3x04 - Aquele que está por vir
de Makiko Della Wage
Cyril observa dentro de um antigo “porte-bricolage” duas das três argolas de uma aliança Cartier, símbolo da lembrança de um amor perpétuo e indestrutível. Se a terceira argola foi roubada ou extraviada pouco importa, para ele houve o desgaste do tempo e o desaparecimento. Lágrimas surgem nos olhos de Cyril. A ferida não foi cicatrizada e o amor não foi sepultado. Ele começa a refletir sobre o significado desta perda. O “eleito que está por vir “nunca apareceu em sua vida para estabelecer os elos com o pai e com o avô simbolizados pelas duas outras argolas. A aliança traduz a falta de amor e a sua incompletude que sente pela falta de estabelecimento de vínculos e do desamparo perante a vida. A argola faltante poderia se chamar Kevin ou Patrícia. “ O tempo não para’’- canta Cazuza; “o passado é prólogo” afirma Freud, estas afirmações se fundem e lhe remetem ao início da década de noventa.
Cyril compreende que os anos passados mal vividos se transformaram em um relógio de carrilhão antigo e pesado que deixou de funcionar, e precisa de corda para se movimentar e vibrar no intrincado jogo das paixões. Os ponteiros inertes são delimitadores de um espaço de tempo em que o amor foi apagado e cedeu lugar à solidão. Anos que tem o peso de séculos e que o aprisionaram em um território de ações e sentimentos restritos. O passado se impôs, o presente se esvaiu, e o futuro poderá ser apenas segundos de ressignificação do vazio.
Patrícia e Kevin, suas imagens ainda lhe perturbam após quase trinta anos… Ele amou e perdeu os dois. Inicialmente, o triângulo amoroso era apenas uma experiência sexual inconsequente, onde a busca de todo e qualquer prazer sexual era permitida sem limites ou negociações.
Patrícia, insegura e depressiva não amava nem a ele nem a Kevin, que foi envolvido pela frieza calculista desta mulher que desejava permanecer no exterior através de um “marriage blanc”. Kevin nunca teve a menor noção do sentimento que ele ocultava, desde quando o conheceu, sentado nos degraus da porta de entrada do edifício de Patrícia . O extrovertido irlandês sardento, lhe encantou imediatamente com a sua espontaneidade. A sua sensibilidade e aceitação do seu afeto despertaram um sentimento desconcertante e profundo: amor.
Cyril relembra as férias de Natal na pequena cabana junto a uma estação de esqui nos Alpes Suíços. Os dias se sucediam com muitas risadas e bom humor, eles se sentiam felizes em desfrutar de momentos de intimidade e de muito carinho. Ele e Kevin brincavam dizendo para Patrícia que ela tinha dois maridos inseparáveis e siameses. Patrícia dramatizava e dizia o quanto ela era privilegiada, que ela era a “Dona Flor e seus dois maridos “, que ela estava perdida em um turbilhão de paixões como Jeanne Moreau em “Jules et Jim”. Nenhum deles tinha consciência do quanto traumática seria a ciranda amorosa.
Patrícia tinha saído para fazer compras. Cyril estava com uma forte crise alérgica e não pode acompanhá-la, permanecendo prostrado na cama. Quando foi até a cozinha tomar um chá de gengibre, percebeu que Kevin estava na sala concentrado digitando seu projeto de tese. Entretanto, ao lhe ver, começou a debochar das suas olheiras e da sua aparência desleixada.
— Meu amor, como tu está abatido! Estas olheiras negras te deixam com uma aparência muito depressiva, parece que tu estás há anos sem dormir!
— Kevin, eu tenho a impressão que o meu cérebro vai explodir devido a esta maldita rinite. Além do mais, as minhas costas estão doendo muito, creio que estou mais uma vez com as minhas costumeiras contraturas musculares.
— Cyril, fica “cool”! No stress cheri! Tu já tomou o anti-alérgico? Eu vou pegar a cinta térmica e te fazer uma massagem. Posso?
— Claro que já tomei o anti-alérgico! Por isso, estou com muito sono! Tu poderias me colocar a cinta-térmica e dormir comigo. Estou sentindo falta de carinho e do calor do teu corpo. Tenho certeza que o efeito será mais terapêutico e duradouro.
— Tu continuas safado hein! O que tu queres é transar! No problems, já estou sentindo tesão te imaginando nu e sentido a tua pele macia. O calor das minhas mãos e dos beijos vão te aquecer e curar a tua dor. Amor cura até a fibromialgia.
— Te adoro Kevin! Somente tu podes me amar como sempre desejei: intensamente com ardor, virilidade e paixão. Como eu te amo meu “ príncipe das marés!“
— “Príncipe das marés “!?
