O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 16
O
sorriso abre no semblante tomado por lágrimas desorientadas, trazendo algum
alento à alma do rapaz.
_Jacira??? Você não foi? Graças a Deus!
Corre abraçá-la, sendo imediatamente repelido pelos olhares ressentidos da mulher, que deixa as duas malas de lado, ajeita a bolsinha da 25 de março, coça a cabeça, pensa muito e, para a estranheza dele, nada responde.
_O que há, Jacira? Ainda bem que não foi, quero muito lhe pedir desculpas.
_E desde quando simples desculpas cicatrizam um coração machucado? Você não tem noção do quanto estou magoada, de como gostaria de estar longe daqui, indo para minha terra, mas a promessa que fiz a sua mãe me impediu.
_Então... então você ficou pela promessa que fez? Achei que fosse por mim! – soluça. _ Como sou bobo! Pois se foi por isso, considere sua promessa quebrada, está livre para voar, atingir o céu e ser feliz em outro lugar – uma amostra de sua arrogância reaparece, para a descrença da mulher.
_ E desde quando você tem o poder de quebrar uma promessa? – rebate, sem piedade. _Não a fiz a você, mas a sua mãe, no dia em que nasceu, então como posso deixá-lo, ainda mais neste momento de tanta dor? Seria uma traição muito grande, e de traições aquela mulher padeceu até a morte.
_ Mas eu a liberto...
_ ...E por acaso sou sua escrava? – interrompe-o, com a face fechada. _ Acho que está tão confuso que anda trocando as palavras, sem saber o que de fato elas significam. Há algumas horas me chamou de encosto, uma sombra daquilo que vocês são; agora me chama de escrava ? Como anda meu conceito em sua balança!- ironiza. _ Estou impressionada!
_Eu não quis dizer isso...
_Como não? Se me liberta, é porque sou sua escrava. Posso ser semianalfabeta, mas um tiquinho de conhecimento eu adquiri. Do jeito como fala, é o meu senhor, basta apenas assinar a carta de alforria para que eu retorne ao guichê e compre outra passagem, porque essa já se perdeu – mostra-lhe. _ Gastei o pouco que tinha para comprá-la, mas quando o ônibus chegou, não tive coragem, lembrei de Dona Natália, das vezes em que conversamos e do enorme carinho que sempre teve comigo. Aquela era uma mulher de honra, incapaz de machucar um semelhante. Palavras como as suas jamais sairiam da boca dela. Aliás, onde estiver, deve estar muito decepcionada, porque o filho que trouxe ao mundo é um rapaz de uma índole duvidosa, que massacra os mais pobres, como se seu coração fosse de pedra.
_Jacira...- a voz embarga.
_Deveria ter vergonha de usar o sobrenome dela, de se achar o todo- poderoso, quando não passa de um rapazote sem o mínimo de senso, capaz das maiores atrocidades para saciar as próprias vontades...ou...ou como explicar tantas coisas ruins que estão falando de você? Está nos jornais, nas rádios, nas tvs, no programa da Sônia Abrão... Conseguiu o sucesso! E a que preço, moleque? Fazendo dos mais pobres escadas? Das muitas Annas uma aventura? E dos e-mails uma forma de se revelar?
_Não...não...não fui eu que escrevi aquilo...
_E quem se importa com o que diz, todos acreditam no que vende a imprensa e sabe por quê? Diferentemente do que eu pensava, você não presta! Perdeu-se no caminho da vida assim como seu pa... – segura as palavras.
_Fale! O que ia dizer?
_ Um encosto não fala! Apenas atazana suas presas e é o que estou fazendo...
_Pare! Te peço...
_ E por que pararia?
_Dói demais.
_ A mim também doeu! E o que fez? Me deixou pra trás, como um cão sarnento. E sabe o que ganhei? Um machucado na testa, daquele tombaço, no meio da chuva.
Ele só agora repara o machucado.
_ Este é o amor que sempre disse ter por mim? Responda, moleque, antes que lhe dê uma surra aqui mesmo, porque é isso que está lhe faltando, não é, Suzicreide? – sua voz aumenta à medida que seus olhos se dilatam. _ Responda! Responda! Estou mandando!
