O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 08
_Não podemos atendê-lo sem um plano de saúde, as normas da instituição
são bem claras – diz uma representante do hospital, bastante contrariada.
_ Precisamos de sua
ajuda, o atendimento público mais próximo está a mais de uma hora daqui, se
este homem não for atendido agora, virá a óbito. É nosso dever salvá-lo,
senhora! – argumenta o motorista da ambulância, com a preocupação estampada à
face. _ Ninguém merece morrer deste jeito!
_ Até entendo, mas a
política desta empresa é clara, não recebemos pacientes que não apresentem
condições de arcar com as despesas...
_Vocês estão negando
socorro a uma vítima? É isso que estou entendendo?
– Indigna-se o médico, achegando-se. _ Isso é crime! Em que país
vocês moram?
_Com todo respeito, no
mesmo que o seu. E o senhor, como ninguém mais, sabe como funcionam as regras
de instituições particulares deste porte, ou pelo menos deveria. Não estamos
negando atendimento, longe disso, mas não há como ofertar um leito a este
paciente no momento.
_Por favor, ajudem meu
filho! – implora a mulher, visivelmente esgotada, limpando as lágrimas com um
pano surrado. _ Não o deixem morrer como um indigente. Assim como vocês, ele já
salvou muitas vidas um dia.
_ Quero que a senhora
entenda que não negamos ajuda...
_ E o que fazem então?
– inquire, com firmeza, a enfermeira.
_ Nós cumprimos todas
as determinações do Ministério da Saúde, mas...
_... porém, contudo,
entretanto, todavia... quantas conjunções adversativas mais serão necessárias
para que assuma que este hospital negligencia atendimento a um cidadão de
origem humilde? - entrecorta-a o médico. _ Sejamos claros, você não quer
recebê-lo e não irá, a não ser que tenha um mandado judicial, não é isso?
_ Eu não disse isso! –
desvia-se da pergunta. _ A política do hospital é clara...
_Dane-se a política do
hospital, fiz o juramento de Hipócrates e salvar vidas é o meu dever, então, se
a senhora não o receber, chamaremos a polícia. Aliás, quer aqui a polícia ou a
imprensa?
_O senhor está me
coagindo, isso é crime e o denunciarei, se persistir nesta sandice – a mulher
rebate a ameaça.
_ Sandice é o que
fazem ao negar o direito mais básico que existe a um ser humano: o da vida.
As atenções se voltam
para a discussão, não há quem não se apiede das condições do rapaz e se revolte
com o descaso que diariamente acontece em muitas instituições como esta pelo
país.
_ Vocês não vão mesmo
recebê-lo? Ele está morrendo! Negam-lhe ajuda por não apresentar os recursos
para custear o próprio tratamento? Cadê a política de solidariedade deste
hospital? – cobra o médico. _ Formei-me para salvar vidas, ricas ou pobres,
negras, brancas ou amarelas, moradoras dos Jardins ou da favela Pantanal... Formei-me
para salvar vidas! – repete por duas ou três vezes. _E estou perdendo uma por
conta das diretrizes hipócritas de um sistema insensível, que primeiro olha o
bolso do paciente para só depois acolhê-lo.
_Palavras bonitas
enobrecem um texto, mas não mudam a realidade... – desdenha a representante.
_ Você está zombando
de todos nós? – pergunta com veemência a enfermeira.
Compadecido com a luta
daquela equipe pela sobrevivência do paciente, Ricardo se aproxima. Demonstra
repulsa à desfaçatez da mulher, cujas justificativas, baseadas em regulamentos
próprios, violam todas as legislações que tratam do tema, expondo a crueldade
que há neste meio.
_Imagine! Longe disso!
_ ENTÃO O QUE QUER
DIZER? – exige o médico. _DEIXE DE TANTAS VOLTAS, VAMOS, ASSUMA, MEU PACIENTE
NÃO SERÁ RECEBIDO POR NÃO PROVER DE RECURSOS NECESSÁRIOS NEM SER DETENTOR DE UM
SOBRENOME DE DESTAQUE NA SOCIEDADE... NÃO É ISSO MESMO?
_Estou chamando a
polícia! – anuncia o motorista, revoltado com a atitude da mulher.
