O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 22
_ Esperava mais de você, Marcos! Como pôde deixar que aquele traste sobrevivesse? Agora ele está à caça de meu Ricardo; se algo lhe acontecer, pode ter certeza, sua existência terminará! – ameaça Leonardo, no hospital.
_Não sei o que aconteceu, patrão! Ninguém sobreviveria àquele horror.
_Ninguém? Tem certeza? -ironiza. _ Pois ele sobreviveu e está por aí, em qualquer buraco, como uma aranha armadeira, pronto para dar o bote; não podemos esperar, temos de nos antecipar, pegar aquela peste de lhe tirar os últimos grãos de areia da ampulheta.
_Coitado do bombeiro... Se ele soubesse como o rapaz se encontra, talvez tivesse um mínimo de piedade – pensa Marcos, impressionado com a crueldade do homem.
_Onde será que ele está? – olha pela janela. _ E como vamos encontrá-lo numa cidade gigantesca como essa? Tem alguma ideia, subalterno?
_EU??? Eu não, patrão! Nem me arrisco a dizer! – mente. _ Mal sabe que a criatura estava no mesmo hospital, ao lado do leito dele...– comenta consigo mesmo.
_Você está muito estranho, chofer! Cadê aquele sorriso de matador? Pois foi por ele que me interessei desde o primeiro momento. Seus olhos cuspiam fogo e seu cheiro exalava a carnificina. O tempo parece que o arrefeceu. Perdeu a coragem?
_Não! Sou o mesmo!- tenta se impor. _ Basta o senhor mandar, que saio atrás daquela coisa e o mando pra baixo da terra, desde que o senhor me liberte, né?
_”Coisa”? – estranha. – Por que o trata deste jeito? Você sempre o chamou de bombeiro. Há algo de que eu não saiba?
Marcos surpreende-se com a pergunta.
_Modo de dizer, senhor! Ninguém que sobrevivesse àquele verdadeiro holocausto, sairia imune às pancadas, no mínimo carregaria marcas profundas, muitas, por todo o corpo.
_Isso quer dizer que daquele deus nada tenha sobrado?
_Se ele soubesse... – diz a si mesmo.
_O
que está murmurando? - cobra com veemência.
_Fale!
_Certamente ele está mais pra demônio que pra anjo.
_Será? Gabriel era muito forte! Deve ter se recuperado, se não, como explicar sua ameaça? Se não sabe, na noite que Ricardo sumira, ele me ligou dizendo que poria mim à vida de meu menino. Fiquei louco e aqui acabei. Mas preciso sair logo, pôr as mãos naquele ser e mandá-lo para o inferno, de onde jamais deveria ter voltado.
_Senhor, talvez ele esteja blefando!
_Nunca! Ele tem uma determinação de que desconhece. Quando quer alguma coisa, é capaz de cometer as maiores atrocidades... Hum! Com quem fui me meter!
_Poderia ter escolhido um “boiolinha mais tranquilo” – dá um risinho maldoso.
_Cale essa boca, antes que lhe quebre os dentes com um soco, seu atrevido – grita o homem. _ Por isso não lhe dou a tão sonhada liberdade; quando souber se portar feito gente, lhe darei as chaves que abrirão suas algemas. Por ora, sinta-se feliz por ainda estar vivo!
_Foi sem querer, doutor! Uma piadinha para descontrair – tenta apaziguar o clima de tensão.
_Cuidado com a língua, pode acabar sem ela!
O chofer arregala os olhos de medo.
_ Preciso salvar Ricardo...
_...difícil, hein?- entrecorta-o._ Não é só o tal que quer acabar com ele, tem muita gente irada, pra falar a verdade, seu filho está na boca do povo.
_Seja mais claro, imbecil!
Marcos lhe conta tudo. Do e-mail à discussão com Anna, do acidente à desavença com Benício, da perda do suposto neto à partida frustrada de Jacira. Tudo mesmo!
_Tudo isso aconteceu enquanto estive aqui? – assombra-se, passando as mãos pela cabeça._ E o que fez Márcia para defendê-lo dessas calúnias? Ela é da família e deveria ter partido para cima dessa gente.
_Como sempre, nada! Ela odeia escândalos! Baixaria mesmo, só com a Jacira! E olhe, tomou um tapa na cara da empregada que entrou para a história. O senhor perdeu! Vixe!
_Até onde sei, Ricardo é “macho” – ignora o comentário do serviçal-, um dos maiores devoradores de ninfetas palacianas que esta cidade já viu, que o diga os Marcondes... Ele fez da festa da filha deles um trampolim para saciar-se. Nunca que se deitaria com outro homem. Nunca!
