O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 14
_Dona
Márcia, a senhora não sente pena de seu sobrinho? – pergunta Jarbas, chegando à
residência da psiquiatra. _Ele ficou só diante daquela multidão, que fez das
escadarias do Municipal um verdadeiro ringue.
_ Pena? Não! Aliás, quem tem pena é galinha – ironiza.
_Que comentário rasteiro, senhora!
_ Sabe, Jarbas, às vezes saímos do salto como pessoas normais para dizer o que realmente pensamos.
_A senhora me desculpe, em todos esses anos, nunca a vi usar-se destes termos, a não ser na presença daquela empregada.
_A Suzicreide?
_Não seria Jacira?
_Claro! Jacira! – o deboche dá lugar a ira. _ Sim! Aquela mulher me desequilibra! E pensar que dela levei um tapa, isso ainda não engoli, mas deixe estar, o destino dá a volta e o troco vem em dobro.
_E o que pretende fazer?
_ Ainda não sei! Mas já tomei algumas ações...
_E o que fez senhora? – preocupa-se.
_Nada do que já não fosse esperado! Determinei que proíbam a sua entrada no hospital e que demitam aquele segurança irresponsável, que deveria tê-la segurado, evitando que voasse para cima de mim e abalasse minha beleza. E sei que não me decepcionarão, afinal, quem é louco de renunciar a uma quantia considerável todo mês a título de doação?
_Nossa! Pois é, não acreditei quando me contaram.
_Nem eu, Jarbas! Mas, aproveitando a oportunidade, desde quando lhe dei toda esta liberdade? Coloque-se no seu lugar, pois aqui é só um criado, daqueles que obedecem calado. Entendeu?
_Sim senhora! Mas apesar de ainda correr o risco de ir para a rua, o que fez ao seu sobrinho não foi correto.
_De novo este assunto? Já disse que odeio escândalos!
_Escândalo foi o que aconteceu. Está em todo lugar. O sobrenome da senhora hoje é mais falado que a eleição do presidente.
Ela o visualiza com asco e determina:
_Cale a boca, Jarbas, e abra a porta para que eu possa sair.
_Mas...
_Limite-se ao seu cargo, senão, outra pessoa o ocupará em breve.
E assim ele faz.
_Agora estão com peninha do Ricardo? Que ele se acerte com os membros daquela família italiana falida, que come mortadela e arrota caviar. Hum! Tenho mais o que fazer.
O celular toca.
_ Oi, meu amor! Sim, estou de volta! Ricardo? O entreguei aos leões, não era isso que queríamos?
_Talvez! Considero a atitude prematura, pois Leonardo é o nosso foco...
_...mas para acertá-lo, primeiro temos de exterminar sua cria – completa.
_Cuidado, princesa! Uma falha, tudo vai à lona!
_Mas cuidado do que estou tendo?
_Mas ele o ouviu na noite passada, lembra-se?
_Aquilo foi um descuido – diz, pondo duas doses de whisky num copo._ Não vai mais acontecer! Apesar de que minha vontade era a de voar no pescoço dele e despachá-lo dessa para uma pior, coisa que já deveria ter feito há muito tempo.
_As coisas não se resolvem assim, temos de ser frios e calculistas; um passo em falso, assim como um castelo de areia, tudo desmoronará.
_Se pudesse, mandaria matá-los a sangue frio.
_Tenha calma, meu amor! Saiba dar tempo ao tempo!
_Não
sabe como é difícil fazer-se de boazinha, ser quem a gente não é... Isso
sufoca! – entorna o copo.
_Segure esse ódio, ele poderá pôr a perder todos os anos em que nos debruçamos na arquitetura de um plano eficiente, que pudesse frear as maldades de Leonardo e dele cobrasse todas as dores que nos causara.
_Como estou a me segurar, amor meu, pois minha vontade era voltar àquele hospital e desligar todos os equipamentos que o mantêm vivo. Seria tudo mais simples! Entraria e sairia sem deixar um rastro sequer, mas você, com essa mania de perfeccionismo, não me entende.
_Até entendo! Mas me diga a verdade, se fizesse isso, toda sua dor encontraria um fim? Uma morte tão rápida, sem os requintes de crueldades necessários, conseguiria apagar toda a humilhação que passou nas mãos daquele canalha? Até de ovelha negra foi chamada!
_ E ainda sou! E pelas bocas daquela mulherzinha sem eira nem beira.
_Márcia, acalme-se! Tudo terá sua hora! – pede, entre a firmeza e a doçura. _Graças ao bom tempo que conseguira ludibriar o tolo do Gabriel, a ponto dele nos entregar, ainda que não percebesse, todas as chaves para levar Leonardo e sua cria à ruína. O que são mais alguns meses então?
