3x02 - O Universo em que tive coragem
de Vítor Siqueira
Diz a ciência – e se não diz, diz alguma pseudociência, já não me lembro – que talvez existam infinitos universos por aí, radicalmente diferentes ou quase idênticos. A cada vez que se opta por tomar um outro trajeto voltando para a casa, pedir queijo ao invés de presunto, ou os dois, ou nenhum deles, repartimos tudo em diferentes universos, cada qual abrangendo as possibilidades acolhidas com sua escolha.
Vi isso em algum filme e fiquei encucado, enquanto observava aquele casal que até hoje não sei o nome, mas já conheço porque cruzam a rua sempre no mesmo horário, no mesmo dia da semana. Quinta-feira, fim de tarde. Não sei de onde vem ou para onde vão, mas sempre passam aqui na frente falando alto, bem alto.
O rapaz mais alto, de cabelos cacheados caindo pelos ombros, eu sei que canta muito bem. Sei porque às vezes ele passa cantarolando, olhando no fundo dos olhos do outro, apertando a mão contra o peito. Tem também um sorriso muito bonito. O segundo, que quase não sei como são os cabelos porque anda sempre de boné, tem uma risada meio esganiçada e deliciosa, que sempre me faz rir também, ainda que sem saber da piada.
As mãos dadas devem suar em meio à caminhada, mas não me lembro disso tê-los feito largar um do outro algum dia, nem no auge do verão. E, se soltaram, sei que terá sido só por causa do calor. Gosto de olhar, porque parecem sempre felizes. Podem não estar, mas parecem. Despreocupados, rindo à toa.
Gosto porque, tirando eu e minha curiosidade, não acho que alguém na rua repare que eles passam por aqui. A não ser a vizinha de baixo, da casa amarela, que repara em tudo e logo trata de passar para a frente. Ela que rememora pelos velhos tempos quando os vê andando, porque nos tempos dela não tinha aquilo, embora mais de uma vez já tenha visto coisa pior acontecer naquela casa amarela.
Nos tempos dela, que também eram os meus – se é que quero clamar algum pertencimento a eles – já teríamos soltado as mãos, fizesse calor ou frio. Faltaria coragem para cantar olhando nos olhos dele, ou para rir alto o bastante sem importar com quem ouvisse.
Nos meus tempos, que também eram os seus, mas nunca nossos, talvez tenha faltado coragem em dizer que o amava como amava. Se bem que também foi preciso muita coragem para soltar sua mão pensando que nunca a seguraria de novo. Outros tempos, outras coragens.
Penso, olhando aqueles dois, quando éramos nós. Em quantos universos escolhemos nós e não os outros. Em quantos universos o escolhi. Quando vejo as mãos deles se entrelaçando, penso nas nossas e em como elas se encaixavam, e se ele ainda as seguraria aqui. Entre as histórias que se escondem entre as dobrinhas que se formam, guardo a dele bem guardada.
...
Tenho alguma saudade, mas não tenho nostalgia. Nostalgia consciente, de uma saudade que só é saudade porque sei que não posso mais viver. Saudade, saudade mesmo, eu tinha é dele.
Não quero me queixar, amargurado, do que não vivi. Ainda passo café como ele me ensinou. “Não pode pôr tudo de uma vez, tem que hidratar primeiro, esperar um tantinho.” Quando sobe o vapor amargo, sinto que com ele sobe o cheiro de pão com manteiga, tostado no fogo mesmo, que ele fazia antes do trabalho para comer assim, molhando no café.
“Quem que ia passar o café pra ti se eu não tivesse aqui?”, ele me perguntou num dia, com uma ingenuidade profética. Ri e o abracei com cuidado, esperando largar a água quente. Ele girou para me olhar nos olhos, os narizes se encostando e fazendo cócegas enquanto o vapor embaçava as janelas e escondia nosso segredo. Eu passaria café para mim, mas nunca mais seria tão doce, não importava quanto açúcar eu colocasse.