_E por que não? É seu filho! Talvez goste da mesma fruta! – sussurra, sendo compreendido parcialmente pelo homem.
_Já lhe pedi para calar essa boca, criatura!
_Eu sei, patrão, escapou de novo. É que o senhor se esquece que ele carrega o seu sangue, né? Talvez, sei lá, uma curiosidade bateu, um desejo se abriu e quis saber como funcionava a coisa... É jovem, ninguém melhor do que o senhor para entender destes assuntos.
_Será que ele carrega minha sentença? Pois vou tomar as rédeas deste jogo já! Alguma coisa me diz que Gabriel está por trás de tudo isso. E que Márcia também tenha participado. Ela nunca aceitou o golpe que lhe dei! Por falar em Márcia... – segura a cabeça com força...- que estranho, ouço a voz dela, como se estivesse aqui.
_Só se bicha bateu as botas e baixou aqui como espírito, porque só estamos nós dois.
_Largue de ser burro, criado! Ouço-a dentro de mim como lembranças que não se apagam... Deve ser efeito de algum medicamento!
_Com certeza! E se continuar a se irritar como está, poderá ter outro piripaque e voltar para a CTI.
_Não mesmo! – cerra os punhos. _ Quero aqui o italiano.
_QUEM??? E TEM OUTRO NA PARADA??? POIS ESSE EU NÃO CONHEÇO!!! COMO O SENHOR É DANADINHO, HEIN???
_Como posso aturá-lo? Deixe de ser uma anta, refiro-me a Giacomo Ferrara!
_Ah, sim! Agora me lembrei! Mas o que o senhor pretende? Aquele sujeito é meio doido! Nem no dia da morte da filha teve a capacidade de expressar um sentimento de carinho. Preferiu velar o gato da patroa à filha que o mundo lhe deu.
_Claro! Anna era fruto dele com uma empregada, alguém que Lícia teve de criar para evitar que escândalos tomassem as páginas das colunas sociais. Nunca nutriu sentimento algum pela garota, a não ser o da repulsa. Então, no dia da morte dela, que fosse com os demônios, porque assim tudo voltaria a ser de Benício, o legítimo herdeiro das dívidas que acumularam ao longo dos anos.
_Pois é! – diz, balançando a cabeça. _ Vivendo e aprendendo!
_Italiano, quero-o aqui! – ordena pelo celular. _Se vire! Que Lícia esteja deprimida pela morte do gato, isso é problema seu; não aceito desculpas. Ou venha ou as gorjetas que lhe ofereço mensalmente encontrarão um fim. Você decide!
_Quem vem lá? – pergunta Jacira, vendo um vulto invadir a casa. _ É você, meu moleque?
O jovem não responde, pega uma garrafa de whisky, entorna-a com gosto e sobe as escadarias, num choro comovente, tendo às costas uma empregada, que se veste de mãe, suplicando que a espere.
_Moleque, ei, não consigo te acompanhar, me espere, vamos!
_Chega de tanta dor, Jacira! A partir de hoje deixarei de ser o fardo desta família desequilibrada.
_ Do que você está dizendo? E desde quando é fardo de alguém? – preocupa-se. _ Me espere!
Ele entra no quarto de Leonardo, abre todas as gavetas, como se estivesse à procura de alguma coisa.
_ O que você quer? Seu pai vai ficar doido quando souber que está remexendo nas coisas dele. Ricardo, eu estou falando com você, seu endiabrado. Me responda, antes que eu lhe sente o rodo na cabeça, vamos!
_ Você tem coragem de me falar daquele homem? Que ele se exploda! É um veado de uma figa! Veado! Veado! O causador de todas essas desgraças. Por culpa dele, ando tão sem rumo... Que droga!
_Não fale assim de seu pai!!! – repreende-o.
_Pai? Que pai? Que eu saiba, um pai protege sua cria, não a entrega aos lobos, como ele sempre fez.
_Do que você está falando, Ri-Ricardo? – finge-se de boba. _ Seu...seu...pai...
_...deixe de encenação, mulher ! – interrompe-a. _ O único tolo nessa história sou eu, que achei que ele pudesse ser diferente – vira a garrafa de novo.
_Venha cá! – tenta puxá-lo para junto de si, mas ele se esquiva. _ Venha, meu filho, Jacira está aqui.
_Você sabia de tudo e nunca me contou! Por quê? Por que deixou que eu sofresse tanto assim?
_Fi-filho, eu...não entendo...