_ Eu só queria ter vivido minha vida em paz...Só isso! Mas por que fui abrir a boca à tola da minha irmã? - toma outra dose. – Acabou no que deu! Você distante de mim!
_Amor...amor... agora não é hora para arrependimentos, acalme-se, logo estaremos juntos!
_ Quando? Em outra vida? Deixe de me enganar com suas palavras adocicadas.
_ Foque-se naquele monstro – pede o homem.
_É o que faço o tempo todo! Não penso em outra coisa! Que droga! – irada, joga o copo contra a parede, os estilhaços se espalham. _ Maldita hora que fui me intrometer na vida de Nathalia.
_Márcia... Márcia...
_DROGA!!! DROGA!!! – senta-se no sofá, apoia a cabeça no encosto e respira fundo. _ DROGA!!!
_A mulher perdeu o prumo de novo – comenta Jarbas, da garagem, ao ouvir o estouro. _ Já é a terceira vez esta semana! O que estará se passando? Que nunca foi muito bem das ideias, já sabia, mas partir para o “assassinato” de tantos copos, ah, isso nunca imaginei!
_Tenha calma! – pede o estranho, tentando contê-la.
_Calma? É o que mais tenho! Estou cansada de tudo isso, Ronaldo, muito cansada! Quero minha vida de volta! Era irregular, cheia de surpresas, aventureira, mas era a minha vida; não essa a que tenho de encenar dia sim e outro também e tudo por conta daquele miserável. DROGA! DROGA!- bate na mesinha de centro várias vezes. _ DROGA!!! DROOOGA!!!
Tomada pela cólera, levanta-se, pega outro copo, enche-o e bebe de uma vez.
_Você está aí? Me ouça... respire...respire fundo, vai passar...
_Nunca passará! As lembranças daquela época estão a me invadir de novo, que DROGA! QUE DROOOOGA! – outro copo voa.
_Amor, ei , amor...amor!
Não adiantava mais ele falar, ela havia voltado no tempo...
A
multidão entoando o Hino Nacional contra os desmandos da aristocracia
ditatorial marcha pelas principais avenidas de São Paulo, lotando a Sé, a
Benjamim Constant, o Viaduto do Chá, a praça Ramos de Azevedo, a Conselheiro
Crispiniano, a São João, o Anhangabaú. São Milhares de homens e mulheres,
crianças e idosos - brasileiros oprimidos por um regime totalitário-, que de mãos entrelaçadas, braços para cima,
gritam os sonhos presos na garganta há mais de uma década, exigindo a liberdade
então sepultada, o direito ao voto, o fim do autoritarismo, da perseguição política
e da repressão civil.
Uma
chuva de papéis picados de cor amarela - a mesma que representa a luta pelas
Diretas-Já - reluz no céu à luz dos holofotes, sinalizando o nascimento de um
país mais justo, alicerçado nos princípios da legalidade, da igualdade, da
fraternidade e da verdade – pilares de um regime conhecido como Democracia, que
se levanta em todas as principais regiões do planeta, levando corruptos à
prisão, políticos de índole duvidosa ao exílio e representantes do povo ao
poder.
A
coragem daquela gente varre as ruas, desafia os generais, expondo à comunidade
internacional a politicagem rasa que ainda hoje faz morada nas entranhas mais
nobres da Brasília de Kubitschek.
A
maior movimentação política de um Brasil renascido das cinzas entra para a
história, ganha as capas dos principais veículos midiáticos do mundo, atraindo
a atenção dos líderes das grandes potências, que não compreendem o fato, pelo
modo pacífico como é conduzido, sem o disparo sequer de uma bala.
“O
pacifismo ascendeu o desejo intrínseco do povo de ver no topo-mor de seu país,
a aura sublime da liberdade de expressão, esta chama que agora aquece e
alimenta a alma e o coração de cada brasileiro” - declara um popular à reportagem
de uma rádio local.
"Me
perguntaram se aqui estão 300 ou 400 mil pessoas. Mas a resposta é outra: aqui
estão presentes as esperanças de 130 milhões de brasileiros", diz o
governador Franco Montoro Filho, durante seu discurso em um palanque montado no
Anhangabaú.
_
Esperanças de 130 milhões? Eu não me incluo nesta lista! Aliás, desde quando o
brasileiro tem direito à liberdade? E liberdade para quê? Por acaso isso enche
barriga? Paga a passagem do coletivo? Pobres são como negros na senzala: gritam
até persuadirem a mídia, conquistam direitos que mal sabem para que servem e,
depois de conquistados, perguntam-se: “_ Para que conquistamos isso mesmo?”
