O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 19
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Como o senhor está? – pergunta o médico, medindo o pulso da criatura. _ É um
milagre ainda estar vivo!
Gabriel o encara com os olhos ferinos e dispara:
_Renunciei ao direito à vida há muito tempo.
_Não fale isso, milagres não acontecem todos os dias e muito menos aqui, onde muitos imploram e poucos são atendidos.
_ E para que servem os milagres? Não são para devolver a alegria àqueles que os aguardam? Pois a mim só trouxeram mais ódio.
_ Ei, não diga isso! – repreende-o uma enfermeira, trocando-lhe o soro. _ Enquanto diz essas coisas, sua mãe mofa naquela cadeira, em orações.
_ Não tenho culpa se ela é uma idiota!
_ Que dor é essa que lhe endurece o coração? – indaga o médico, assustado com suas palavras.
_ Não tem ideia! – responde, encolhendo-se. _ Se vivesse um só minuto minha vida, certamente, já teria pulado de um viaduto.
_ Pensamentos suicidas! – diagnostica, anotando numa prancheta. _ E o porquê disso? Sei que é portador de uma doença incurável, mas deveria aproveitar os goles de vida que Deus ainda lhe oferta. Muitos pagariam qualquer fortuna para terem esta oportunidade.
_ Eu não! – é taxativo. _ Pagaria qualquer fortuna para deixar este mundo!
_ E o que o penaliza tanto? – atém-se ao sofrimento do homem.
Gabriel se cala.
_ Seja o que for, nada justifica tanta dor. Pense melhor no que diz, com estas palavras há de machucar muitas pessoas, inclusive a si mesmo. Se precisar de algo, estamos aqui.
_ Aplique-me um veneno que lhe serei grato! – pede.
Os olhos de ambos se encontram. Os do médico se apresentam fortes e serenos; já os dele, espelham um buraco negro.
_ Não! Você já foi envenenado, agora está fazendo o caminho contrário, buscando o antídoto a tantas chagas que lhe ousam arrebentar o coração, ainda que não se dê conta. Pense nisso!
Mudando de biombo, o médico pergunta a Leonardo como ele está e o empresário, ainda sonolento por conta da medicação, pede que o retire daquele lugar.
_ Sairá logo! Uma equipe o conduzirá ao apartamento. Tenha um pouco de paciência, o pior já passou.
_Doutor! – chama a enfermeira.
Ele retorna ao leito do bombeiro.
_ Sim! O que foi?
Quando o reencontra, é invadido por um sentimento de piedade, Gabriel chora agarrado ao cobertor.
_Devo lhe aplicar um sedativo? – pergunta a mulher.
_Ei...- senta-se ao lado dele...-, olhe para mim.
_ O que...que...vo-vo-cê quer?
_ Ninguém merece carregar todo este fardo sozinho, deve dividi-lo com alguém.
_Me deixe partir, não aguento mais!
_Não me confunda com Deus. Não sou eu quem decide o destino das pessoas.
_Por favor ! – suplica.
_ Não sei o que o levou a esta condição, deve doer demais, porém, viver, apesar dos pesares, ainda vale a pena, quem sabe não supere as dificuldades e desfaça as amarras que lhe impedem de sorrir. Há algumas horas acreditávamos que não passaria de hoje; do nada, ganha uma sobrevida e agora quer desperdiçá-la com sentimentos nefastos e pedidos ingratos? É assim que pretende deixar sua marca neste planeta? Como alguém que não soube valorizar o ar que falta a muitos pulmões?
_ Eu sofri demais, não queria estar mais aqui!
_Mas está! - pega sua mão direita. _ E o que fará? Culpará todos nós por isso? Você não é o único a sofrer aqui, há pessoas em estado vegetativo que dariam toda fortuna que acumularam ao longo da vida para trocarem algumas palavras comigo, assim como faz agora, portanto, pense melhor, e deixe de lado todo este egoísmo.
_EGOÍSMO? – estranha.
_ Sim! Partir agora seria bom apenas para você, não para aqueles que o amam, como sua mãe e sei lá quantos mais.
