O Cemitério Invisível
de Rebeca Crespo
Minha
mãe costumava dizer que Deus trabalha de formas misteriosas. Que ele escreve
certo por linhas tortas, e que não precisamos entender completamente seus
planos. Ele sabe o que faz, ela dizia. Eu pensava muito na minha mãe,
ultimamente. Se ela procurou por mim. Se olhava para o portão de nossa velha
casa, esperançosa, imaginando meu aguardado retorno com as riquezas que prometi
a ela. Gostaria que
houvesse uma forma de dizer que eu não voltaria, já que estava morto.
Estar
na condição de alma te deixa amargurado. Ainda mais no meu caso. Sozinho,
sentenciado a passar o resto desta infame existência – será que podia chamar
assim? – assistindo aos mais criativos horrores que a mente humana poderia
conceber. A mim,
resta observar. Esperar que ainda haja alguma justiça no mundo, dos homens ou
de Deus, para que meu carrasco pague por seus pecados.
Meu
carrasco não é nada como qualquer outro que você já tenha visto ou concebido em sua imaginação.
Daqueles fortes, com grandes braços, uma máscara cobrindo seu rosto e um grande
machado ensanguentado. Na verdade, não aparenta nenhuma característica que
afugente qualquer pessoa. Isto é parte importante da armadilha.
Foi
batizada como Rita de Cássia, por uma mãe muito devota e religiosa, mas para
não ofender a santa vou chamá-la apenas de Ritinha. Ritinha é um bálsamo para
olhos cansados, uma miragem. No momento em que a vi, achei que minha sorte
havia finalmente virado. Que todo meu sofrimento seria finalmente recompensado.
O momento se estendeu por tempo suficiente para que eu memorizasse cada aspecto
em particular: cabelos ruivos como um pôr-do-sol, caindo levemente sob a testa
suada. Pele azeitonada, maçãs do rosto altas e levemente ruborizadas. Olhos castanhos,
adoráveis e convidativos. Sorriso casto. Vestia-se com modéstia, como se para
integrar a paisagem árida, como se alguém dissesse a ela que devia tentar chamar menos
atenção.
Na
primeira vez em que vi Ritinha, ela estendia roupas no varal, o vento fazendo
seu cabelo e vestido dançarem levemente. Não percebeu minha aproximação até que
pigarreei, fazendo com que voltasse os olhos para mim de forma teatral. Imagino
quantas vezes não deve ter ensaiado aquilo. Os olhos faiscaram brevemente em
direção a única coisa de valor em mim: um crucifixo prateado, presente de
despedida da minha mãe.
A
estrada não havia sido nada além de dura comigo. Andava há vários dias debaixo
do sol impiedoso do Oeste, encontrando pouca coisa que me trouxesse qualquer
descanso além de escassas e ocasionais sombras de árvores. Então não é difícil
imaginar o meu alívio ao encontrar uma parada, a única casa em quilômetros por
aquelas bandas.
Perguntei
sobre a placa pendurada no portão, que dizia “Hospedaria” em uma letra cursiva
e elegante. Ela sorriu, cegando até mesmo o sol do meio da tarde que brilhava
no momento. Pediu para que eu a seguisse para dentro da casa, onde eu poderia
descansar. E eu a segui. Pergunto-me com frequência onde estaria agora se não a
tivesse seguido.
O
interior da casa era tão limpo quanto se podia ficar em um lugar árido como
aquele. A favor de Ritinha, devo dizer que ela realmente se esforçava para
manter o local fresco e asseado. Tudo estava metodicamente organizado. Parte de
mim a admirou; tanto pela dedicação em manter um pedaço de terra em um lugar
como aquele, quanto pela mente empreendedora – e um pouco mais do que isso.
Ritinha
me tratou com educação e cordialidade. Me ofereceu um copo de água fria
enquanto me registrava. Perguntou o que um jovem como eu fazia naquela
cidadezinha, o que eu prontamente respondi com a minha frase decorada. “Vim
buscar riquezas nas minas.” Não fui o primeiro a cair na falácia de dinheiro
fácil nas minas de ouro, mas falei como se fosse, com confiança. Queria
impressioná-la, mostrar que tinha futuro. Ela reagiu como se de fato tivesse
ficado impressionada. Agiria de tal forma com muitos outros, como eu pude
perceber.