_Me des-des-culpe!
_De novo com este papinho de desculpas? Quer é amolecer meu coração, te conheço de outras primaveras.
_Não me deixe.
_Estou aqui, não estou?
_Mas não é a mesma!
_E como deveria ser? Você me fez sentir a pior das criaturas, o verme que rasteja, a alma que se perde... Todos poderiam ter feito aquilo comigo, não você!
_Mas você bateu em minha tia!
_ E bateria de novo. Ela não vale nada! Um dia conhecerá a fundo aquela coruja de saia e me dará razão; por ora, continue acreditando em sua santidade. E que santidade! Onde estava, que não o acompanhou durante aquele arranca-rabo no Municipal? Fugiu, não foi?
Ele confirma com a cabeça.
_Claro! Odeia escândalos, como sempre disse, mas esquece de olhar para o próprio rabo. Se parte se seus podres vierem à tona, haverá não um escândalo, mas a explosão de uma nova bomba atômica. E ei de estar viva quando isso acontecer!
_ O que está dizendo?
_Não é da sua conta – empina a cabeça, com o dedo indicador em riste. _ Valeu a pena a escolha que fez?
_Nã...não
_Abra essa boca e fale, quero ouvir, fale, porque para me ofender, parecia um galinho de briga, não mediu as palavras – sente pena de Ricardo, mas permanece firme, enfrentando- com a coragem de quem o quer muito bem.
_Não pensei direito, sabe, comprei as dores dela. Coisa de sangue.
_De sangue? Olha essa, Suzicreide! O que faz o amor ou a amizade é a convivência, porque o seu sangue até pernilongo tem. Posso ser chucra, feia, usar roupas coloridas e cabelo sem corte, mas da linguagem do amor eu conheço. Fiquei todo este tempo ao seu lado porque o AMAVA...amava tanto, que me esqueci de educá-lo como deveria, se é que esta era minha obrigação. Só agora percebi que você em nada se parece com a imagem que havia projetado ...Que decepção! É como se o Ricardo que está à minha frente fosse outra pessoa, completamente desconhecida, capaz dos maiores horrores em nome dos menores caprichos.
_Pare, pare, pare...Por favor!
_Pare você como esta encenação! – repreende-o, limpando os cantos dos olhos. _ Você não merece ter a mãe que lhe deu a vida! – aumenta o volume da voz, atraindo a atenção dos curiosos. _ Você não é ninguém! Se surgir diante de um espelho, é bem capaz de não ter reflexo, pelo menos um que lembre coisas boas.
As palavras da mulher esfacelam o coração do rapaz, que ainda mais fragilizado, não tem forças para reagir.
_Fale, Ricardo! Quero ouvir...fale! Cadê o homem que eu criei? Onde está? Porque este que está à minha frente é apenas o seu rascunho mais sórdido! Faaaale, moleque dos infernos!!!!!
_ Não sei!
_Claro que não sabe, deve estar assim por falta da biriba; bebe igual a um caipora; quando lúcido, é incapaz de criar uma frase que tenha sentido.
_Eu...- chora como nunca, limpando a face nas mangas da camisa. _ Eu sou tudo isso que você diz, sou mesmo, assumo e peço desculpas.
_Mais desculpas??? E desde quando elas enchem barriga?
_Mas em uma coisa você está errada.
_ Pois diga, criatura! Não vá me dizer que é um santo; só faltava isso pra acabar com meu dia.
_ Não sou santo! Nunca fui! Sou mesmo um perdido! Uma pessoa monstruosa, que humilha muitas pessoas, como se eu fosse melhor que elas; na verdade, elas teriam muito mais a me ensinar.
Uma pequena aglomeração se forma ao lado deles.
_Continue...- determina, com a mão à cintura.
_Também já não menti muito, sobre muitas coisas, por prazer ou maldade, para quem quer que fosse, mas sobre uma coisa sempre fui sincero.
_ E sobre o que seria?
_Do amor que tenho por ti.