Hum! Como fazem agora... Quando perceberem o erro que estão cometendo, dirão:
“A vida era melhor no tempo dos generais, naquela época eu comia, tinha saúde
de qualidade, escola boa para meus filhos, sempre sob a proteção daqueles
homens de honra, defensores natos da família brasileira...” Idiotas! Isso que
dá se aliarem à politicagem rasteira de sindicalistas alucinados como o tal do
Lula... – regurgita Leonardo, enquanto mexe a cabeça em desaprovação, ao
assistir à “romaria” do décimo andar do edifício onde está situado seu
escritório.
Voltando-se para o interior do escritório, pega um calhamaço em cima de uma
poltrona e se ajeita em uma mesa, no fundo da sala. O relógio da parede anuncia
às vinte e uma horas.
_O
que faz aqui a esta hora da noite? Aconteceu alguma coisa? Oh...me desculpe,
como sou indelicado...Aceita um copo de whisky ou prefere uma...uma boa dose de
maconha? – debocha.
_Com
quem pensa estar falando, seu pobre de espírito?- rebate Márcia, no auge da
juventude.
_Pobre,
eu? Nem de espírito! Já você, olhe-se no espelho, está pior que uma indigente,
fedendo como um gari... Que decadência!
Uma
calça jeans surrada, uma camiseta vermelha com dois furos à altura do seio
esquerdo, um par de tênis empoeirados e uma bolsa de mão com o nome do amado
riscado na lateral cobrem o corpo apático da mulher, que ensaia uma reação à
ofensa do cunhado:
_Não
fale assim comigo, senão eu...eu...
_...eu...eu
o quê? O que pretende fazer? Chamar a polícia? Processar-me? Hum! Pois o faça,
tenho certeza de que tem mais a esconder do que eu!
_Você é sujo, Leonardo! Por que fez isso? Nunca nenhum mal lhe fiz. Por que o
entregou? Por quê?
_Toda
ação gera uma reação. A mesma pergunta lhe faço: Nunca nenhum mal lhe fiz,
então por que ousou invadir as fronteiras da minha vida?
_Do
que você está falando? – estremece.
_Pensa
que sou bobo, criança? Foi você que envenenou a cabeça de Nathalia com aquela
história de amante... Ou pensa que me engana?
_Não
sei do que está falando.
_Não
mesmo? Vou rememorá-la. Um minuto...
Abre
a gaveta e dela retira um gravador de bolso.
_Escute!
A caixa
de Pandora se abre. Márcia era a autora das ligações anônimas.
_Onde
conseguiu isso??? – pergunta, intrigada.
_Homens
poderosos como eu podem tudo, basta estalarem os dedos para que o sistema
sangre os seus maiores males. E um deles está aqui. O da traição!
_Mas...mas...não
fiz isso por mal! Ela é minha irmã, deveria saber de suas escapadelas com
aquele bombeiro, ninguém merece viver com uma pessoa que possua duas faces.
_Agora
falou como uma futura psiquiatra. Pois também digo o mesmo! Desnudou meu caráter
e assim eu farei com o seu. Quem atira uma pedra, deve estar preparado para o
revide de uma artilharia.
_Ronaldo
não teve nada a ver com isso! Fui eu quem ligou, não ele! Peça para que o liberem,
por favor!
_E
qual acusação lhe imputaram: vendedor de maconha ou traidor da pátria? Porque aquele
que incita o povo contra um regime que funciona em perfeita harmonia com os
interesses de sua elite militar, deve ser considerado um traidor, não é? Estou
curioso, fale!
_Você
é desprezível!
_
Obrigado pelo elogio! – agradece o esposo de Nathalia, com um visível sorriso de
sarcasmo estampado à face.
_Quero
que o tire já de lá, Ronaldo não merece estar enjaulado como um animal, é...é o
homem da minha vida, aquele que...
_...lhe
dá prazer na cama e lhe enche de ópio até virar os olhos! - completa. _Hum! Que
homem este o seu, não é? Ainda tem coragem de me chamar de desprezível? Você é
uma tola! O fruto podre no seio de uma família decente, cujos princípios...
_...aviltaram
a alma deste povo! – completa a garota, com desdém.
_
Você não sabe o que está dizendo...
_E
você deve estar sofrendo de problemas auditivos ou não está ouvindo a
manifestação de repúdio das ruas às mazelas políticas comandadas por homens
como meu pai, que nunca se importaram de fato com as causas sociais, limitando-se
apenas ao uso do dinheiro público em causa própria?
_Você não merece o sobrenome que carrega; tem mesmo razão quando resolveu
adotar o “Aleluia” do Ronaldo ao invés do Médici consagrado de seu pai.