Ela me
mostrou um quarto ao lado da cozinha, que “por sorte estava desocupado”, e me
disse que o jantar seria servido às seis e meia. Preparou um banho morno e
sorriu outra vez de forma casta, antes de dizer que estaria por ali, se eu
precisasse de qualquer coisa.
Não
preciso dizer que, a essas alturas, eu já estava completamente envolvido na
armadilha preparada pela moça. Tentei me fazer o mais apresentável possível
após o banho, e mostrar os meus melhores modos à mesa. Ela jantou comigo; carne de porco e
algumas batatas. Um pouco salgado para o meu gosto, mas eu tinha muita fome,
após tantos dias de peregrinação. E não ia querer fazer desfeita para a
adorável moça que tão gentilmente preparara a refeição. Perguntei se ela fazia
tudo sozinha por ali, já que não havia visto mais ninguém desde que chegara.
Ela baixou os olhos. “Meu pai morreu há muito tempo, senhor, de uma doença
feia. Meu irmão morreu de tiro. Mamãe sofreu um derrame e vive na cama.” Ela
olhou para um cômodo separado da cozinha por uma cortina. “Tenho uma irmã,
também, mas ela vive em um convento. Aqui, é só eu e Deus.”
Imagine
o quanto meu coração se partiu ao ouvir tais declarações. Ritinha não era
apenas uma moça bonita e prendada; era uma santa. Os olhos pareciam dizer “por
favor, me salve desta vida de infortúnios, senhor”, e eu acreditei neles. Na
minha mente, já estava tudo planejado: eu juntaria bastante ouro. Pediria sua
mão em casamento. A levaria para minha terra, onde sem dúvidas Ritinha e minha mãe se dariam bem e
se tornariam grandes amigas. Teríamos vários filhos. E faria tudo isso bem diante dos olhos
duvidosos do meu pai.
Ela me
pediu que lesse algumas cartas enquanto preparava um café. Disse, de forma
muito inocente, que recebera cartas da irmã, mas não sabia ler. Se eu não
estivesse completamente envolvido na atmosfera criada por ela, teria
identificado aquela mentira tão óbvia. Afinal, se não havia mais ninguém, quem
além dela teria pintado a placa? É claro que esta era a menor das minhas
preocupações no momento. então, como um animal idiota que cai em uma emboscada
óbvia, apenas me voltei para as cartas, com toda a minha atenção. Nunca vou
saber o que estava escrito; talvez uma última provocação? Um insulto final?
De
qualquer forma, aquelas cartas foram tingidas de sangue meio segundo depois. O
tempo em que me voltei para elas foi o tempo que Ritinha precisou para pegar
uma lâmina. Hoje, depois de certa observação, sei que a faca estava o tempo
todo debaixo de seu vestido. Cortou minha garganta de uma forma grosseira, como
se não soubesse ao certo como fazer. O osso não se rompeu, porém, devo dizer
que ela cortou a artéria de primeira.
Tentei
segurar o ferimento, em um impulso idiota, e me virei para a moça, ainda muito
confuso em relação às
circunstâncias da minha morte. Há um segundo atrás eu tinha tudo; agora, minha
vida estava sendo rapidamente drenada, escorrendo por entre meus dedos. Ritinha
apenas me olhava. Antes de finalmente desfalecer, percebi que não havia mais
calor em seus olhos. Não havia nojo, arrependimento, choque. Apenas vazio.
Depois
do meu assassinato, minha alma ficara presa indefinidamente nas paredes da
hospedaria maldita. Como se fosse o final de uma piada sádica. Vi Ritinha
revirar meu corpo ensanguentado em busca de qualquer coisa de valor – no fim,
pegou apenas o crucifixo de prata. Vi suas mãozinhas delicadas de dona de casa me
despirem friamente, enquanto meu corpo ainda estava quente. Vi, horrorizado,
Ritinha usando uma força descomunal para arrastar meu corpo para fora da casa,
onde já havia preparado o espaço para o nível seguinte de seu plano: me
desmembrar.
Jogou
meu corpo ao lado do chiqueiro. Usou uma serra para cortar tudo em partes
estratégicas: membros inferiores, membros posteriores, cabeça e órgãos
internos. Iluminada pela luz de um lampião, brilhando incandescente e lançando
uma luz quente em sua figura, ela parecia o próprio diabo. Ritinha trabalhou
incessantemente até que não restasse mais nada que me identificasse como ser
humano. Não entendi muito bem por que ela estava guardando tantas partes de
mim, e me contentei em apenas observar enquanto ela misturava meu sangue à lama dos porcos e
enterrava meus restos no jardim. Prática e fria. Como outro trabalho qualquer.