Ele abaixa a cabeça.
_ Você foi um bombeiro, é isso? – lê a profissão dele na ficha._ E é assim que deve portar aquele que, vestido da beleza divina, tem a missão mais linda deste mundo: a de salvar vidas?
Gabriel se arrepende.
_Imagine lutar contra todas as adversidades do destino para salvar uma vítima e, quando consegue, ao invés de um sorriso de agradecimento, recebe um tapa, daqueles bem dados, tipo de cinema, pois é assim que estou me sentindo. Como alguém que levara um tapa daqueles!
_Eu...eu...
_Saiba, minha missão é salvá-lo, não importam as dificuldades, assim como também é a sua...
_Foi...- responde, atordoado com as palavras.
_ Ainda é! Porque salvar a vida é a nossa maior missão! Minha e sua! Não há como ser um ex-médico ou um ex-bombeiro, mexemos com pessoas, sofremos e choramos com elas; sorrimos quando são resgatadas e vibramos com suas conquistas, então, como se abdicar desta missão, se é o que nos preenche, que nos faz vivos de verdade? – retira os óculos e o envolve pelo olhar reluzente. _Gabriel, sua mãe não lhe deu esse nome por acaso, você é o “mensageiro de Deus” e sua missão na terra ainda não acabou, por isso, faça valer a pena cada minuto que recebera do céu. Talvez seu coração se abrande e tudo o que disse acabe sepultado nas valas do tempo.
_Por que me diz isso? Eu só queria morrer!
_ Só queria morrer? Isso é fácil, basta pular na frente de um carro, jogar-se nas águas do Tietê ou dar um tiro na nuca; se quer mesmo morrer, dei-lhe três opções, basta escolher a que melhor o satisfaça. Agora, como de fato não deseja o que pede, espera que Deus se intimide com sua covardia e o recolha. E desde quando um bombeiro tem o direito de pedir aquilo que tanto quer distante? Ou você não trava uma batalha diária contra a morte? Quando se arrisca a invadir um morro desabado, o que faz, ainda que não perceba, é travar uma corrida contra a morte em que cada minuto faz a diferença, porque num simples vacilo seu, uma vida pode nunca mais florir. Pense nisso! Agora vou deixá-lo, espero que o vazio de seu coração encontre algum conforto nas palavras que lhe disse – o sorriso é o de um anjo.
_Quem é você? – pergunta, com os olhos emocionados.
_ Um salvador de vidas, assim como você!
_ Vamos deixá-lo aqui, doutor?
_Não! Leve-o para o quarto, Gabriel precisa respirar novos ares, encontrar algum sentido ao milagre que recebera.
A mulher vira a maca e a ajeita no corredor. Estão de frente para Leonardo, que os vê, mais não esboça qualquer reação, pois o rapaz está com a cabeça coberta pelo lençol. A empurrar a maca, a mulher derruba uma caneta; abaixa-se, pega-a e se volta para o paciente, arrumando-o.
_Não está com calor? Descubra essa cabeça, se sentirá melhor!
Leonardo levanta-se de leve, os vê saindo; impedido pela distância, não o reconhece, deita-se de novo e volta a dormir.
Chegam ao corredor. A mãe o abraça com o mesmo amor que de dedica a um recém-nascido. E talvez fosse! Quem acreditaria que ele, nas condições mais cruéis em que se encontrava, renasceria das próprias cinzas?
Entram em um quarto ao lado do apartamento mais caro do lugar.
_ Filho meu, graças a Deus, você voltou! Orei tanto por isso, meu amor!
_ Onde estamos? – percebe o luxo do lugar. _ Roubou algum banco ou o quê?
_Um anjo nos estendeu a mão!
_Outro? Será que estou mesmo vivo? Tanta bondade assim até o santo desconfia!
_Pessoas boas existem, meu menino-homem! Basta acreditar!
Mostra-se confuso.
_ Como você se sente? Diga, a mãe está aqui para ajudá-lo! Diga, filho, nunca o abandonarei, você sabe disso! Posso não ser perfeita, mas o amo muito e seria capaz de trocar minha vida pela sua. Se pudesse, estaria em seu lugar!