_Sei...- o coração dá sinais de que não suportará essa briga por muito tempo. Como queria abraçá-lo, fingir que nada daquilo tivesse acontecido, mas ele precisava de uma lição e era chegada a hora, ainda que lhe doesse na alma._ E como posso acreditar nisso? Só me dá mostras do contrário.
“... você é apenas uma sombra daquilo que somos, um encosto...”- suas palavras lhe pesam. O sofrimento intensifica.
_Como posso acreditar em você, meu fi...Ricardo? Me responda!
_Me perdoe, MÃE! – pede em soluços, ajoelhando-se.
Ela para. Olha para os curiosos, respira fundo, passa a mão pela bolsinha e ao reencontrá-lo a seus pés, pergunta numa voz quase inaudível:
_Do...do...que...que vo-vo-você me chamou? – indaga, atônita, levantando-o.
_MÃE! – ele repete. _ VOCÊ É MINHA MÃE! MINHA MÃE! E...E NÃO QUERO PERDÊ-LA TAMBÉM!!!
_ Eu...eu o quê?
_Posso não ter nascido de você, mas, quando minha mãe biológica partiu, quem me pegou no colo e disse palavras de esperança foi você e sou eternamente grato por isso. Sabe, nunca lhe disse, mas depois que voltamos do enterro dela, ajoelhei-me assim como fiz agora, atrás da porta de meu quarto e pedi a Deus, em minha mais humilde ingenuidade, que me levasse também, não queria ficar sozinho ou terminar num orfanato, porque meu pai não teria tempo para mim, assim como nunca teve.
_Você...vo-cê fez isso?
_Sim!
_ E por quê?
_Eu jamais estaria sozinho!
_De onde tirou isso? Você nunca ficará sozinho, meu menino – relembra-, a Jacira sempre estará aqui, ao seu lado, faça chuva ou faça sol. – abraça-o com força.
_ Eu tô com medo de dormir sozinho! Minha mãe me deixou...
_Ela não te deixou, meu amor, Deus a chamou para que ela pudesse cuidar de outros anjinhos.
_ E por que ela não me levou junto?
_ Cada um de nós tem a hora certa de partir desta terra, mas você é muito novinho para entender isso – os olhos dela brilham-, por isso vou fazer uma coisa que será segredo nosso. Vou me deitar com você e aqui ficarei até que durma. Mas não conte a ninguém, muito menos a seu pai, vá que não goste, não quero encrenca.
_Você faz carinho na minha cabeça igual minha mãe? Eu gosto muito! – os olhinhos carentes do menino a comovem.
_Claro! Jacira faz, tá? Mas vire de lado, assim roço seus cabelos até dormir.
E quando ele vira, ela desaba em lágrimas, sem que ele perceba. Sente-o como um filho, alguém que mora junto à Suzicreide em seu coração tão singelo.
_Jacira! Posso te falar uma coisa?
_Claro, meu amor!
_Eu te amo!!! E você, também me ama?
Ela chora muito.
_Jacira... – vira-se para ela... – Você está chorando? O que fiz?
_Você não fez nada, meu amor, é que entrou um cisco no meu olho, sabe como gente grande é.
_Posso te pedir uma coisa?
_Diga!
_Nunca deixe de me amar!
_Amar você? – retorna-se das lembranças.
_ Você ainda me ama?
_ E...co-co-mo não amaria??? Você é a pessoa que mais amo nesta vida, por isso voltei, mas não queria assumir. É o filho que Deus me deu depois de uma perda tão dura. Venha cá – puxa-o para seus braços. – Eu te amo muuuuuuuito!!!! Nunca mais me diga aquelas palavras.
Alguns populares também vão às lágrimas, quando uma mulher, daquelas bem enjoadas, que cuidam da vida dos outros, olha para Ricardo e dispara:
_Então é aqui que o gay enrustido se esconde? A imprensa toda está atrás de você, fiote. Vou ligar para os jornalistas.
_O QUE VOCÊ ACABOU DE FALAR DE MEU MOLEQUE??? POIS SE FOR “MACHA”, REPITA. VAMOS! ESTOU ESPERANDO...