Moeu
as minhas partes que havia separado e temperou tudo com sal e alho. E depois
recheou uma torta.
Ritinha
não se contentou com as minhas poucas posses. Ficou muito claro para mim, no
dia seguinte, que aquilo era um negócio para ela, quando um outro homem
apareceu, como eu no dia anterior. De boca seca e roupas duras de poeira,
pensando em beber e comer alguma coisa e talvez descansar, e encontrando muito
mais do que isso.
Serei
assombrado por toda eternidade pela visão infernal daquele homem comendo uma
torta recheada com a minha carne. Pedi a Deus, com todas as minhas forças, que me
deixasse gritar uma última vez. Você está na boca do inferno, amigo. Na
presença do próprio diabo ou, no mínimo, da esposa dele. Saia enquanto ainda
pode.
Porém,
novamente, tudo o que me restou foi assistir enquanto o outro caía na mesma
armadilha que eu. O sorriso inocente. A voz angelical. O olhar suplicante. A
mesma história triste ensaiada sabe-se lá quantas vezes na frente do espelho.
As cartas – novas, sem manchas de sangue. E o beijo frio da lâmina. Diferente
de mim, o homem reagiu: se levantou, em um ímpeto, e agarrou o pescoço fino de
Ritinha. Nem mesmo aí ela demonstrou qualquer coisa. Ela esperou. Sabia que a
vida do homem se esvaía e que não teria forças para matá-la. Por fim, o homem
se deixou cair nos braços da morte, tão frios e tão diferentes dos que ele
gostaria de terminar a noite.
Não se
juntou a mim, o
bastardo. Seria bom ter alguém com quem murmurar por estas paredes. Eu não tive
nada. Bem, às vezes eu sentia que Ritinha sabia que eu ainda estava por ali.
Gostava de fazer certos comentários, direcionados ao meu antigo crucifixo que
guardava ternamente entre os seios. Longe dos olhos das pessoas, era assim que
ela era: tranquila e prática. Levantava antes do sol nascer e preparava comida
– a dela, sabiamente, não levava os restos mortais de ninguém – lavava roupas,
cuidava dos animais. Sussurrava algumas preces e resmungava quando algo dava
errado. Lidava com a morte como se lidasse com seus pequenos cactos; para ela,
era trivial. Manusear gordura, rins, fígados e corações, para Ritinha, era
quase uma arte. Tempera e enfeitava de tal forma que nem mesmo o cozinheiro
mais sagaz, imagino, seria capaz de apontar a fonte daquelas iguarias.
Quando
um ocasional e distante vizinho passava, Ritinha vestia sua máscara, sua melhor
arma, devo dizer. Era só sorrisos e carisma. Jamais hesitava em emprestar o que
quer que a pessoa precisasse ou ajudar em tudo o que estivesse ao seu alcance.
Não havia quem não se compadecesse daquela bela e triste flor do deserto,
mergulhada em eterno luto pelo pai e irmão, devotada à pobre mãe doente. Quantas foram as
pessoas que, assim como eu, tocados pela história trágica de Ritinha, se
ofereceram para arrumar um marido para ela. Mas ela negava, estoicamente. “O
Senhor me deu um fardo, e é meu dever carregá-lo até que Ele diga que não
preciso mais.” Quase todos enxugavam uma lágrima depois disso.
Na
verdade, a velha mal deixava o quarto mofado onde vivia. Às vezes, quando não havia
ninguém, Ritinha levava a mãe para tomar sol, no fim da tarde. Penteava o
cabelo da mulher e comentava detalhes rotineiros da vida doméstica. Vítima de
alguma chaga que não a permitia falar e ficar em pé – não sei ao certo se acredito na versão do
derrame – a mãe
apenas aceitava tudo em silêncio. Os olhos estavam sempre assustados. Ela tinha
medo da filha. Penso que a mulher deve ter sido apenas outra vítima de Ritinha.
Talvez, após a suposta morte dos homens da família, Ritinha tenha tido ideias
pouco convencionais sobre como ganhar dinheiro. Talvez a mãe tenha se negado a
participar do empreendimento da filha, e Ritinha apenas a tenha removido de seu
caminho.
Ou
talvez eu apenas esteja inclinado a pensar o pior da mulher que me matou.