_Mil
vezes o sobrenome dele ao de meu pai que, liderando uma corja, levou milhares
ao exílio e outros milhares a covas escondidas nesse país.
_Você está louca, criatura! Seu pai colaborou com o desenvolvimento e a
segurança institucional do Brasil, portanto é um herói...
_...repudiado
pelo povo! – completa a garota, com
sarcasmo.
_Saia
daqui, antes que eu cometa uma barbárie!
_Só
sairei depois que mandar soltar o Ronaldo.
_Não
irei me envolver em seus problemas!- decide o genro de Médici.
_Preciso de suas influências, sei que poderá libertá-lo; se quiser, basta ligar
para o Ministro da Justiça...
_ E
passar por cima do Judiciário?
_Não
estamos nos idos de 1984, em plena ditadura militar, cujo poder submerge das
cabeças mais torpes e menos coerentes da ala governista? Pois bem, para essa gente,
o Judiciário é um simples faz de conta, coisa para inglês ver... Acha que um
juiz seria capaz de desafiar um general como Figueiredo, Geisel ou meu próprio
pai? Pois bem, com essa gente você tem cartaz, basta um telefonema para que
Ronaldo seja liberado.
_E por que não pede ajuda a seu pai? Teme o quê? Que ele se negue a ajudar um
traficante da favela Pantanal, conhecido como Matador, cuja ficha policial
inclui dezenas de assassinatos e muitos outros crimes, como lavagem de dinheiro
e estelionato? Poxa, percebe, está só nesta difícil empreitada. Esse é o preço
por amar - se este for mesmo o verbo
correto - alguém que não é de sua estirpe. Aliás, como se conheceram? Esta é
uma curiosidade que alimento há meses, desde o dia em que os flagrei na sala de
reuniões desta empresa, naquele sábado à noite, despidos e completamente entregues
à fumaça da erva do capeta.
_E
desde então tem me chantageado, não é?
_Claro
que não! Por que chantagearia alguém cujo sobrenome é quase divino? Apenas faço
algumas exigências. O preço por ter invadido minha vida!
_Você
é um veador sem coração.
_Melhor
um veado que uma lunática viciada.
_Suas
exigências já me custaram muitos milhares de cruzeiros.
_Digamos
que o suficiente para manter o meu silêncio ou teme que toda a família Médici
descubra que sua caçula, brilhante estudante das teorias de Freud, mantém um
caso com um desajustado, que além de alimentar as bocas da Favela Pantanal,
ainda incita a plebe contra um regime tão benevolente ?– satiriza.
_Pois
eu ordeno que tire agora mesmo Ronaldo daquela penitenciária.
_E
desde quando está em situação de me exigir algo? Enxergue-se! É uma pobre
coitada, sem alma, sem destino. Uma tola que decidiu abandonar os grandes
castelos do Morumbi para se entregar ao charme de um pé rapado, dono de uma
boca de fumo.
_PAAAAAARRRREEEEEEE!!!!!!!!!!
– irrita-se a garota. _Sei bem o que quer. É dinheiro, não é?
_Dinheiro?
– gargalha, enquanto acende um charuto cubano. _Isso eu tenho de sobra, e você
sabe muito bem disso. Quero que desfaça as intrigas que criou, assuma-se para
sua irmã, diga que me ama, que inventou toda aquela história de traição, porque
me queria.
_Isso
é uma mentira! Não posso fazer isso! Eu o vi com aquele cara aos beijos...Que
nojo!
_Cada
um encara os fatos como quer.
_ E
mesmo que eu faça, perderei minha irmã, ela nunca me perdoará.
_Melhor
isso que perder a própria história ou pensa que pegarão leve com Ronaldo?
Depois que conhecerem também o seu outro lado, o mundo cairá na sua cabeça.
_Outro
lado...? Que ironia! Você tem um outro lado...
_E
quem acreditará? Sou mais esperto que você, estou apagando os rastros, para
isso uso o dinheiro de meu sogro. Já você, como fará? Seu “queridinho” está numa
cela, em plena fissura, aguardando que sua “mulherzinha” lhe estenda a mão. É
pegar ou largar!
_Você
está destruindo a minha vida...
_...
E você já destruiu a minha! Não sabe como está sendo difícil retirar os pilares
dos escombros para tentar recomeçar um casamento que já não mais existe. Se
tivesse ficado quietinha, certamente eu a socorreria. Mas como chumbo trocado
não dói...
Do
lado de fora, a “Quinta Sinfonia de Beethoven”, cujas notas eram o tema de
abertura dos noticiosos da BBC durante a guerra contra o nazismo, ecoa sob a
condução da Sinfônica de Campinas, levando a multidão ao delírio.
