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Cine Virtual: O Bebê

Conto de Cíntia Nascimento
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Sinopse: Pai, mãe e bebê saíram do trem apressados. O destino era o casarão da Rua Onze, lacrado há anos naquela pequenina cidade. Todos queriam saber a razão daquele trio ter se mudado para um lugar no meio do nada. Havia um motivo, um medo, um segredo que tentavam esconder a qualquer custo.

O Bebê
de Cíntia Nascimento

       Que caminhos somos capazes de percorrer para proteger quem amamos? E quanto aos segredos? Podemos guardá-los mesmo que sejam aterrorizantes? Dúvidas como estas me remetem a uma história, meio acontecida, meio inventada, meio imaginada, meio duvidosa, ouvida há muito tempo...

       Alguém me contou que era quase inverno de 1958 quando aquela família desembarcou na cidade. Pai, mãe e bebê saíram do trem apressados. O destino era o casarão da Rua Onze, lacrado há muitos anos. E em uma terra de tão poucas novidades, aquilo foi o suficiente para encabeçar a pauta da semana. Logo parte das fichas dos recém-chegados estava levantada. O pai, alto e elegante com seu chapéu de feltro cinza-azulado, era Miguel Castilho, um vendedor de livros. A pálida mãe, Estela, magra, não tão alta, trazia no rosto uma beleza suspeita, reforçada por olhos de um castanho vazio. E o bebê, enrolado em panos brancos com bolinhas amarelas, era um menino de poucos meses, como deduziram os que se achavam mais espertos. De fato, o que todos queriam mesmo saber era a razão daquele trio ter se mudado para um lugar no meio do nada.

– Ouvi dizer que viviam na Serra Pequena. Parece que a senhora sofre dos nervos e precisa de um lugar para descansar – anunciou o jornaleiro.

Então era isso.  E se o que o casal buscava era sossego, estava no lugar certo.  Passado o clímax da chegada, a vida seguiu um curso normal, desviado apenas pela observação minuciosa da vizinhança.  Se Estela ia à praça com o carrinho de bebê, era logo abordada:

– Que bebezinho mais lindo! Posso ver a carinha dele?

– Melhor não. Tenho medo que se resfrie – era a resposta ouvida repetidas vezes, antes da mulher tomar o rumo de casa.

A verdade é que quase um mês se passou e ninguém viu a face do tal menino. Claro que começaram as especulações…

– Nasceu defeituoso, o coitadinho. Ouvi dizer que tem dois buracos no lugar do nariz.

– Que nada! Deve ser muito feio mesmo!

No gelo das noites, podia-se ouvir o chocalho do pequenino, que àquela altura já tinha o nome conhecido: Luisinho. Também se escutava o acalanto da mãe e, vez ou outra, um choro bem fininho. Não demorou e o pai precisou se ausentar para oferecer seus livros aos arredores. Estela trancou-se com o bebê por uma semana, até que Pedro, o padre, sem esconder a bisbilhotice, arriscou uma visita.

– Como tem passado a senhora?

  A mulher, sem alternativas, convidou o vigário para entrar e perguntou se aceitaria um chá:

– De erva-doce ou camomila, por favor.

Enquanto Estela esquentava a água na cozinha, o padre investigava a sala. A mobília gasta, mas ainda pomposa, já era sua conhecida, pois figurava como patrimônio do casarão. Assim como as cortinas, já amareladas, incapazes de bloquear a passagem do tempo. Tanto olhou que avistou, na porta do quarto, o que procurava. Com passos almofadados, caminhou até o carrinho de bebê e encontrou a criança, mais uma vez coberta, quietinha, num sono profundo. Enfim, veria o rosto daquele ser que tanto intrigava o seu rebanho. Levantou de leve o paninho de flanela que cobria a cabeça, e o que se passou foi um espanto sem tamanho. Vestido com um macacãozinho de tricô listrado de verde e branco, o bebê não se movia, não respirava. E nem poderia… pois ele era um boneco! Um boneco daqueles de plástico, com olhos azuis pintados. O certo é que a surpresa deixou o pároco sem palavras e sem vontade de tomar chá nenhum, qualquer que fosse o sabor. Inventou um imprevisto e deixou, rapidamente, o casarão.