Muitas
foram suas vítimas. Pelo menos uma vez por semana aparecia alguém, um sujeito
sujo, faminto e desavisado. Atraído pelos olhos de gazela e pela fala mansa de
uma predadora voraz e insaciável. Morto de forma cada vez mais sofisticada pela
faca de Ritinha. Às vezes, a desgraçada mudava um pouco texto, para servir à narrativa que queria.
Para um professor que viajava, ela disse foi impedida de frequentar a escola
por um marido muito mau, que agora estava morto. Para um soldado, certa vez ela
disse que fora privada de sua terra natal por um grupo de bandidos. Sua
espingarda era um dos troféus favoritos de Ritinha.
Era
especialista em ler os homens e suas necessidades. Antecipava suas vontades.
Dançava conforme a música que eles tocavam, e como dançava bem! Ela era astuta.
Mais inteligente do que eu jamais seria. Seus crimes eram sofisticados,
perfeitos. A estrada era perigosa, famosa por ceifar vidas pelos mais diversos
meios: animais, bandidos, armadilhas, fome, frio, calor. Então, era
praticamente certo que, quaisquer pessoas que tivessem nas vidas de suas
vítimas assumiriam que o bravo viajante havia morrido na estrada. Enquanto
isso, o porão de Ritinha acumulava pequenos tesouros.
É
claro que, apesar de possuir um relutante sentimento de admiração por Ritinha,
esperava que um dia ela matasse pessoa errada. Alguém que, diferente de mim,
possuiria uma família abastada e influente, que certamente iria querer saber o
destino do homem perdido. Eu sabia que esse dia chegaria. Inevitável e
invariavelmente.
Começou
como qualquer outro dia de trabalho para Ritinha; com um cliente cansado da
viagem querendo um lugar para descansar. Este, porém, carregava algo com o qual
Ritinha não estava acostumada: uma criança. Um menino, que não deveria ter mais
que cinco anos e parecia doente e sonolento. O pai, um homem com
características aristocráticas, pediu gentilmente pelo melhor quarto e uma
refeição leve, para seu filho. O menino tinha acabado de passar com o médico da
cidade e precisava de repouso, antes de voltar para a dura viagem na estrada
Os
sorrisos e floreios de Ritinha esconderam muito bem a leve irritação que
sentia. O menino colocava tudo a perder. Não haveria como afastar os dois, e
matar ambos seria difícil. Se não fosse a ganância, Ritinha certamente teria
usado sua mente infalível e agido de forma racional, deixando que ambos
vivessem. Não haveriam tantos ganhos, mas seria menos arriscado. Mas era
Ritinha. Mal podia esconder a excitação ao botar os olhos nos pertences do
homem. Não deixaria que aquela oportunidade passasse.
Primeiro,
envenenou o menino. Algumas ervas em sua comida fizeram com que ele
imediatamente passasse mal, vomitando. O pai, ávido em socorrer o filho, não
percebeu quando Ritinha se aproximou por trás, sorrateira. Abriu a garganta do
pobre coitado, que morreu, confuso, em poucos segundos, sob os olhos apavorados
da criança. Coberto de vômito e do sangue do pai, o garoto tremeu, imóvel,
encarando a visão aterradora daquela moça tão gentil, segurando uma faca na mão
e pisando no corpo de seu pai.
Ela
hesitou. Por uma fração de segundo, me senti aliviado. Ritinha chegou até mesmo
a soltar a faca e a deixar a cozinha. O menino não se mexeu, ainda em choque. O
corpo do pai o encarava, sob uma poça de sangue. E então Ritinha voltou, com um
travesseiro nas mãos. Ela o pressionou sob o rosto do menino, que resistiu por
poucos segundos.
Não
chegou a desmembrar seu corpo, mas o pai não teve a mesma sorte. Virou o assado
que serviu um forasteiro no dia seguinte. A semana seguinte se passou e a outra
também. Tudo estava do jeito que sempre estivera, até que más notícias chegaram
ao seu portão.
Os
homens chegaram como cavaleiros do apocalipse, em cavalos castanhos e velozes,
com expressões de quem queria justiça. Eram três. Um deles se apresentou como
médico, e disse que procurava por um de seus pacientes e irmão. Ele viajava com
um menino e deveria ter chegado em sua casa há alguns dias. “Que tragédia,
senhor,” ela disse, docemente, “mas sinto dizer que não os vi.”