Atraído
à janela, Leonardo blasfema contra os políticos que se apresentam diante do
povo como defensores de um regime libertário, quando, no entanto, não passam de
oportunistas, adoradores insanos do caos, cujos atos em Brasília não foram capazes
de lhes garantir um assento no banco da História.
_Abutres!
Como podem trair o regime que lhes deu tanto poder? Como podem derramar o
sangue da hipocrisia em nome de um povo que mal reconhece a própria identidade?
São verdadeiros vermes, homens de pouca índole, que se curvam aos desejos
inimigos ao primeiro tiroteio. A batalha apenas começou, tenho certeza de que
será árdua, assim como também serão os dias destes traidores, quando a batalha
estiver ganha e eles forem expulsos a pontapés do país.
_Não
tenha tanta certeza disso, este movimento é legítimo e, pelo que informam os
órgãos de imprensa, há mais de um milhão e meio de paulistanos agora no
Anhangabaú, portanto, número suficiente para que se abale as estruturas
nefastas da ditadura e de seus líderes corruptos – anuncia a garota,
aproximando-se.
_Você
é outra que se manteve a vida toda do dinheiro deste regime, então por que o
condena tanto? Deveria estar do lado da gente, daqueles que fazem do
generalismo a sua religião.
_Está
aí a razão de minha alienação! Não me perguntou o porquê de me drogar? Para passar
da condição de opressora à oprimida.
_ E
o que ganha com isso?
_Pelo
menos a falsa sensação de que nada tenho a ver com a tristeza e o empobrecimento
de toda essa gente que, apesar do prato vazio e da boca calada, não desiste
nunca de construir um mundo melhor e mais justo.
_Virou socialista! – ironiza o homem. _Por isso se refugiou em uma favela? Para
ter a falsa sensação da pobreza, do sofrimento alheio? Brilhante ideia! Algo
que nem os maiores estudiosos da mente humana seriam capazes de imaginar. É, os
fins justificam os meios, como diria Maquiavel.
Ao lado do cunhado, Márcia admira os milhares de cidadãos, que fazem das
lágrimas e do coro, armas contra a repressão liderada pelos desmiolados de
Brasília.
_Pois nisso concordo com você, os fins justificam os meios! –diz a garota,
retornando ao centro da sala. _O que você quer para ajudar Ronaldo?
Leonardo
pega o calhamaço que está em cima da mesa, dizendo:
_Que
você assine isso.
A mulher
se assusta com o tamanho do documento.
_E o
que é isso?
_O
levantamento de todo o patrimônio de sua família. Nele estão incluídas
fazendas, indústrias e contas em paraísos fiscais. Milhões e milhões de dólares,
alcançados com a corrupção alheia, que garantiram a sua boa educação e o padrão
de vida que ostenta atualmente, ainda que você alimente a “ falsa sensação de nada ter a ver
com a tristeza e o sofrimento deste povo”.
_
E...para que isso? Não compreendo! O que pretende, Leonardo Almeida...? Ops, perdão,
seu novo nome é Leonardo Médici.
_
Que assine a última linha da penúltima página! – ele não perde tempo.
_ E
por que isso?
_Assim
que assiná-lo, sua parte na herança será automaticamente transferida para minha
conta no exterior, uma garantia de que jamais voltará a zombar de meu antigo
sobrenome.
_Você
está louco? Acha que eu cairei em um velho golpe como este? Então quer minha
parte na herança? Hum! Posso parecer tola, mas não sou!
_Então nada feito! Esta é minha única e última oferta. Se quiser seu “amado bandido”
de volta, terá de se curvar aos meus pés e aceitar todas as exigências
contratuais constadas neste documento; caso contrário, perderá a chance de
vê-lo novamente caído aos seus braços – escarnece o empresário, enchendo novamente
o copo. _ É a garantia de que, caso sua irmã venha a pedir o divórcio, eu tenha
do que sobreviver. Sabe como é, você começou tudo isso e agora terá a
oportunidade de terminar.
_Pare com o deboche – pede a mulher-, estou aqui, humilhando-me aos seus pés, para
que me ajude, não para que me transforme no alvo de piadinhas de gosto
duvidoso. Você ligará agora mesmo para os generais e pedirá que solte o meu
Ronaldo...
_...somente
quando assinar o documento! – intervém, impondo sua condição.
_NADA FEITO! – berra a mulher. _VOCÊ VAI FAZER O QUE ESTOU MANDANDO CASO
CONTRÁRIO...