_Deixe de besteira! – seu coração ainda ressente. _ Eu não queria estar aqui, você sabe! Perdi tudo nesta vida, até mesmo o amor-próprio.
_ Esqueça isso! O importante é que está lutando, tudo dará certo, acredite.
_Por mais quanto tempo? Sabe que tenho uma doença letal. Se não foi dessa vez, será da próxima, por isso deve estar preparada.
_Não diga isso, meu filho – passa as mãos pelos cabelos ralos dele. _ Você é forte, há de vencer esta batalha.
_ Ela está perdida!
_Não! Não está! Enquanto estiver aqui, do meu lado, nada estará perdido. Pode me xingar de velha maldita, de mulher rampeira, do que for, não me importo, sei que está deprimido, revoltado contra a vida, que no fundo só diz tudo isso da boca para fora – dá-lhe muitos beijos. _ Nunca vou deixá-lo!
_Mãe...
_Fale, meu amor!
_A única coisa que eu quis nesta vida foi amar uma pessoa especial, que me fizesse feliz, um ser realizado, mas acabei enganado, e quando percebi, estava na ponta de um morro, à mercê do destino...
_ ... Pare! Pare! – interrompe-o com veemência. – Agora é hora de alegria, esqueça isso, você é forte, por isso ainda está aqui.
_ Eu sinto como se não tivesse mais uma imagem, uma forma, é estranho; no fundo, quando me olho, tenho a impressão de que estou na dimensão errada. Isso é normal?
_ Filho, não pense nisso, não vale a pena! Abrace a mãe, estou aqui, retire de mim todas as forças de que precisa para lutar... Lembre-se, você veio deste ventre – aponta para o próprio corpo-, foi gerado com muito amor e permanece sendo amado da mesma forma.
_ Se eu pudesse regredir no tempo, jamais teria deixado o meu casulo, o seu corpo, um abrigo divino.
A mulher enche os olhos de lágrimas.
_ Continuo protegendo-o do mesmo jeito! Olhe para mim, estou aqui, e o amo muito! Vamos sair dessa juntos.
A esperança é a última a morrer no campo de batalha, diriam os filósofos, ainda que a realidade afirme o contrário.
Minutos se passam...
Leonardo é levado para o apartamento ao lado.
_ Quero falar com meu filho. Vamos! Ligue para minha casa!
_Só um minuto, senhor!
_Faça o que estou mandando, senão, pode dar adeus a este emprego. Vá, criatura! Preciso ver meu filho, sinto a falta dele, você sabe o que é isso? Claro que não! Pobre não sente; vegeta!
_Senhor!!! – adverte-o
_Faça o que estou mandando!
_Pare com tudo isso! Se continuar com esse bate-boca, pego minhas tralhas e dou o fora pra sempre de sua vida – ameaça Jacira, tentando livrar o chofer dos questionamentos do rapaz.
_Ele citou o tal do...do desbravador, na certa deve conhecê-lo!
_E desde quando que um mulherengo desses se envolve com veados...ops, desculpe! – dá uma risadinha sem graça. _ Esse bicho é macho, pelo menos parece, porque hoje em dia, com essa modernidade, toda fruta muda de sabor, é um tal de homem com homem, mulher com mulher, que fico até perdida, né, Suzicreide?
_Tô fora! Meu negócio é coxa grossa e...
_Cale a boca, seu despudorado! E desde quando quero saber de suas intimidades? Parece “um galinha”, cisca em todo que é terreno. Bicho à toa...- volta-se para o filho de Leonardo -... e você , caia fora daqui, já disse que tudo isso não passou de um mal-entendido.
_Mas...mas...
_Cale a boca! – berra. _ Tô cansada de tanta zoeira, até parece que tô numa novela mexicana. Fala sério!
_ Eu preciso descobrir quem é o Desbravador, ele arruinou minha vida, de uma hora para outra, perdi Anna e meu filho.
_Filho? E quem garante que era seu? Anna nunca foi uma “freira”, se é que me entende!