_ Nem se quiséssemos
poderíamos aceitá-lo, não temos vaga – muda de estratégia, na tentativa de
desencorajá-los. _ Estamos com a capacidade física esgotada.
_ Ajude meu filho,
dona! Ele vai morrer! Ele vai morrer! Por nosso senhor Jesus Cristo,
ajude!!! – suplica a mãe.
_ ATENDA-O!!! – grita
a enfermeira.
O doente ensaia um
ataque cardíaco, que, nas condições em que se encontra, poderia ser fatal.
_Acalmem-se, senhores
– abaixa o tom da voz-, estão assustando os demais pacientes, não percebem?
_ E ELE ESTÁ MORRENDO
– aponta para o homem -, NÃO PERCEBE? ENTRE ASSUSTAR SEUS “ILUSTRES PACIENTES”
E SALVAR UMA VIDA, QUAL OPÇÃO LHE PARECE MAIS RAZOÁVEL? – contra-ataca o
médico.
_Atenda-o! – determina
Ricardo, observando o doente ao lado da maca, de costas para eles, inicialmente
ignorado pelos envolvidos.
_ Vou chamar a
polícia! Não terá jeito! – o motorista saca-se do celular. _ Muita gente aqui
dormirá hoje no xadrez.
_ Meu Deus! Já lhes
expliquei, o hospital tem normas... - tenta a representante, uma vez mais,
persuadi-los.
_ ATENDA-O, JÁ! QUAL
PARTE NÃO ENTENDEU DO QUE EU DISSE? - cobra Ricardo, visivelmente inconformado,
ao voltar-se para a representante. _ ATENDA-O, JÁ!
_ Senhor, não se
envolva! – repreende a mulher, sem atentar-se às origens do rapaz.
_E A SENHORA
FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO! – seus olhos crescem à medida que os dela o
desprezam.
_ E quem é o
senhor para mandar em alguma coisa? – corre os olhos por ele. _ Eu o respeito e
quero que entenda, nas condições apresentadas, não podemos recebê-lo, além de
não haver mais disponibilidade de leito.
_ Quanta
hipocrisia! Atenda-o, já! É surda ou simplesmente fantoche de circo?
Marcos achega-se sem
ser notado, acompanha todo o desaguisado, mas ao encontrar o doente, leva a mão
à boca para segurar o grito. Fora de si, dá dois ou três passos para trás e se
esconde numa sala ao lado; estava sem fôlego, com os olhos injetados de pavor e
a mente devastada por pensamentos sombrios.
_ É...É...É...
E-E-E-ELE!!! MAS... MAS... MAS COMO? COMO? E-E-EU ME-ME-MESMO O
MATEI!!! SE BEM QUE... – coça a cabeça com os olhos descrentes- VIVO, VIVO NÃO
TÁ, ATÉ PARECE UMA MÚMIA SAINDO DA TUMBA.
_ O senhor me respeite
ou chamarei a segurança! Quem pensa que é para me tratar assim?
_ Pois chame, será um
prazer vê-la sair daqui não em um carro de polícia, mas a pontapés, porque é o
que acontecerá se não o atender agora- desafia Ricardo.
O motorista, a
enfermeira e o médico ficam inertes diante da postura imponente do rapaz.
_ Pontapés?! – ironiza
a mulher. _ Quanta pretensão! Quem o senhor pensa que é? Por acaso alguém da
família Médici, Marcondes, Matarazzo...? Hum! Coitado!
_ Exatamente!-
confirma o rapaz para o desespero dela, em cuja face desaparece o sorriso de
sarcasmo.
_ O SE-SE-SE-NHOR É
UM...UM...
_... MÉDICI!-
completa. _ Ricardo Médici, para ser mais exato.
_Você é parente da
doutora Márcia Médici? – pergunta o médico, surpreso.
_É minha tia!
_Pois ela é uma grande
profissional, assisto a todas as entrevistas e palestras que ela ministra. Uma
mulher muito talentosa, de admirável reputação na área da medicina psiquiátrica
de nossa cidade.
_Ele é sobrinho de
Márcia Médici? – pergunta-se a representante, consternada, alterando a postura,
que agora se mostra afável e respeitosa._ Que prazer recebê-lo em nosso
hospital!
_Para mim não é prazer
nenhum; ninguém gosta de estar num lugar desses, a não ser você, que a julgar
pelo que vi, não deveria estar no cargo que ocupa.
