O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 21
Ricardo
está tenso. Para alguns metros à frente, desliga o carro e os acompanha pelo
retrovisor. A impressão é a de que estão fugindo de alguém. Mas de quem? A
mulher entra no carro, deixando a cadeira de rodas para trás, que desce pela
lateral, toma velocidade, colide contra um poste e vira. O veículo sai em alta
velocidade, seguido à distância pelo jovem.
O Gabriel de que Márcia mencionara, agora ele tinha certeza, era este rapaz. E ele deveria ser muito valioso, porque ela jamais deixaria o conforto de seu luxuoso lar, e logo a esta hora da noite, para socorrer um semelhante, ainda que fosse um paciente muito necessitado.
Mas quem ele seria? Quando o viu, teve a impressão de que o conhecia, ainda que nunca o tivesse visto na vida. Quis perguntar algo, mas não teve coragem, porque do modo como se refletia, com toda aquela fragilidade, teve medo de magoar. Mas que algo o despertara para a solidariedade, ah, isso sim! Nunca foi de ajudar alguém, jamais estendeu a mão a um desesperado, sempre teve aversão a criaturas do submundo, seres que sempre considerou vazios como os zumbis. Mas com ele fora diferente, desde o momento que o viu sendo rejeitado pelo hospital, sentiu que deveria ajudar, aportar os recursos necessários para salvá-lo, porque ele, de alguma forma, mexia consigo. O porquê? Não sabia! E agora, depois de tudo, entende que alguma coisa há de errado, o homem era conhecido de sua tia, que também lhe prestava apoio.
Confuso, continuava a segui-los. Márcia não parava nos sinais, ia de uma faixa para outra, como se quisesse chegar logo ao destino. Aparentava descontrole, a ponto de não notar que logo atrás estava o sobrinho. Que ligação ela teria com aquele ser? De onde se conheciam? E o que ele representava à mulher? Amigo? Conhecido? Paciente? Apenas caridade? Caridade? Impossível! A tia era pior que ele, tinha nojo de pobre e não escondia isso de ninguém. Então...
Chegam à zona leste de São Paulo, uma região bastante carente. A mulher por pouco não atropela um casal de namorados. Continua a desbravar a região sem pensar nas consequências. A pobreza está por todos os lados. Moradores de ruas dividem o calor que se emana dos tambores que incendeiam de tudo, de restos de galhos velhos a caixas de papelão, o que importa é se manter aquecido em uma das noites mais gélidas do ano. Nas calçadas, muitos colchões com criaturas envoltas por cobertores imundos, carregados de doenças. Aos pés dos viadutos, famílias inteiras em barracos de madeira. A cena desperta comoção, mas também muito medo, por todos os lados há aliciadores do pó, que ofertam suas iguarias aos berros, como se estivessem numa feira livre. A escuridão guarda estes seres da mira da polícia, que vez ou outra passa para assustar. Era uma outra São Paulo, distante da que ele conhecia. Um lugar em que nascer já era difícil, criar-se então, quase impossível. E pelo que assistia, ali o tráfico fazia as vezes do poder público, cedendo algum tipo de auxílio em troca de proteção. Os valores estavam invertidos. Pessoas inocentes defendiam criminosos. Sim! E daí? A fome e o frio não deixam opções. Era isso ou morrer à mingua, à espera de que algum político, tocado pelo espírito divino, pudesse retirá-los da condição de seres invisíveis. E você acredita neste milagre?
Márcia adentra a uma ruela, passa por dois ou três edifícios invadidos e para diante de uma entrada, que leva a um corredor cheio de casebres tortos e fedorentos, como os que encheram os bolsos de João Romão, no cortiço idealizado por Aluísio Azevedo. Ele para a alguma distância. A psiquiatra ajuda a mulher a carregar Gabriel, que muito fraco, se apoia nas duas para conseguir caminhar. Ricardo deixa o veículo, olha para os lados, a rua tem poucos bicos de luz, mas curioso, vence o medo e vai atrás deles. Precisa descobrir o motivo da tia se prestar a tal situação. Poderia ter pedido ao Jarbas, mas como certamente há algo de errado, fez ela mesma o serviço. A cabeça do rapaz é fértil e não para de criar suposições, uma mais desatinada que a outra.
A mãe abre o cadeado da corrente que prende a porta e entra, arrastando consigo o filho e a médica. São apenas três cômodos numa ruela perdida no tempo. Aproxima-se o rapaz, quer saber mais; por um momento ignora os perigos, que são muitos.
_Que lugar imundo! – constata Márcia, colocando Gabriel em uma cama desarrumada. _ Pensei que tivesse usado meu dinheiro para algo melhor.
_ As coisas estão muito caras, dona! – rebate ele, ajeitando-se.
_Você precisa voltar ao hospital, como está, logo encontrará o próprio fim. Não sabia que estava internado, muito menos naquele hospital. Aliás, de onde tirou dinheiro para pagá-lo? Uma diária lá custa cem anos de sua vida miserável.
_ Um rapaz nos ajudou! – interfere a mãe, sem entender quem é aquela mulher.
_Que rapaz? – estranha a irmã de Nathalia.