Essa coisa de que amar escondido é melhor para mim é bobagem. Coisa desse tempo, que se tem a vida inteira aberta para quem quiser ver. Nenhum beijo em segredo me arrepiou mais que aquele que ele tascou bem no meio da rua, antes de sair correndo atrasado com um “até de noite”. Nenhuma adrenalina fez meu coração saltar mais que quando ele cantou “Love Of My Life” com um inglês horrível, olhando nos meus olhos, naquele caraoquê chinfrim que ficava no centro e nunca acertava o pedido de ninguém, mas que ele amava porque podíamos ficar abraçados a noite toda.
Eu demorei muito tempo para me escolher, e talvez fosse tarde demais para tê-lo escolhido.
Eu me escolhi, mas escolhi em partes e em tempos. Não me escolhi por completo. Escolhi o trabalho que não gostava mas precisava; escolhi a casa na rua onde poderia observar aquele casal feliz passando décadas depois; escolhi segurar as mãos daquela que parecia a única a abrir as portas de uma felicidade que por muito tempo esteve trancada.
Estar com ele era feliz, mas também doía. Doía porque nunca poderia amá-lo por inteiro, do jeito que eu queria. Eu já me amava aos pedaços. Nunca me enganei achando que poderia esquecê-lo, mas talvez tenha subestimado o quanto sua lembrança continuaria viva, mesmo quando tomei coragem de olhar para mim mesmo e me amar por inteiro.
Não tenho remorso. Para mim basta a felicidade de saber que o casal que atravessa minha rua não terá que escolher, largar as mãos, ou amar escondidos. Fui feliz. Fui, não. Sou. Restava apenas uma inquietação de pensar, entre tantos universos, em quantos conseguimos ser felizes, mas juntos.
Pensava, vendo aqueles dois, onde ele estaria. É claro que tinha vontade de descobrir, mas vontade não maior que o medo. Sonhando acordado, imaginando-nos no lugar do casal risonho da minha rua, não precisava descobrir o que ainda restava para mim e para ele neste universo daqui.
Talvez ele tivesse encontrado alguém com a força que eu não tive de segurar sua mão e não soltar nunca mais. Talvez tivesse tomado coragem de realizar os sonhos que me confessava debaixo da colcha, escondido igual criança, pensando em ir para a capital. Talvez, depois de tantas vírgulas que não nos deixaram respirar, ele tivesse colocado um ponto final.
Em outro universo, eu teria tido coragem mais cedo. Em muitos outros universos, eu sei que nunca descobri. Mas, neste eu tive coragem.
Coragem de caminhar devagarinho pelas ruas que se perdiam na minha memória até aquela casinha que já não era mais casinha, e sim um terreno em construção. “Não, mudou faz tempo. Pra onde que ele foi mesmo, Márcia?”. E, sem pensar duas vezes, seguir as instruções da Márcia, ainda que nem ela parecesse ter certeza.
Quando passei pela rua, acenei para o casal, que me ofereceu seu melhor sorriso. Cruzei a calçada cheia dos buracos, indo para onde eles vão. Atravessando para o outro lado da cidade como quem cruza o céu, parei na porta daquela casa de portão de madeira antigo e levei alguns segundos para vencer o medo – e um pouco de falta de fôlego – e bater palmas.
Eternos segundos depois, quase pensando em voltar correndo, encontrei seus olhos escondidos atrás de um par de óculos grossos, apesar de curiosos como sempre. A pele marcada pelo tempo que nos separou desenhou entre as rugas um sorriso tão bonito quanto aquele pelo qual me apaixonei.
Em algum universo ele não me deixou entrar. Mas, em tantos outros, como aquele, ele apenas disse “Não quer entrar?” enquanto abria o portão e me segurava com força, para nunca mais soltar. “Acabei de passar um café”.
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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