_Senhor, me
perdoe...eu...
_Faça já o que mandei!
– entrecorta-a, com ar de grandeza.
_Claro! Claro! Pessoal
– chama pelos assistentes aos berros-, corra, leve o homem! Ele corre risco de
morte. Vamos!
_Mas não há leito,
lembra-se? – zomba o médico.
_Ah...sim...mas
daremos um jeito, ele precisa de ajuda e, neste hospital, o lema “Servir bem
para servir sempre” é levado à risca – responde a
mulher, retirando-se rapidamente de cena.
_Parabéns pelo gesto!
Pessoas como o senhor engradecem o mundo! – diz a equipe médica, despedindo-se.
_Meu rapaz, muito
obrigado, mas não temos como lhe pagar, moramos num cortiço e vivemos da esmola
mensal do governo! – diz a mãe, limpando as lágrimas nos cantos do vestido de
chita. _ Ele só foi aceito porque o senhor pediu, mas logo será expulso, assim
como qualquer outro pobre que necessite de auxílio médico particular neste
país. Sabe, por um momento a gente deixa de ser de carne e osso e representa
apenas um número qualquer, perdido na imensidão, sem direito ao mínimo para
sobreviver. Estou envergonhada de lhe dizer estas coisas, mas às vezes penso
que morrer seria melhor, invisível a gente já é. Se retirados do mundo, ninguém
perceberia.
Ricardo se comove.
_ Não se preocupe!
Assumirei todas as custas enquanto ele estiver aqui.
_ E por que faria
isso?
_ Apenas faço... - ele
não consegue explicar.
_ Meu Jesus, que homem
bom! – beija-lhe as mãos em gratidão.
Ia se ajoelhando,
quando o rapaz a segura pelos ombros.
_Senhora, o que está
fazendo? Não precisa disso!
_Deus seja louvado!
Que homem bom! – diz a mulher, abraçando-o em lágrimas de dor. _Deus há de lhe
devolver em dobro todo o bem que agora faz ao meu filho. Nunca me esquecerei do
senhor. Nunca!
Compadecido daquela
criatura, ele nada responde. É como se um broto de bondade arrebentasse o
terreno árido de seu coração e ganhasse a força de um tronco, com galhos
robustos e folhas vívidas. É um Ricardo muito diferente daquele que destratou o
nordestino José.
_Pelo que vi, ele
pagará todo o tratamento daquele bicho! Seu Ricardo está louco! – comenta
Marcos, à espreita, após ouvir a conversa. _ Ele não pode! Não pode! Como posso
impedir isso? Já sei! – pega o celular. _ Jacira, você não vai acreditar.
_O que cê qué, Fifi
dos infernos? Não me vai dizer que tem outra bomba pra me passar.
_Pois desta vez é uma
bomba mesmo. E nuclear!
_ Oxi! O que
aconteceu? Solte o verbo! Está me deixando nervosa!
_ELE ESTÁ VIVO!
VIVINHO DA SILVA!
_Ele quem? Oxi!!! Fale
devagar, não estou entendendo nada. QUEM??? – assusta-se. _ NÃO É POSSÍVEL!!! -
o telefone cai de sua mão assim que a notícia é confirmada. _Não pode ser!
Santo Deus! Que sina o desta família!
Apalpa o peito com
força.
_Daqui a pouco quem
terá um piripaque serei eu! Não acredito! Depois de tanto sofrimento! Não
acredito! – diz, cobrindo o rosto com as mãos.
_Nem eu, Jacira! –
responde Nathalia, após saber da existência do rapaz.
_Seu Leonardo, uma
fruta? Frutinha mesmo? O mundo está perdido! E como a senhora descobriu?
_Recebi um telefonema
anônimo.
_E a senhora acredita
em telefonema anônimo? Deve ser algum desses invejosos de plantão, sabe como é,
vocês são cortejados pelas principais famílias da cidade.
_Não! A pessoa que
ligou me deu todos os detalhes, que terminei por confirmar.
_Seja mais clara, dona
Nathalia! Sou burra de pai e mãe e não consigo acompanhar o seu raciocínio de
gente rica.
_Lembra-se do dia em
que Leonardo viajara a Bauru, no interior do Estado, para tratar de assuntos do
trabalho? Pois era mentira!