_Ele mesmo! – confirma o bombeiro.
_Ele quem? Seja mais claro! – assusta-se. _ Você não está dizendo que...
_Exatamente! Ele me salvou e não sei o porquê... – olha para a mãe-... Deixe-nos a sós! Vamos!
A mulher até tenta uma investida, mas desiste. Abre a porta e sai. Bate na casa de um vizinho e entra. Percebendo a movimentação, Ricardo se aproxima sem fazer ruído. Rente à porta, ouve toda a conversa, que se mostra acalorada.
_ Você não deveria ter aceitado!!! – repreende-o.
_ Eu??? Está louca, mulher? Encontrava-me inerte. Tudo aconteceu à revelia.
_Mas sua mãe deveria ter me ligado, eu o ajudaria...
_Ele nem a conhece, como faria isso?
_Nunca falou nada sobre mim?
_Até tive oportunidade, mas não o fiz.
_E por quê?
_Ela é uma alma pura e não merece carregar a minha dor; já basta pelo que passou.
_Então ela não sabe de nosso acordo?
Ele responde um não com a cabeça.
_ Pois acabou tudo! - desanima-se a mulher.
_ Não acabou não! – aponta para o computador. _ Daqui a algumas horas, quando estiver melhor, entrarei na sala de bate-papo e por ele procurarei, porque sei, deve permanecer incomodado e irremediavelmente atraído pelo ser audacioso que construí.
_Deve achar-se imbatível! – ironiza. _Ricardo não é bobo!
_Você que pensa! Pelo corpo físico que tenho, jamais o atrairia; mas trajando as vestes virtuais do irresistível Desbravador de Identidades, fui capaz de invadi-lo e dele sugar o que precisava para me manter vivo. É um rapazote inconsequente, que pensa ser dono de tudo e de todos, porque tem como escora, uma das maiores fortunas paulistanas.
_Desbravador de Identidades? – pergunta-se Ricardo, atordoado. _ Então é ele?
_Sei não! Li a conversa de vocês, de fato, foi bem além do que imaginava, mas não acredito que ele guarde o efeito da hipnose por muito tempo, porque o que fez foi hipnotizá-lo, usando a atração sexual como isca. Além de que, depois do e-mail que disparou, ele deve querer matá-lo.
_A mim? – sorri, visivelmente abatido no campo de guerra. _ Já estou morto!
_ Você precisa terminar o que começou... – diz ela, olhando para os recortes de jornais presos à parede. _ Você tem a vida dos Médici sob a mira! Veja – aponta para a irmã-, Nathalia estava linda neste vestido. Era uma festa no Morumbi, comemoravam o aniversário do patriarca da família Prado. Época em que o brasão fazia diferença. Não é como hoje, que qualquer sobrenome alçado ao sucesso por programas de confinamento na tevê, criam a falsa sensação de realeza – destila veneno. _ E veja ela aqui de novo – aproxima-se de outra publicação-, que graça. Sabe, apesar de tudo, eu a amava, quis apenas alertá-la do que fazia o marido e acabei ferida por isso. O que me resta agora é apenas buscar pela reparação dos danos, se é que seja mesmo possível, depois de tanto tempo. E aqui está Ricardo...- mostra-o com a mãe.
_...Por um momento senti pena dele – confessa a criatura. _Hoje, quando nos vimos, senti que ele possui uma alma boa, é um garoto enganado pelos valores errados, mas capaz de crescer e render bons frutos, diferente do pai, aquele monstro.
Ricardo respira com dificuldade, as revelações lhe caem como respostas às muitas dúvidas. Enquanto escuta a conversa, mantém-se vigilante, temendo pelo repentino retorno da mãe de Gabriel.
_Leonardo deve estar à sua procura. Pedi para que você não ligasse para ele, mas não me ouviu...
_...Não resisti! Ele precisa pagar pelo que me fez, senão não descansarei. Ele destruiu minha vida, jogou-me à sarjeta, tomou minha alma, deixando-me apenas este corpo apodrecido.
_Mas Marcos o viu. E o que acha que fará? Daqui a pouco estará à sua porta, com uma pistola na mão, pronto para findar o serviço que imaginou ter concluído.
_Ele teve essa chance e não o fez.
_E isso me intriga.
_Ele me olhou de um jeito estranho, como se estivesse perturbado com alguma coisa.
_Perturbado sempre foi. Esqueceu-se de que ele é um presidiário fugitivo, meu querido? Pessoas como ele matam e almoçam a vítima sem qualquer resquício de remorso.
_Nisso tem razão. Por isso fugimos de lá. Se Leonardo soubesse que estava a alguns metros dele, já teria posto ele mesmo fim em minha história. Mas aqui neste fim de mundo, até ele me rastrear, já terei dado um fim ao filho dele.
Ricardo desacredita no que ouve. Como pôde ter ajudado uma criatura dessas? Uma lágrima lhe desce pelo canto esquerdo da face.
_Que ironia! A pessoa a quem deveria matar, terminou por salvá-lo. Coisa mais louca ! Mas, acha que conseguirá terminar o plano, como previsto?