_...caso
contrário o quê? Diga, Márcia Méd...ops, Aleluia! O que fará? Isso é uma
ameaça? Hum! Uma ameaça embasada em quê? Pelo que me consta, se comparado a
você, sou mais limpo que a auréola de Cristo...-
moteja o esposo de Nathalia, com os olhos submersos em uma luzerna maliciosa.
_ Podemos negociar... – sugere a garota, com um sorriso libidinoso brotado nos
lábios, enquanto as mãos descem o corpo, realçando suas curvas outrora nada modestas.
A indireta
atrai a atenção de Leonardo, que se aproxima, contornando, despudorado, as
mesmas curvas já abrilhantadas pela caçula dos Médici.
_ O que acha? Podemos apagar as luzes e...bem, todas as suas fantasias poderão
ser realizadas, como em um desses contos de fadas. Venha, deixe-me satisfazê-lo
como homem. Tenho certeza de que jamais “saboreou” uma carne tão apetitosa como
a minha, pois a de minha irmã, apesar de todos os recursos da medicina
estética, não passa se não de carne de terceira.
Márcia joga as cartas sobre a mesa, é seu último lance neste jogo imoral, em
que a chantagem e o sexo são apenas simples recursos na busca pela vitória,
aqui representada pelo resgate do traficante Ronaldo. Com a mão direita, abre a
camisa dele; com a esquerda alisa-lhe o peito. Um gemido de prazer surge no ar.
Leonardo parece tentado pelo corpo ainda atraente da pequena de vinte e poucos
anos.
O
cinto é desatado, a calça desabotoada, e quando o zíper estava para ser aberto,
uma gargalhada de deboche interrompe a safadeza, assustando a garota, que dá
dois pulos para trás.
_
Você acha que eu seria tolo de trocar um império por uma noite de sexo contigo?
Se eu gostasse de “resto”, estaria na boca do lixo, agindo como fazem os urubus
com suas vítimas. E mais, como você já disse, meu negócio é outro. Se quiser me
conquistar, terá de mudar de sexo!
_
MALDITO!!! – berra, transtornada. INFELIZ! SUA HORA AINDA CHEGARÁ, E NESSE DIA,
QUERO AINDA ESTAR VIVA PARA ACOMPANHAR SUA RUÍNA...MISERÁVEL!
Tenta desferir um tapa contra a face do homem, que ágil feito uma cobra,
imobiliza-a pelo pulso antes que o ato seja concretizado.
_
Nem tente fazer isso! – empurra-a contra uma poltrona de canto. _O meu preço já
está definido e no campo dos negócios não há ágio que faça um empresário como eu
desistir de uma empreitada. Portanto, se deseja ter de volta seu “cachorrinho
de favela”, terá de assinar o documento, senão, como uma vagabunda de beira de
esquina, terá de tentar seduzir outras figuras de renome na sociedade que
tenham um mínimo de influência sobre os generais. Hum! Porém advirto-lhe, sua
aparência, misto de zumbi com capivara, não atrai nem Fred Krueger, quem dirá
os senhores do poder. Quem gosta de osso é cachorro, e vira-lata, a espécie de
seu “amado”.
_ PARE COM ISSO!- implora, tentando se levantar.
_Vamos
deixar de histórias, não tenho mais tempo para picuinhas. Ou assina ou caia
fora!
_E como
vou fazer? Ficar sem nada?
_Não!
Terá direito a mesada mensal, uma espécie de ajuda de custo, afinal, não quero
que uma Médici encontre a sarjeta, não é? E terá a casa dos Jardins! Um pequeno
presente, para que nunca se esqueça de minha bondade.
_Mas...mas...- fica sem palavras.
_ É isso ou será revelada, assim como seu amado encontrará o caminho da guilhotina – cai na risada. _ Como sou bobo, às vezes penso estar na França de Robbespiere1.
As
chances para a reviravolta caem por terra, não há mais como resistir às
chantagens do cunhado. Ou valida com sua assinatura aquele documento ou simplesmente
morrerá à espera do homem que a iniciou nas drogas e na vida sexual. Só lhe
resta então entregar todo o patrimônio e o próprio futuro. Com a caneta, escreve
sua sentença de morte em vida!
Leonardo exibe um sorriso lustroso, agora é um dos sócios do império Médici,
cuja fortuna ultrapassa a fronteira que separa o milhão do bilhão.
_Gostaria que nossa transação permanecesse confidencial, visto que meu pai não
suportaria a decepção... – pede a jovem, bastante abalada, temendo a revelação
do caso à sua família.
_
Claro, “docinho”! – sorri, passando-lhe a mão sobre a face. _Claro!
_Tire
essa mão de mim!- repele com violência.
_Acalme-se,
florzinha! É tão agradável e sedutora como a irmã.