Em
outras circunstâncias, o ato de boa moça teria sido infalível, como em tantas
outras vezes. Mas o médico parecia imune à Ritinha, e insistiu, dizendo que
sabia que seu irmão pararia ali, pois não havia nenhum outro lugar no caminho
para sua casa que ele pudesse parar, e o menino tinha que descansar. Seus olhos
astutos olhavam ao redor da casa, procurando qualquer coisa que lhe desse
respostas. Ritinha tentou manter a calma. “Então, é muito provável que tenha encontrado
alguma dificuldade na estrada, senhor.” A voz não falhou nem por um momento,
mas as mãos, atrás do corpo, torciam-se nervosamente. Ela estava se sentindo
acuada.
Igualmente
atenta ao seu inquisidor, Ritinha não perdia sequer um movimento dos homens.
Confesso que estava ansioso. Um passeio mais atento no quintal revelaria mais
restos mortais do que qualquer cemitério que eu conhecia. Eu não fazia ideia de
como Ritinha se livraria daquilo.
Mas,
como eu disse, ela era mais inteligente do que eu. “Gostaria de revistar minha
casa, senhor? Garanto que não tenho nada a esconder.” O médico, desconfiado,
concordou. Pediu que um dos soldados ficasse por ali e outro o acompanhasse.
Ritinha quis começar pelo porão.
Os
dois homens a acompanharam cautelosamente pelas escadas mal iluminadas que
levavam a um
pequeno cômodo subterrâneo, onde os tesouros de Ritinha ficavam escondidos.
Provas irrefutáveis de seus crimes, pensei, já que não seria difícil de
identificar os broches dourados com as iniciais de sua rica vítima e mais
inúmeras outras coisas ligadas a outros homens. Não ficou claro, imediatamente, o que ela
pretendia com aquilo. Mas ela sabia o que estava fazendo.
Quando
chegaram no porão, confundidos pela penumbra, os dois homens demoraram a
perceber que haviam caído cegamente em outra armadilha de Ritinha. Ela se
lançou em direção àespingarda
do soldado morto, e disparou dois tiros precisos nos homens. Morreram na hora,
provavelmente sem entender o que estava acontecendo.
O
terceiro, que ouvira os tiros, correra em direção às escadas, mas nunca chegou a saber como era lá
embaixo. Assim que surgiu nas escadas foi alvejado por um tiro no peito. Rolou
escada abaixo e se juntou graciosamente aos outros.
Ritinha
passou rapidamente por seus corpos. Ágil como sempre, ela subiu as escadas, lavou
o sangue do rosto e trocou de roupa.
Juntou
todos os seus tesouros em um baú – a espingarda estava junto a ela, presa pela alça – e
deu um beijo na mãe, que estava apavorada. Ritinha nem sequer olhou para ela
uma segunda vez. Talvez tivesse dito para si mesma que a mãe não seria
incriminada pelos seus pecados, já que era uma mulher inválida. Talvez achasse
que o lugar para onde estava indo não seria bom para alguém em suas condições.
Ou talvez ela simplesmente tivesse se cansado de seu fardo, e Deus tivesse dito
a ela que não
precisava mais carregá-lo.
As
motivações de Ritinha não importavam. Penso que até mesmo seu nome deve ter
ficado para trás, enquanto ela montava no cavalo do médico e cavalgava para
longe de sua casa, o lar construído de ossos que ela tão covardemente, agora,
abandonava.
A
última vez que a vi, os cabelos e as vestes dançavam contra o vento. Montava um
cavalo marrom e carregava um baú cheio de troféus, que certamente usaria para
comprar uma vida longe de todos os horrores que causara.
Inevitavelmente,
seu cemitério invisível foi exposto. Dias e noites se passaram enquanto homens
desenterravam restos mortais do
quintal, fazendo o sinal da cruz e amaldiçoando Ritinha. Seu nome viraria
sinônimo de maldade, devassidão, feitiçaria, morte, sangue, ganância. Mães
usariam sua história para convencer os filhos a se comportarem. Padres usariam
seu exemplo para alertar fiéis sobre o fim dos tempos.
Com o
tempo, ela viraria mais lenda e menos mulher. O fantasma de seus crimes
assolaria aquelas bandas por anos a fio, enquanto a verdadeira Rita, a
assassina e ladra, terminaria seus dias livre e próspera. Talvez nos braços de
um homem. Talvez sozinha, gastando os frutos de seus anos de trabalho árduo. Mais
livre do que eu jamais serei, nestas paredes, pensando nos planos inescrutáveis
de Deus.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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