_É mesmo,
Suzicreide??? – empina a cabeça, pondo a mão na cintura. _ Pois diga mais, sô
todo ouvidos. Como a senhora descobriu?
_ Liguei no hotel em
que disse ter ficado; não houve nenhuma reserva em seu nome.
_Mas... mas, dona
Nathalia, até aí não vejo nada de mais, ele pode ter ficado em outro lugar.
_ E ficou, mas não em
Bauru.
_Oxi! Como assim,
dona?
_ Em Ribeirão Preto.
_ E como descobriu?
_ Pela fatura do
cartão de crédito. Lá constava uma reserva nesta data. Então liguei para o
hotel. De início me negaram a informação, alegando sigilo. Persuadi, dizendo
que eu era a esposa dele e que ele havia sumido; temia um acidente ou algo do
tipo. Caíram! Confirmaram a hospedagem e o nome do acompanhante, um jovem dez
anos mais novo que ele, que se passara por “um amigo”.
_Dona Nathalia, mas o
que tem isso? Talvez fosse mesmo um amigo...
_E desde quando
Leonardo dividiria o quarto com alguém? Sabe muito bem como ele adora
exclusividade.
_E se não tivessem
mais quartos disponíveis?
_Ele compraria o
hotel. Do jeito como é, nunca se sujeitaria a isso, mesmo que a situação o
obrigasse.
_Acho que está
exagerando.
_Pode até ser, por
isso, preciso de sua ajuda.
_Minha? Oxi! Não
entendo nada desta história de homem com homem, até tenho umas curiosidades,
mais saber a fundo, não sei não.
_A pessoa que me
passou a informação deu-me um endereço de onde eles sempre se encontram aqui em
São Paulo.
_Sangue de Jesus tem
poder!
_E agora iremos até
lá!
_A senhora irá
flagrá-lo com a boca na botija? Sei não, Suzicreide! Esta história não vai
prestar.
_É a única maneira que
tenho para deitar a cabeça na cama e voltar a dormir em paz. Ajude-me, querida
Jacira! Estou sozinha! – começa a chorar. – Já se sentiu vazia alguma vez? Pois
é assim que me sinto! De um vazio imenso que está a me consumir. Não aguento
mais, preciso pôr um fim em tudo isso. E só tenho você! Só!
_ E o menino Ricardo?
O que faremos com ele?
_Pegue-o enquanto
preparo o carro.
_A senhora não está
pensando em entrar em algum arranca-rabo, como nas novelas, né, dona Nathalia?
Imagine a gente nas capas das revistas ou na boca do Cid Moreira1?
Nem o cabelo fiz! E as unhas então? O esmalte está todo quebrado. Seria uma
vergonha!
_Pare de brincadeiras!
– adverte-a._ A coisa é séria!
_ A senhora me
desculpe, se for para aparecer na imprensa, que seja elegante como a Maitê
Proença. Aliás, pensando bem, não seria melhor a senhora ir com sua irmã? Vai
que tem uma crise de nervos, ela poderia lhe dar logo de cara um sossega leão.
_Não! Márcia
comemoraria o feito, ela sempre me alertou de que Leonardo não era o que sempre
demonstrou.
_A senhora falou de
telefonema anônimo, não foi?
_Sei do que está
pensando...ela não seria capaz!
_Será? Aquela bicha é
muito mascarada, sei não! A senhora me desculpe, sei que é sua irmã,
mas não vou com a cara dela; se acha demais naqueles saltos de “origem
italiana”. Parece uma tripa escorrida numa perna-de-pau – gargalha,
desculpando-se em seguida, ao perceber que a mulher não havia apreciado o
comentário. _Saiu sem querer! Bem, vou buscar o moleque, enquanto a senhora
liga o “poisé”.
Decidida, a mulher
junto ao filho e à empregada atravessam a cidade, que a esta hora, prepara-se
para dormir. Nada a impediria de descobrir se o marido era mesmo um adúltero e
logo com alguém do mesmo sexo. Corria sem parar nos sinaleiros, para o
desespero da empregada, que no banco de trás, trazia a criança ao colo.
_ Suzicreide do céu! A
senhora quer catar o marido pulando a cerca ou está preparando o nosso enterro?
Ela não responde.