_Por
isso atraímos criaturas como você?
_Deixe
de pilhérias, a vida é uma alegria.
_Monstro!...
Quero saber quando Ronaldo será liberado.
_Logo!
_Seja mais claro...
_Garanto-lhe
que verá o sol nascer da janela de seu apartamento.
_Espero!
Caso contrário...
_Agora
saia, tenho de cumprir minha parte no acordo.
Perecendo
de um atordoamento que lhe retirou o brilho d’alma, Márcia dirige-se à saída. Mas
retorna à sala ao perceber ter esquecido a bolsa sobre a poltrona a que fora
arremessada. De costas para a porta, Leonardo não a vê.
Pegando
o telefone, ele disca alguns números; a felicidade é ferina e radiante.
_
Olá, mister, como está? E aquele vinho que me prometeu, cuja safra causa água
na boca?
_
Oh, é você, grande amigo Leonardo Médici? A que devo a honra?
_ Tenho novidades!
_
Pois conte! Pelo modo como fala, vem grana por aí – zomba o patriarca da
família Ferrara.
_
Grana? Bota grana nisso! A partir de hoje sou dono de cinquenta por cento de
todo o patrimônio acumulado por meu sogro.
_
Dio Santo! Que loucura é essa? – assombra-se.
_
Não é loucura, é realidade! Consegui que a infeliz assinasse os documentos,
aqueles de que lhe falei...
_
Stai scherzando, non è? Allora la “franguinha” si è reso allá sua artigueria?
Incredibile!E adesso, Che cosa vuole fare? Come riuscirà la liberazione dell’
infelice?2.
_
Que mania a sua de misturar italiano com português... Isso me causa náuseas!
_Não vá começar, Leonardo! Você sabe que quando me altero, acabo por mesclar os
dois idiomas.
_E
por que está alterado?
_Sinto que essa história não acabará bem! Você está mexendo com gente muito perigosa. Aliás, pelo que me consta, você não tem tanta influência no meio político a ponto de conseguir, do dia para noite, um alvará de soltura.
_Tá...tá...tá, italiano!
_Como
fará para conseguir o alvará de soltura se não é tão bem relacionado com os
“donos” do poder judiciário?- questiona Giacomo, aguardando com ansiedade a
resposta.
_ Eu
posso não ser, mas você...
_ O
que quer dizer com isso? Que eu o ajudarei a concretizar este seu insano desejo
de ficar milionário do dia para noite? Negativo! Imagine a reação do general quando
souber que sua filha pôs a perder metade de seus esforços de uma vida por um delinquente,
tendo como antagonista na empreitada, o próprio genro? Isso vai acabar em
tiros, assim como acontecia nos idos de 70, como bem conhecemos. Por favor,
faço qualquer coisa, menos dar a cara a tapa...
_Nem
se isso envolvesse também uma boa fortuna em cruzeiros a ser transferida para o
caixa dois de suas empresas endividadas?
_Continua...
sou todo ouvidos! - muda de tom o agora interessado italiano.
Márcia
chora encostada à parede, enquanto ouve o epílogo da trama diabólica que a
condenou a um destino incerto.
_
Não se arrepende de ter entregue o sujeito?
_ Não!
Chumbo trocado não dói! Ela invadiu minha vida primeiro e terminou sem o amado
e com poucos tostões no bolso.
_ Tu
sei troppo cattivo!3 Não teme represálias? Dizem que esse Matador é
violento, capaz de atirar na própria mãe se assim precisar.
_Nem
de Deus eu tenho medo!
A
garota pensa encher-se de ânimo, deixar a escuridão, enfrentar o cunhado,
exigindo de volta o patrimônio que lhe é legado de família, contudo, a imagem
de um Ronaldo sofrendo as maiores atrocidades no Carandiru, a mais violenta das
penitências brasileiras, a faz recuar, pegar a bolsa e sumir pelo corredor,
ainda que uma lágrima sua tenha insistido e ficado no chão da sala, após despencar
dos olhos grandes e mortiços.
Desconsolada, entra no elevador, minutos depois está no térreo, ao lado das
milhões de pessoas que seu pai e a corja militar mantiveram dentro de uma
camisa de força, sob a mira de uma arma tão letal quanto à bomba atômica: a
censura!
Aglomerada,
a multidão, com pequenas bandeiras do Brasil entre as mãos, aplaudia o
pronunciamento dos notáveis, figuras da política nacional, que afrontadas pelos
interesses de Brasília, viam o momento como uma plataforma para a ascensão pessoal,
ainda que os reais interesses fossem contraditórios aos veiculados no
Anhangabaú.