A mulher perde a cor.
_FALE, SENÃO EU A ARREBENTO AQUI MESMO E NA FRENTE DE TODO MUNDO. JÁ DISSE A UMA FULANINHA DOS JARDINS E AGORA DIGO A VOCÊ: MEXA COMIGO, NÃO COM MINHA CRIA, PORQUE VIRO UM BICHO.
_EU...desculpe, é que este cara fez muitas besteiras...
_E quem é você para dizer alguma coisa dele? É a mãe dele?
_Não! – balbucia.
_ É a namorada dele?
_ Também não!
_ Então é o que é dele?
_ Eu...eu nada!
_ Então vá comer capim em outro terreno, vamos, vamos, chispa, antes que a faça engolir aos pedaços este salto - aponta para os pés dela.
O povo aplaude.
_ E vocês, o que estão fazendo aqui? Pois caiam fora! O circo fechou! Os palhaços já foram... Que gente enxerida, moleque! Tá doido!
Todos se vão, contrariados.
_Graças a Deus os encontrei – diz Marcos achegando-se. _ O trânsito tava pesado.
_Tá vendo, é outro mentiroso, deveria mandá-lo embora.
_Credo, Jacira! Corri que nem um louco pra chegar aqui.
_Num diga, Suzicreide? Pois não era você que estava se “pegando” com uma candanga lá no estacionamento? Pois eu fui até lá, queria uma opinião sua antes de desistir da viagem, mas o que eu achei não foi muito bonito de se ver.
_Como diz uma mentira dessa?
_Eu que pergunto: como tem a cara de pau de mentir desse jeito, sujeitinho desaprumado? Nem daqui você saiu!
_Então prove! – exige o chofer.
_Com o todo prazer – abaixa a gola da camisa, expondo uma marca de batom. _ Tá bom pra você? Como é burro, com o carro que está, todo mundo repara ou acha que o povo daqui anda de limusine também? É tudo pé-rapado que nem nós. Se quer fazer as coisas erradas, que faça com jeito, senão fica feio, muito feio.
_Pelo menos sou homem e dos bons, não um boiola igual certas pessoas – pensa, com a cabeça abaixada.
_Então você não estava no trânsito? – exige o rapaz, revoltando-se.
_Nunca! Só se fosse em outro trânsito... O da sem-vergonhice.
_Marcos, o que faço com você?
_Patrãozinho, me deixe explicar, sabe, a moça, coitada, chegou do interior e estava perdida, então resolvi ajudar...sabe como são essas coisas. Mas não me esqueci do senhor, tanto que liguei falando do que esta mal-agradecida estava prestes a fazer.
_Oxi! Você foi encher o moleque então? – dá-lhe um tapa na cabeça. _Bicho vagal!
Ricardo emudece.
_Agora pegue minhas malas e leve pro carro, tô zonza de tanta emoção.
_Não posso! Minha coluna dói!
_É uma ordem Marcos! – determina o rapaz.
_Bem feito, sujeitinho de quinta categoria. Agora vamos embora, até chegarmos em casa, quero saber tudinho sobre esta história de e-mail, namorada insossa, viadagem...Deus que me livre! Coisa do fim do mundo.
Abraçados, seguem até a saída, acompanhados à distância pelo motorista, que esbraveja como um condenado.
Minutos passam...
Já na mansão, Ricardo decide mostrar a Jacira o histórico da conversa com o Desbravador, então sobe até o quarto do pai e pega o notebook dele. Liga, digita a primeira senha, dá erro. Tenta a segunda, a terceira, a quarta e a quinta. Todas falham. Clica na dica de senha. “Uma delícia...” Estranha. Desce com o aparelho nos braços, pede ajuda à empregada, que faz duas ou três tentativas, todas erradas. Afastam-se. Marcos, à espreita, se aproxima, na primeira tentativa, eis que acerta.
_Como eu pensava... A senha tinha mesmo de ser “bombeiro”. Ele nunca esqueceu a criatura, por mais que negasse. Que coisa!
Encerra com a música: (My Immortal - Boyce Avenue).
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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