_Não entende o quê? Que meu pai é um bicha velha, um homem sem escrúpulos, um destruidor de vidas, de muitas vidas, inclusive a de minha mãe? Você não sabia disso, Jacira? Tem a audácia de mentir para mim? Como pode? Sou ou não seu filho, como diz? Ah, já sei, deve também ser outra mentira sua!
_Não! Nunca menti sobre isso! Você é e sempre será o filho de meu coração!
_Então prove! Diga-me a verdade! Não percebe o quanto estou sofrendo?
_Filho! Acalme este coração! – tenta se aproximar.
_Saia de perto de mim! Estou possuído pela dor! Saia! Saia! Me deixe!
Fora de si, joga roupas, sapatos e documentos ao chão e arremessa frascos de perfumes contra a parede; fragrâncias variadas se mesclam, tomam o lugar, mas não inquietam o garoto, que continua sua jornada.
_Pare, Ricardo! Você está destruindo tudo! Pare! Paaaare! – a mulher cai em pranto. _ Pare!
_Quando ele descobrir que o pai tem outra face, entrará em desespero e se sentirá o pior dos seres. Não há como prever do que será capaz, mas você, minha amiga, deverá pará-lo, senão, o perderemos para sempre! – as palavras de Nathalia dominam os pensamentos da empregada.
_E por que eu?
_Sinto que não tenho muito tempo...
_Deixe disso, a senhora terá vida longa!
_Não se engane, Jacira! Minha vida está por um fio, eu sinto!
_Então não seria melhor dizermos logo a verdade, assim ele terá tempo para compreender as muitas faces de seu Leonardo.
_Não! Deixe-o viver a infância como qualquer criança, mas não se engane, um dia a vida o cobrará - inclusive com juros, por esta minha decisão. Por isso, quando esta hora chegar, não desista, use do AMOR que tem por ele para pará-lo. Poderá não ouvir o mundo, mas a ouvirá! Se fracassar...
_Tenho medo!
_Todos temos! Mas o que se há de fazer? Leonardo não nos deixa escolhas: se o entregarmos agora, o menino perderá o sorriso e se fechará para a vida, porque ninguém deseja, por mais ingênuo que seja, que seu pai tenha como amante um outro homem. Isso dói n’alma.
_Mas se continuarmos escondendo, poderá ser pior. Imagine se descobrir na adolescência? Poderá se perder de uma vez para o vício, este mal que finge acalentar os corações machucados.
_Correremos os riscos e que Deus nos proteja e lhe dê sabedoria para quando esta hora chegar – deseja a mulher, horas antes de morrer no acidente .
_Ricardo, eu te amo e estou aqui para ajudá-lo! Me ouça, moleque! – suplica, resgatando-se das lembranças. _Sei que dói, mas há de passar, como tudo nesta vida.
_PASSAR????????? COOOOOOOOMO????????? A NÃO SER QUE EU O MATE!!!!!!
_MATAR??? – horroriza-se. _ MATAR QUEM???
_ O Desbravador de Identidades, a quem prestei socorro, sem saber de quem se tratava. Se seu soubesse que era ele, teria dando um fim a sua vida macabra; mas não, fui tolo, levado pelas emoções. Sabia que havia alguma coisa errada, não é de meu feitio ajudar um semelhante. Não é! Mas me arrependo muito! Muito! Se eu não tivesse interferido, ele já teria deixado este mundo.
_Eu não estou entendendo nada.... – disfarça.
_Deixe de mentir, mulher. Não destrua a bela imagem que cultivo de ti. Sei que sabe do que estou falando...
A mulher emudece.
_ Eu o salvei sem saber quem era. Agora o que me resta? Já que querem o meu fim, o terão, mas não como imaginam. Não lhes darei este gosto.
_Filho...você está falando de Gabriel?
_Agora se entrega, não é? Sim! Do amante de meu pai, que se passa por uma criatura na internet, para me atingir. Já não basta o que fizeram à minha mãe, agora desejam o meu fim? Devo ser o cordeiro deles. Pelo menos é o que pensam.
_Deles? – Jacira não acompanha o raciocínio do rapaz. – Deles quem? Tem mais alguém?
_Disso você também não sabe?
_Não mesmo! Juro! Juro por Suzicreide!
_ E... e... quem é Suzicreide? Você sempre com essa brincadeira.
_ Não é brincadeira. Suzicreide é a filha que Deus me tomou! – revela-se.
_Co-co-mo? – volta-se para ela. _ Você teve uma filha e nunca me contou?
A mulher abaixa a cabeça e chora.
Ele para, olha para cima, engole o ar, pensa alguns segundos, então volta-se para um quadro nos fundos do quarto. Ao derrubá-lo, encontra um cofre. Jacira não tem mais forças, até tenta persuadi-lo, mas desiste.
