar bem…
A aflição o paralisou. Olhava sem piscar para o homem que surgira, inesperadamente, às suas costas. Como?
— Eu estava atrás de você… como…? - o terror lhe consumia todas as palavras e mal conseguia terminar qualquer pensamento, que dirá transformá-lo em palavras.
— Rafael!
A voz firme lhe soava conhecida, e não o aterrorizava mais do que o silêncio daquele instante. Seguia com os olhos arregalados e fixos naquele sujeito fardado que retribuía o olhar, revelando uma palidez em tom incomum que se destacava no breu. Seus olhos opacos pareciam sem vida, ao encarar tão profundamente o condutor, tomado por um terror que desconhecia, e incapaz de ser narrado.
— Rafael! - lhe invadia novamente a voz…
Suspirou alto, de um jeito visceral, buscando pelo ar que havia se expirado. Em um movimento impensado, puxado por um reflexo qualquer que ainda lhe restava, virou-se em direção àquele som que repetia seu nome. Avistou, ao longe, Silveira o chamando para que, finalmente, partissem. Ao seu lado, pôde ainda ver Manuel rijo, como se assistisse, anestesiado, toda aquela cena, sem que houvesse um tablado nem picadeiro.
— Anda logo, garoto! Vamos embora! - insistia o fiscal, ansioso para que aquele dia chegasse ao fim.
Rafael abaixou a cabeça. Sentia-se em transe. Assistia em câmera lenta a dúvida e a confusão lhe consumindo por dentro, célula a célula, tecido a tecido, órgão a órgão; até que não restasse mais nada de si, tampouco de sua razão. Quando buscou novamente a linha do horizonte com os olhos, estava acompanhado apenas pelo medo. Ao longe, via a figura inebriada aquele sujeito desaparecer de um jeito funesto, nebuloso, dissipando-se em meio a colunas esculpidas de concreto.
— Não pode ser - avançou alguns poucos passos, cochichando para si mesmo. Ainda não havia visto de perto o monumento inaugurado um dia antes, em homenagem à bravura dos soldados mortos em combate em 1932.
Caminhou entre as colunas em busca daquele sujeito. Percebia o ar cada vez mais estafante, rarefeito, em paradoxo aos seus pés, os quais sentia pisarem macios. Tinha a estranha sensação de chamarem pelo seu nome, enquanto fazia-se a escuridão ao seu redor, em desarmonia com o pouco feixe da lua que atravessava o céu.
Caminhava incansável atrás do sujeito que se transformara em nada, mesmo sabendo que, no fundo, nunca mais o encontraria. Via-se no centro de uma estranha dança de sombras que o seduziam. Caminhava em torno do breu. Aos poucos tornava-se igualmente parte daquela escuridão. E assim foi, até não ser mais nada. Nem ninguém. Também.
Na manhã seguinte, a vida seguiu desinteressada do passado, mesmo com o frescor tétrico da noite anterior. O bonde percorria os trilhos no frenético vai e vem de pessoas. Menos Manuel, que sempre que chegava ao ponto final, reencontrava-se com sua lembrança estacionada ali, presa à cena funesta da véspera.
— Rafael! - gritava em pensamento pelo seu condutor.
E apenas de silêncio era preenchido o tempo. Um tempo no qual já não se contava mais as horas. E onde Rafael - em sua loucura - restava; tornando-se apenas uma lembrança. Nunca mais foi visto. Quem sabe vagava, incansável, atrás de um sujeito que ninguém nunca mais encontraria, senão na fotografia estampada no mausoléu gelado e cinzento. Quem sabe um dia encontrem sua fotografia, também.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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