_Benício me disse...
_Foi pra te provocar. Como é inocente, meu Deus! Aff! A burra aqui sou eu e quem zurra são eles. Que destino o meu, Suzicreide!
Avista o notebook, dizendo:
_O que o computador de meu pai faz aqui? E está desbloqueado.
Tenta se aproximar, quando Jacira o barra com os braços.
_Aqui não tem nada! A gente estava tentando acessá-lo, mas...mas...
_...Conseguiram! – completa. _Os programas estão abertos. Como conseguiram a senha?
_Bem, quer dizer, eu...eu digitei alguma coisa e nem me lembro o que foi...- desconversa, fechando o equipamento.
_Você o desligou, eu queria usá-lo.
_E pra quê?
_Tenho de encontrar aquele sujeito, nem que seja a última coisa que faça em vida...
O celular dele vibra, interrompendo a conversa.
_Meu pai? Sei! Estou indo para aí!
_MORREU? – os olhos de Marcos alumiam mais que faróis na escuridão.
_Vire essa boca para lá! Ele acordou e já está no quarto, quer me ver.
_Isso mesmo, meu filho, pegue o carro e chispe daqui! Tô cansada de você! O moleque pra dá trabalho! Acho que atirei pedra na cruz, só pode ser.
Assim que ele se retira, a mulher se dirige ao motorista.
_Foi por pouco! Ufa! – limpa o suor da face. _Mas nosso papo ainda não acabou, entendeu, figura? E só vou sossegar quando souber tudo sobre essa história de Desbravador de Identidades.
O chofer engole a saliva com dificuldade.
Os véus da noite se arrastam pela irrequieta selva de pedra..
Ricardo entra no elevador e sobe. Está ansioso, quer ver o pai, ter a certeza de que está bem. Apesar de ele ser uma alma ausente, o ama demais. Assim que as portas se abrem, encontra a mãe de Gabriel, que vinha em sua direção.
_Senhor??? – suspira a mulher, com o coração aliviado. _ Que belos ventos o trazem?
_Meu pai!
_E ele está melhor?
_Parece que sim! E seu filho?
_Foi agraciado com mais alguns grãos na ampulheta... E graças ao senhor! Um anjo em nossas vidas! Nem sei como o pagaremos.
Pega a mão direita dele e a beija em sinal de gratidão.
_Não faça isso! – se incomoda. – Não é preciso!
_O senhor é um anjo e Deus há de recompensá-lo por tanta bondade. Pois venha, quero que conheça meu menino-homem, porque sabe, para uma mãe, um filho nunca cresce.
A forma como ela se refere ao rapaz o encanta; é como se Nathalia estivesse à sua frente, com os carinhos que nunca se esgotavam. Quantas saudades há naquele coração.
_Venha, ele vai adorar conhecer o jovem que o salvou. Venha! Por favor! – a mulher o puxa, não há como resistir.
Entram no quarto.
_Gabriel, Gabriel, veja quem eu lhe trouxe – chama, tomada por um sentimento de felicidade. _Este é o anjo que desceu do céu para salvá-lo.
_Gabriel? – questiona-se Ricardo, lembrando-se das palavras da tia.
De costas, a criatura perde-se na imensidão de uma selva enlouquecida, que cresce desordenada feito uma erva daninha. Só atende aos apelos da mãe na terceira ou quarta chamada. Ao virar-se, um arrepio lhe corre o corpo, o suor lhe toma a face e os olhos se agigantam, como se deles fossem saltar todas as perversidades do mundo. Está diante de Ricardo Médici. Como isso era possível? Os dois se observam com tamanho interesse, como se já se conhecessem. Era como se o mundo de um invadisse o do outro, numa dança inquietante de sentimentos inexplorados. Naquele momento, a fantasia abandona o seu manto sagrado e o que se apresenta é uma realidade explosiva, em que duas almas inquietas se vasculham à procura de respostas às próprias dores...
Encerra com a música: (A Infinita Jornada da Alma - Marcus Viana)
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
A Infinita Jornada da Alma - Marcus Viana
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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