— Ah! Eu nunca te falei! “ O príncipe das marés era a personagem de Nick Nolte no filme de Barbra Streisand. Um homem bonito e sensível, que embora tivesse sofrido traumas infantis, se mantinha alegre, afetuoso e altruísta.
— Por que eu lembro ele? Será que é devido ao meu irresistível poder de sedução?
— Kevin, não te faças de ingênuo! Ninguém me amou como tu. Tu quebraste todas as barreiras para assumir a nossa relação. Eu, tu e Patrícia vivemos uma relação que muitos toleram, mas não aceitam. Tu és o alicerce no qual me apoio para não ter medo de lutar contra estes hipócritas.. Sem ti eu não teria força.
— Para mim é uma relação de pessoas que se amam. Sim, nós transamos e vivemos juntos porque somos livres. Isto basta! Nós estamos na França, no país da igualdade, liberdade e fraternidade. Cyril, eu não me importo com quem julga e não é feliz. Eu preciso de ti. Eu te amo com todos os teus temores e inseguranças.
— E Patrícia?
— Ela é a mulher que tu desejas. Ela te seduz, mas para mim é uma amiga a quem irei ajudar em consideração a ti. Somente por ti e não por mim. Eu não quero discutir isso agora.
— Ok! Tu me levas para a cama? Eu confesso que estou com muito sono, mas preciso de ti do meu lado. Vamos?
— Ah! O safadinho quer colinho! Eu te levo para cama sim! Mas, antes vou te dizer algo que não repetirei jamais. Deves guardar como uma verdade inquestionável.
— O quê? Fala logo!
— Tu és o homem que eu amo! Se eu sou anormal, homossexual, bissexual ou psicótico, estas palavras não me agridem mais. Eu não escolhi te amar. Eu me transformei em um homem que é feliz por amar outro homem sensível, angustiado e carente. Tu me completas e me faz ser capaz de lutar pela nossa história, mesmo que possam existir lágrimas e dor.
— Cyril, mesmo que um dia nossa relação acabe, quero que saibas que sempre o meu afeto por ti se manterá aceso em meu coração. Não te abandonarei jamais.
Consensualmente se desnudaram e fizeram amor. Cyril sentiu as mãos firmes de Kevin explorando o seu corpo. Seus dentes morderam e chuparam seus mamilos intensamente. Após a língua percorreu seu corpo através de movimentos circulares, fazendo um delicioso sexo oral. Ele lhe penetrou com vigor. Suas estocadas eram rápidas e profundas. Kevin sentiu o seu gozo quente nas suas entranhas . Não desejou jamais ser abandonado. Mesmo após o orgasmo, pediu que ele permanecesse dentro de si e que lhe entrelaçasse em seus braços. O cansaço levou a um entorpecimento. Lentamente, começou a fantasiar e mergulhou em um mundo imaginário: penetração intensa, orgasmo e prazer; dor e desejo; lua e sol; estrelas incandescentes na via láctea; Kevin e Cyril indestrutíveis; homens e gays; veados e leões; esperma e sangue; destruição e amor; necessidade de ser e ter; busca da fusão; medo da união; fim e começo a partir do fim; talvez; senão e sempre. Eterno, mas perene. Kevin e Cyril.
Kevin, ainda ofegante e ruborizado, murmurou dizendo que Patrícia era o passado, que não sentia mais atração por mulheres e que deveriam restringir e assumir a relação homossexual. Cyril falou que não concordava, que Patrícia era o seu ponto de equilíbrio.
Quando Patrícia retornou à cabana, conversaram e decidiram continuar com o “ménage à trois”, preservando a necessidade de estabilidade afetiva. Kevin colocou que não havia mais a possibilidade dele se relacionar sexualmente com Patrícia, mas que Cyril era livre para exercer a sua liberdade sexual. O desejo de Cyril por ela não lhe causava ciúmes ou posse, pois estava seguro que o seu amor a ele pertencia.
Permaneceram juntos por mais três anos. Após defender a tese, Cyril foi obrigado por razões familiares a retornar para São Paulo. Embora hesitante, abandonou quem amava. Recentemente, através de amigos soube que Patrícia mora na Suíça e está divorciada. Ela representa um elo perdido no tempo, quebrado pela esterilidade da relação. Kevin é o elo faltante partido, mas que pode ser restaurado. Devem se encontrar em Lyon para comemorar o jubileu de prata de conclusão do Doutorado. Cyril recebeu uma mensagem onde ele afirma que até hoje se recorda do ítalo-brasileiro que o ajudou a assumir a sua homossexualidade, contribuindo para a sua redefinição como homem.
Ele disse que sempre o amará, pois foi capaz de lhe ensinar que o amor independe do gênero. Cyril aguarda ansiosamente este encontro. Quer concluir a sua tortuosa trajetória. Será que, mesmo que tardiamente, ainda poderá fundir e soldar este elo cuja falta despedaça o seu coração?
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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