Quando retornou, naquela noite, Miguel soube da visita. Beijou Estela e saiu. É que já conhecia o desfecho daquela narrativa e quis se antecipar para proteger a mulher e – por que não dizer? – o filho.

Nem bem chegou à igreja, Miguel se deparou com padre Pedro, que de pronto interrompeu sua leitura, certo de que ouviria uma trama bem mais interessante.

– Soube que o senhor esteve lá em casa. Espero que Estela o tenha recebido bem. Anda meio nervosa.

– Ora, meu filho, não se preocupe. Foi só uma visitinha sem importância.

– Ela me contou que não quis tomar o chá. Algo o incomodou? Vou logo pedindo desculpas...

– Não, nada disso. Apenas me lembrei que uma confissão me aguardava às sete. A vida de padre não tem folga - gaguejou o padre.

– Sei. O senhor conheceu Luisinho, o nosso bebê?

E foi aí que o sacerdote se viu encurralado. Se negasse estaria mentindo, e mentir é pecado, Deus me perdoe! Se dissesse que sim, teria que encarar a situação, digamos, surreal. Escolheu o que considerou ser a melhor conduta:

– Sim, meu filho. Eu vi o Luisinho.

– E o que o senhor achou dele?

– Um tanto quanto desbotado, mas é um bonito… boneco.

O padre mal terminou a frase e Miguel desabou no primeiro banco da matriz. Começou a desenrolar uma novela, cujo enredo exigia lágrimas. Contou que, há quatorze longos anos, Estela deu à luz Luís Alfredo Castilho, o Luisinho. Mas o menino só esquentou o colo da mãe por três meses, vitimado pela pneumonia que, naquele ano, tragicamente, enviou muitos anjos para o céu. Transtornada, a mulher decidiu não acreditar que o destino poderia ser tão carrasco. Por dias manteve o corpo do filho em casa. Assim que voltou de uma de suas andanças, Miguel desconfiou do mau cheiro que emanava do berço. Luisinho já estava se decompondo.

Boquiaberto, o padre não se conteve:

– Mas, e então? O que você fez, homem de Deus?!

Suspirante, Miguel continuou o roteiro macabro. Explicou que, ao perceber que o olhar da mulher já não pertencia mais a esse mundo, tomou a decisão mais difícil de sua vida: esperou Estela dormir, retirou o corpinho do berço e providenciou o enterro. Na volta, comprou um boneco na loja de quinquilharias da esquina e colocou no lugar. O mesmo boneco que o padre viu naquela tarde. O boneco Luisinho.

– Desde então somos migrantes buscando a tranquilidade que possa proteger nosso segredo. Estela cuida do filho com um amor puro. Não posso tirar isso dela.

Padre Pedro teria que rezar muito para tentar entender e aceitar aquele ato desesperado de um pai. Miguel pediu sigilo absoluto, mesmo sabendo que isso era impossível. Logo surgiriam o zunzunzum e os olhares inquisidores. Já era hora de partir de novo. Então, o primeiro trem que saiu na manhã seguinte levou para sempre a família Castilho. E jamais ouviram falar novamente de nenhum deles.

      Sempre penso em como aquele pai conseguia passar os dias e os anos convivendo com um segredo que devia lhe corroer a alma. Seria ele culpado por compactuar com a mulher, atuando como cúmplice de seu desatino? Ou seria apenas alguém capaz de amar tanto outra pessoa, a ponto de viver para sempre, uma eterna triste fantasia? Difícil saber.

         Só sei que o portador dessa história garantiu que, ainda hoje, há quem jure que viu – por uma fresta da janela do vagão de passageiros – Estela mirando fixamente o marido, faltando poucos momentos para a partida. Depois fechou a persiana, como que se despedindo de vez da cidade. Mas antes, beijou o seu bebê.

Conto escrito por
Cíntia Nascimento

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Francisco Caetano Gisela Lopes Peçanha Liah Pego Lígia Diniz Donega Mercia Viana Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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