A
atitude maquiavélica do cunhado e a fissura pela droga, aliada à indignação pelas
mentiras propaladas à República por homens de duas caras, fazem-na correr,
empurrar todos que estão à sua frente, para chegar o quanto antes ao carro.
Precisava sair dali, fugir daquele teatro ao ar livre, daquela representação inverossímil
e nada ingênua da politicagem selvagem, dominadora de almas e mentes. O que não diria Glauber Rocha4 de tudo aquilo? Um Deus, muitos diabos e
milhões de almas enganadas na Terra do SOL!
Entrando
no carro, debruça sobre o volante o rosto úmido pelas lágrimas. Precisava
descansar, o fôlego lhe faltava e a alma parecia querer lhe fugir pelos dedos,
assim como o pouco do caráter e da sobriedade que ainda lhe restavam.
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais”
“Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses.
E os japoneses
Mas tudo é muito mais”
Tocada pela rádio local, as letras de Caetano
Veloso - espelho da corrupção e dos desmandos que maculam a alma de um país
desgovernado, à beira do caos, arruinado por uma dívida externa impagável, cuja
condenação é a subserviência aos anjos de chifres, representados por
instituições como o FMI e o BID - consolam a garota na volta para a casa.
_Bem diziam os papagaios da capital do país: “Figueiredo5 faria de
seu mandato uma arena em que os interesses das principais famílias de bem do
país seriam contrariadas em prol de uma massa que
mal sabe o porquê da própria existência...” Se meu sogro ainda estivesse no
topo da cadeia política, certamente esses aventureiros da política tupiniquim
seriam tirados à bala deste palco e o povo...bem...o que é o povo sem um líder?
Um bando de analfabetos, de escravos sem rumos, que se contentam apenas com a
barriga cheia, com um televisor na sala e as contas de água e luz pagas...Como
pode esta gente querer votar, escolher seus líderes se mal sabe o que é? O voto
será nas mãos desta gente como arma; e o que acontece com os que utilizam mal uma
arma? Cometem assassinatos por ingenuidade!- regurgita Leonardo, do alto de seu
prédio, ao ouvir os aplausos ao discurso do governador Franco Montoro Filho.
“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América Católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será será que será
que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes
Fazem o carnaval”
_ Podres poderes! Podres
poderes! – repete a mulher consigo mesma, bastante oprimida.
_ O quer dizer com podres
poderes, dona Márcia?- pergunta Jarbas, ao acudi-la, após encontrá-la caída,
como em um transe.
_Jar-Jarbas...? Hã! O que aconteceu?
_Fiquei assustado com o
barulho e resolvi ver o que estava acontecendo, quando entrei, estava caída,
talvez tenha escorregado. Quer que eu chame um médico?
_Não é necessário! Eu estou
bem! Minha pressão deve ter caído...Por favor, dê-me um corpo de água.
_Não prefere um café? –
pergunta, ressabiado, ao sentir o cheiro de bebida.
_Que seja! Mas vá rápido!
Vamos!
_Leonardo me paga! Nosso
acerto de contas está a caminho! – promete, fechando os punhos.
_Onde estou? Onde? – inquire
Leonardo, desesperado, no CTI,
retornando a si. _ Quem é você? – volta-se a uma enfermeira, que está ao
seu lado. _Onde está meu filho Ricardo? Não! Cadê ele? Está em perigo, eu
sinto!
Encerra
com a música (Podres Poderes - Caetano Veloso).
_____
1 Maximilien François Marie
Isidore de Robespierre foi um advogado e
político francês, e uma das personalidades mais importantes da Revolução
Francesa. Os seus apoiadores chamavam-no de "O Incorruptível". Já
seus críticos de “Candeia de Arras”, “Tirano” e “Ditador Sanguinário” durante o
Período do Terror.
2. Você está brincando, não está? Então a “franguinha” se rendeu à sua
artilharia? Inacreditável! E agora, o que pretende fazer? Como conseguirá a
libertação do infeliz?
3 Como você é maldoso!
4 foi um dos mais importantes cineastas do Brasil.
Grande pensador a seu modo, Glauber foi um pensador-poeta, com um método
metafórico e uma disciplina revolucionária que inventava a cada dia conforme as
necessidades de seu projeto, de suas iluminações. Sua arte deflagrou uma
revolução no cinema e deu um nó (ainda não desatado nem engolido) na cultura
nacional. Visionário controverso e em transe convulsivo, nasceu em 14 de março
de 1939 e morreu em 22 de agosto de 1981.
5 Último presidente do regime militar, General
João Baptista de Oliveira Figueiredo (General Figueiredo) governou o Brasil de
1979 a 1985.
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
Podres Poderes - Caetano Veloso
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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