_Vá mais devagar, o
moleque vai acordar e daí o seu plano irá por terra, porque, do jeito como ele
é curioso, assim que ver o pai, gritará por ele e a senhora poderá ser
desmascarada.
Atende ao pedido da
empregada.
Chegam ao destino.
_Eita, que lugar chique,
Suzicreide!- diz, admirada. _ Com todo respeito, acho que vô se amante do seu
marido também, vai que ele me traz pra cá, porque a senhora sabe, pobre só
conhece Brasilândia, Tremembé, Jardim Ângela, Capão Redondo e olhe lá... Hum!
Mas, me diga, dona Nathalia, onde estamos?
_ Em Higienópolis, uma
das regiões mais nobres e altas de São Paulo, também conhecida como espigão da
paulista. Mas não estamos aqui para falar disso, quero flagrar aquele infeliz
me traindo.
_Tem o endereço de
onde estejam?
_Claro – afirma,
parando ao lado de um edifício.
_É aqui? São muitos
apartamentos.
_Sim! Fique onde está!
– determina, descendo do carro.
_Mas o que vai fazer,
dona Nathalia? Ei, ei, espere, pode ser perigoso.
_O senhor pode me
ajudar? – pergunta a mulher ao porteiro, um senhor de sessenta e
poucos anos, com um longo bigode, num distinto uniforme em que era possível ler
o nome do lugar.
_Pode falar! O que a
senhora deseja?
_Estou procurando um
apartamento para comprar.
_ A esta hora? –
estranha.
_E tem hora para
comprar um novo imóvel? – dá uma risadinha sem graça.
_Não! Mas o comum é
que isso ocorra durante o dia – responde, ressabiado._ Olhe, espere um minuto,
vou pegar um copo d’água.
Nathalia se retira
assim que o homem atravessa uma porta; tinha certeza de que ele estava indo
chamar a polícia, sinal de que sua abordagem havia mesmo sido de um amadorismo
inacreditável.
_Que droga!!! – berra,
entrando no carro.
_Mas o que foi?
Conseguiu pegar o infeliz na hora do vamo vê? E como é que é? – fica sem graça
ao cair em si _Hum! Desculpe! Falei de mais!
_Abaixe! Abaixe,
Jacira!
_É da polícia? Eu não
fiz nada! Sou inocente, Suzicreide!
_Cale a boca! – pede,
enquanto o porteiro, à calçada, corria os olhos para ver se a encontrava. _
Ufa! Ele já foi. Quase me pegou.
_ Estava com medo de
quê? Aff!
Ela não responde.
As horas passam. E às
três e meia da manhã, Leonardo aparece ao lado de seu amigo. Um jovem louro,
alto, com olhos da cor do mel, lábios bem-feitos, cútis invejável, porte
atlético de causar suspiro em qualquer criatura... Um deus!
_Aquele é o homem
dele? Oxi! É lindo demais! Quisera eu estar no lugar dele, porque só pego
pangaré! Desculpa aí, dona Nathalia, mas minha língua não tem freio.
_Cuidado para não
ficar sem ela – ameaça a mulher, sentindo-se diminuída. _ Realmente,
ele despertaria a ira de Narciso2.
_ Tem outro na jogada?
Aff! Seu Leonardo é um “leão”, hein, Suzicreide? – comenta, não acompanhando o
comentário da patroa._ Que vigor!
_E assim como Narciso,
toda criatura possui sua Nêmesis3 e
esta história não seria diferente.
_ Nême...o quê? Não
entendi nada! Aff! A senhora diz cada coisa difícil, meu primário não
acompanha, Suzicreide!
_Veja, eles deram as
mãos... Não acredito! – grita, acordando Ricardo, que
chora assustado,
atraindo a atenção do homem, que estaca a poucos metros, surpreso, ao
reconhecer a placa do veículo.
Ela desce do carro e
se aproxima; quando seus olhos, flamejando de cólera,
encontram-se aos dele,
dispara:
_Então era verdade,
Leonardo? Como pôde fazer isso comigo? Como? Sou sua esposa e a mãe de seu
filho. Fale!
_ Falar o quê? –
pergunta Jacira, resgatando-se das lembranças. _ O que ele poderia dizer diante do flagrante? Nada! Mas hoje salvar o
moleque das mãos daquela peste é o meu dever e isso farei. Pois vô me arrumar,
quero vê esse sujeito diante desses olhos que a terra há de comer... E ai dele
se me levantar um dedo...A coisa não vai prestar!
