3x01 - Anhangá e Acauã: O Amor Além das Lendas
de Jefferson Costa Machado
Havia acabado de chegar da loja de móveis que administro quando Carmen
logo gritou:
— Ismael, tire os sapatos! Eu acabei de limpar a casa.
Fiquei calado, não falei nada, fiz o que ela pediu. Será que ela não
podia nem perguntar como estou? Será que tudo o que importa para ela é esse
chão? Tudo isso me fazia refletir sobre minha vida. Era um casamento de 40
anos. Tínhamos passado por muitas coisas juntos. Nossa única filha já tinha
casado e saído de casa, e eu já era avô. E nossa vida se resumia assim: quando
Carmen não estava na casa da irmã dela, que morava ao nosso lado, estava com os
olhos na bendita novela. Aos domingos, nossa diversão se resumia aos sermões do
pastor da congregação.
Eram quase 19:00 quando pensei:
"Sabe o que vou fazer? Vou à orla, que fica próxima de casa." Vesti
qualquer roupa e saí. Fiquei olhando o bater das ondas no quebra-mar e pensando
na minha vida. Lembrei-me da minha infância nos meados da década de 60, da
nossa casa pequena num bairro distante do centro da cidade. Recordei do meu
amigo Wilson, que sempre brincava comigo com sua carreta preta. Quando ele foi
embora, senti tanta saudade que chorei. Meus pensamentos foram interrompidos
por uma voz veludosa que dizia:
— A Baía vista pela noite tem sua beleza singular, não acha?
Quando virei, estava aquele homem, alto, branco, de cabelos grisalhos e
olhos amendoados. Seu nome era Lauro. Existe um ditado que diz "Meu santo
bateu com o dele", e foi algo do tipo que aconteceu. A partir desse dia,
todas as quintas combinávamos de estar na orla do rio. O "Ver-o-Rio",
como chamavam, era um lugar frequentado por jovens e casais da cidade que
vinham paquerar e namorar. E lá estava eu e Lauro, dois sessentões jogando
conversa fora na beira do rio.
Lauro morava sozinho. Sempre foi solteiro e nunca casou. Seus parentes
mais próximos estavam em São Paulo, longe de Belém. Aposentado, sentia-se
sozinho muitas vezes. Para nós, a sociedade cobra um preço alto, pois não temos
mais a jovialidade de tempos passados.
E quando percebi, somente as quintas-feiras já não eram suficientes para
estar com Lauro. "Matávamos" a saudade com mensagens de texto ou até
mesmo com ligações demoradas que entravam pela noite. Falávamos sobre tudo,
sobre a vida, sobre política, sobre o valor da amizade e a solidão.
Por meio de Lauro, eu lembrava de Wilson, o meu amigo de infância de
quem eu chorei quando foi embora. Por intermédio de Lauro, eu conheci a vontade
de viver e enxergar a vida mais colorida.
Lauro, certa vez, me convidou:
— Ismael, vamos em casa? No domingo, tem jogo.
Como eu poderia negar um convite de Lauro?
E no domingo, lá estava eu. Bebemos, comemos e rimos. Estar com ele era
como esquecer de tudo que estava ao meu redor, dos problemas da vida e de
Carmen. Estávamos sentados no sofá de sua casa, bem à vontade, quando meus
olhos se concentraram na boca de Lauro. Eu tentei evitar, mas era algo mais
forte do que eu. Aquele sentimento já tinha tomado conta de mim, ele estava lá
dentro e eu tentava segurá-lo, como se aprisionasse uma onça furiosa. Eu, um
homem de 65 anos, ex-militar e evangélico, não poderia nem deveria pensar
nisso! Lauro me olhava, ria e aparentava olhar também para minha boca. Entre
cada palavra que conversávamos, os pensamentos transpassavam, e já não sabia no
que pensar, no que falar. O coração acelerava, aquele calor tomava conta do meu
corpo e me senti por alguns segundos flutuando.
Quando percebi, nossas bocas se tocaram e nosso beijo foi como o de dois
adolescentes apaixonados. Dois sessentões se beijando? Não tínhamos o direito
de nos amar? De viver?
Tudo aquilo me confundia. Pois a imagem que eu tinha de "gay"
era aquele cara efeminado, e como eu, um homem com mais de 60 anos, poderia
sentir aquilo por outro homem? É bem verdade que eu já tinha sentido aquilo por
Wilson e ele tinha despertado aquele sentimento em mim. Porém, tentei jogar
aquele passado fora. Esquecer tudo aquilo. Eu havia aprendido que era pecado.
Mas por mais que eu lutasse, aquele desejo vinha com mais força e me fazia
sentir esse tesão por homem. Eu pensei: "Quando eu casar e construir uma
família, isso vai passar, é só um fetiche", mas não, cada vez voltava mais
intenso.
Depois desse dia, tudo mudou. As visitas à sua casa eram constantes.
Sentados no sofá ou deitados na cama ou abraçados. Gostava de brincar nas suas
barbas grisalhas e passear com as mãos em seu peito.
Íamos ao cinema juntos; ou às vezes apenas caminhávamos juntos na praça.
O mal humor de Lauro, por incrível que
pareça, me conquistava, pois ele sempre
tinha um jeito bobo depois de me agradar. Eu senti que aquele homem era tudo
que eu podia ter e o queria do meu lado para o resto da vida.
Depois de 1 ano nos encontrando às escondidas, chegamos à conclusão de
que tínhamos que correr atrás da nossa felicidade. Pois tanto eu como Lauro
havíamos nos reprimido e nos escondido em "carapaças", tentando fugir
do julgamento da sociedade e de nós mesmos. A vida só vive uma vez, dizia
Lauro, e não podíamos negar isso. O meu casamento com Carmen já havia passado
do prazo de validade, como dizem por aí, e tomei uma decisão na minha vida. Eu
tinha o direito de ser feliz, e ninguém podia me negar isso. Ser quem eu era de
verdade.
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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