_Desculpe, dona Nathalia. Eu falhei! – sussurra em desespero.
_Cadê a senha? – pergunta, enlouquecido, correndo os olhos pela mulher; por um instante, sente pena dela, quer desistir, mas a dor que o atiça é gigantesca a ponto de lhe abrir uma cratera no peito. _ Só pode ser!- vira-se e digita “Gabriel”. O cofre abre.
De
lá retira uma arma, para o surto da empregada, que dá um grito.
_Largue essa arma, vamos! Estou mandando!
_Eu não posso, Leonardo! Como quer que eu invada o sistema da telefonia? Tudo foi privatizado! Esqueceu-se? FHC vendeu até as cuecas do país!
_Deixe de ser burro, italiano! Use de sua influência.
_Não estamos mais na época dos generais, meu caro!
_Como você conseguirá esta informação eu não sei, mas que a quero, isso é fato!
_Me dê um tempo, todos estão machucados pela morte de Ernesto.
_Ernesto? Não era Anna? Vixe! A mulher era homem? Mais um? Que coisa! – comenta o chofer consigo mesmo.
_ E quem é Ernesto? – estranha o patriarca da família Médici.
_ O gato!
_Estão assim pelo gato? Pudera! Gente louca! – desacredita Marcos.
_É, italiano, você não pode falar muita coisa de mim não, né? É tão sujo quanto. Nem na morte da garota conseguiu derramar uma lágrima. Quis apenas se aproveitar da empregada novinha, a mãe dela, que viera do norte, a quem você deu um fim digno de novela das oito.
_Non chapisco!1 – altera-se, mesclando os idiomas.
_Não mesmo? Pois sei de tudo. Como a empregada o chantageava, apareceu morta ao lado da portaria do prédio, como se tivesse caído do oitavo andar. Que tragédia, não é? Mas o que fazer com o bebê recém-nascido? Arremessá-lo também? Seria muita crueldade, além de suscitar a curiosidade da polícia, porque a um adulto atormentado pode-se associar o título de suicida, já a um bebê não. Então, para evitar que a notícia vazasse à imprensa e todo mundo fosse parar atrás das grades, assumiram a garota como uma Ferrara, ainda que no íntimo, sempre a desprezaram. Só não deram um fim nela com o passar dos anos, porque Lícia, aquela sua mulherzinha alucinada, teve a brilhante ideia de usá-la como uma isca a Ricardo, que se caísse, acabaria unindo nossas famílias, em uma transação milionária; em outras palavras, meu dinheiro saldaria suas dívidas. Mas a vida não acontece como imaginamos, quando menos esperávamos...
_...seu filho se declara gay! – devolve com ira.
_ELE NÃO É GAY, IDIOTA!
_ Não é o que diz o e-mail que ele disparou para toda São Paulo.
_Senhores, senhores, vamos abaixar os ânimos, estamos em um hospital, só para lembrar – intervém o empregado.
_Tem razão! Mas isso agora não importa. Ela está morta! E junto dela o filho que dizia ser meu neto. O fardo lhe saiu dos ombros!- ironiza._ Só tenho pena de Benício, o único que nutria um amor verdadeiro por ela. Mas deixemos de história, localize de onde partira a ligação, que lhe darei um bônus capaz de lhe estancar a dor pela morte de Er-Er...Er... o quê mesmo?
_Ernesto! – completa o homem, agora interessado._ E esse telefone é de quem, posso saber?
_Isso não é dá usa conta!
_Pare com isso, Ricardo!
Com a arma rente à cabeça, ele chora em desespero, dizendo:
_Me perdoe, Jacira, se nunca fui o filho que sonhou! – lamenta-se , com os olhos injetados de um vermelho sangue.
_Quem disse isso? Depois de Suzicreide, você é a pessoa a quem mais amei nesta vida. Por favor, abaixe esta arma, vamos conversar, eu lhe imploro.
_Adeus, Mãe!
_Não...não Ricardo...não faça isso, meu amor! Pelo amor de Deus!
Aperta o gatilho.
_Nãããããããããão!!!!!!!!!!!!!!! – grita a mulher.
Leonardo é golpeado por uma vertigem que quase o derruba da maca; Márcia, já em sua casa, solta das mãos uma taça de vinho, que se estilhaça no chão; já Gabriel acorda assustado depois de um pesadelo com Nathalia e chama pela mãe aos berros.
Encerra com a música: (Always Remember US This Way - Lady Gaga)
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1 Não entendo!
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
Always Remember US This Way - Lady Gaga
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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