_Sim! Posso fraquejar como mortal; já na internet, em outro corpo, sou imbatível e capaz das maiores atrocidades para atingir os objetivos mais insanos. Naquele território sem lei, o mundo está aos meus pés, assim como os servos aos seus senhores e os adoradores aos seus deuses.
_Você incorporou um Leonardo que jamais imaginei.
_Faço com o filho dele justamente o que ele fez comigo.
_Mas não o amava?
_Amava não, ainda o amo! – confessa Gabriel.
_Tem razão do que diz? Acho que vou dobrar a dose de sua medicação.
_Sim! Toda vez que ouço seu nome, sinto um tremor dentro de mim, é como se ele fosse entrar aqui a qualquer momento com uma rosa em mãos e me beijar.
Ricardo perde o fôlego por um momento.
_Está com a razão por um fio...- diagnostica a mulher.
_Ele foi o homem de minha vida, aquele que ousou desbravar minha essência, capaz de me fazer feliz por longos anos, ainda que isso causasse muita dor à mulher dele. Sei o quanto Nathalia sofrera, mas não tinha como deixá-lo, era o ar que eu respirava, o farol que me guiava por águas intranquilas, o deus a quem eu dirigia minhas preces. Eu o amava muito e por ele seria capaz de doar minha vida, se preciso fosse.
_Mas acabou numa vala, com a vida destruída, o corpo esfacelado e o coração em pedaços... Caia na real! Se continuar desse jeito, daqui a pouco estará diante dele, pedindo desculpas por não ter morrido na emboscada que lhe preparara. Retire-se já deste mundo de faz de contas e volte à realidade, pois o homem a quem se entregou é capaz de qualquer coisa para vê-lo estirado em qualquer beco desta cidade. E para isso não falta muito, basta localizá-lo, para que lhe meta uma bala na cabeça.
_Será que ele faria isso? – é como se ele se esquecesse do que passou nas mãos do chofer. O amor é capaz de qualquer coisa, até de perdoar os piores horrores.
_Quer testar? – dá-lhe o celular. _ Ligue para ele e pergunte. Em questão de tempo o encontrarão enterrado em algum lixão da cidade.
Os olhos do rapaz, por um instante cintilantes como as estrelas, se ofuscam com a chegada de nuvens carregadas. A psiquiatra tinha razão. O homem que fantasia nunca existira; podia até ser um deus, mas o dos mortos. E ele, até onde sabe, estava vivo. Por enquanto!
_Prepare a emboscada para Ricardo, não temos muito tempo! – determina Márcia. _ Ele será o cordeiro que lavará os nossos pecados.
_Às vezes penso que o garoto não seja nada seu.
A mulher se cala.
_Ele não merece pagar pelos erros do pai...- diz o bombeiro.
_ Se não for dele, de quem cobrarei pelas dores que me desgraçaram? Leonardo me levou à lona, é hora do revide, ainda que isso me custe algum sentimento.
_Algum sentimento? – estranha. _ Ele é seu sobrinho, filho da sua irmã, sangue do seu sangue, parte de sua essência...
_Anda lendo muito romance – satiriza.
_Não sente pena dele?
O celular de Ricardo toca, para o seu desespero e o dos dois criminosos, que interrompem a conversa e se voltam para a porta.
_Quem está aí? Tem um celular tocando! – diz Márcia, assustada.
O bombeiro tenta se levantar, mas não consegue.
_Veja lá... – pede ele.
Ela puxa a porta que está entreaberta e sai à rua. Olha para todos os cantos e não avista ninguém. Retorna ao casebre.
_Quem era?
_Não sei! Estranho demais!
_Deve ser o aparelho de algum morador, sabe como é, aqui não é como nos Jardins, as paredes parecem de papelão, o que um faz, o outro escuta, se é que me entende.
_Obrigado, senhora! – Ricardo agradece à sexagenária com os olhos lacrimejando._ Tome! – dá-lhe uma nota de cem reais. _ Deus lhe pague!
Assim que tocou o celular, uma porta ao lado se abriu, onde Ricardo, sem pensar duas vezes, pediu abrigo. A mulher até teve medo, mas ao vê-lo chorando, sentiu pena, poderia estar sendo caçado por algum marginal, então resolvera ajudá-lo; na idade em que estava, nem a morte a assustava mais.
Saindo da casa, o jovem se afasta, completamente abatido com as revelações. No mesmo instante, a mãe de Gabriel deixa a casa vizinha e o reconhece, mas, diferentemente do que se esperava, ela não chama pelo filho nem pela psiquiatra, era como se seu silêncio o retribuísse pela bondade que teve ao salvar o seu filho da morte.
Já no carro, o celular toca de novo. Atende. É Jacira. Está inquieta com o sumiço dele.
_Moleque! Moleque! Onde você está, meu filho? Seu pai me disse que você saiu do hospital há algum tempo! Fale! Está tudo bem? Que agonia! Parece que meu coração vai saltar pela boca, né, Suzicreide?
_DESCOBRI TUDO! – responde, com a cabeça caída sobre o volante, chorando muito.
Encerra com a música: (My immortal - Evanescence).
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
My immortal - Evanescence
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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