_Jacira...Jacira, cadê
você, mulher? Por que não fala nada? – Marcos desliga, depois de muita
insistência. _ Que mulher doida, não deu tempo nem de falar que o bicho está
igual a uma caveira de tão seco. Será que ela passou mal? Só falta essa! Quem
lavará minhas cuecas agora?
_Marcos, onde você
estava? – pergunta o jovem Médici ao se aproximar.
_Aqui, senhor! Aqui!
Eu... bem... quer dizer... vou direto ao assunto, por que ajudou
aquele sujeito? Vi tudo!
_Você estava aqui?
_Não, sim, não... quer
dizer, eu estava chegando – atrapalha-se todo.
_Não sei! Tive pena!
_O SENHOR???- dá um
sorriso amarelo. _ Mais fácil Jesus voltar à Terra!
_ O que disse? Repita!
_ EU? NADA! - tenta se
corrigir. _Fico feliz que tenha feito isso, porque quem ajuda aos pobres, empresta
a Deus.
_ Isso nada tem a ver
com bondade; senti que deveria fazer, não me pergunte o motivo.
_E como está seu
Leonardo?
_Está melhor! O médico
não soube explicar o que houve hoje à tarde. Ele estava estável, de repente foi
parar na U.T.I. Por pouco não o perco! Bem, talvez seja isso que me motivou a
ajudar aquele homem... Depois que vi a mãe dele naquele estado, me coloquei no
lugar, o resto você já sabe! Acho que tudo isso mexeu comigo.
_Verdade!!! Verdade!!!
– confirma o chofer, em meio a outras ironias. _ E como mexeu!!! Queria que se
colocasse no lugar do meu salário!!!
_Continue com suas
gracinhas que o olho da rua será o seu destino, até porque, ainda não lhe
perdoei de todo. Só você para quebrar um vaso em minhas costas, a sorte é que
era fino, senão...
_Desculpe, senhor!
Desculpe! A situação exigiu uma reação rápida, então... – diz, enquanto o jovem
se afasta. _Mal ele sabe que foi aquele infeliz quem desgraçou sua família. Que
ironia do destino! Se alguém um dia me dissesse que o jovem Médici salvaria o
ex-amante de seu pai, eu jamais acreditaria.
_Alô! Sim! É Ricardo.
Quem é? Tudo bem, Benício? Não, também não a vi; aliás, estou atrás dela desde
o início da noite – diz ao irmão de Anna, que está à procura dela. _ Liguei
diversas vezes também, mandei mensagens e até agora ela não me respondeu. Se eu
souber de algo, aviso sim! Fique tranquilo – desliga.
Ao se aproximar da
janela do corredor, avista, ao longe, a bela São Paulo repousando sob os mantos
finos ora trapos traiçoeiros da dama da noite.
_Onde será que aquela
louca se meteu? Decerto, está tramando alguma, se não, como explicar este
estranho sumiço? Hum! E tudo por culpa daquele ser dos infernos! – recorda-se
do Desbravador. _ Mas ele me paga! Ei de descobrir quem ele é e saberá do que
sou capaz para limpar minha honra. Ele não perde por esperar, seus dias estão
contados!
Encerra com a música: (Candle in the Wind - Elton John)
_____
1 Alcides Alves
Moreira, profissionalmente conhecido como Cid Moreira , é
jornalista, locutor e apresentador brasileiro em atividade desde 1947. É famoso
por sua voz grave e singular, a qual impõe a sensação de um eco aos
espectadores, e por apresentar entre 1969 e 1996 o Jornal Nacional da
Rede Globo de Televisão, sendo um recordista como o âncora que mais tempo
esteve à frente de um mesmo telejornal.
2 Narciso era
filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Considerado um jovem de extrema
beleza, mas por outro lado também de arrogância. Na mitologia grega vários
personagens são rejeitados por Narciso, fatos que acabaram atraindo sobre ele
uma maldição.
3 Nêmesis é a deusa da vingança divina. Em desaprovação à arrogância de Narciso, fez com que ele se apaixonasse pelo próprio reflexo que vira nas águas de um lago.
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
Candle in the Wind - Elton John
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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