Doralice
de João Baptista dos Santos
Como fazia todos os dias, esperava no ponto o
ônibus que o levaria para mais um enfadonho dia de trabalho. Gerente de uma grande loja de
departamentos, ele resolvera, há alguns meses, deixar o carro na garagem e
aderir ao transporte coletivo. Percebeu certa ansiedade naquela espera,
desconhecia o motivo para tal. Enfim o ônibus chegou, adentrou ao mesmo
procurando o rosto alegre e jovial da cobradora a qual já o tratava pelo nome,
Sandoval. Decepcionado, viu um rapaz carrancudo, que naquele momento, com uma
nota de dez reais na mão, perguntava ao passageiro que pagava se não tinha
“menor”. Ante ao balançar de cabeça do cidadão de forma negativa, o carrancudo
trocador mais carrancudo ficou
franzindo todas as rugas possíveis do seu jovem rosto. Que diferença!
Onde estaria Doralice, com seu encanto, sua educação, sua alegria de viver.
Teve vontade de perguntar o porquê da ausência da menina, mas diante daquela
cara mal-humorada, pagou sua passagem e passou rápido pela catraca. Ressalte-se
que pagou com dinheiro “miúdo” evitando a fúria de quem cobrava. Já devidamente
instalado em uma das cadeiras desconfortáveis do coletivo ouviu uma senhora comentar
com outra: “gosto de pegar o ônibus daquela menina cobradora, mas parece que
houve mudança no quadro de horários e o carro dela vem depois deste”. Recebeu
involuntariamente a resposta desejada, somente agora se dava conta de que não
reparara no motorista que também não era o mesmo de todos os dias. Sentia uma
frustração inexplicável por não haver encontrado naquela manhã a simpática
cobradora de passagens.
Trabalhou todo o dia, na volta para casa, de
novo o ônibus. É claro que não esperava nesse horário encontrar Doralice, pois
ela há muito já largara o serviço. Porém, só de estar dentro do coletivo
pagando a passagem lhe veio à lembrança a imagem daquela pessoa.
No dia seguinte, no ponto de ônibus, o primeiro que veio após sua
chegada ao ponto, fez questão de verificar, era a mesma tripulação, vamos dizer
assim, do dia anterior. Deixou que passasse, esperou mais dez minutos e aí sim
veio o que trazia Doralice. Já dentro do ônibus sorriu para a garota que
correspondeu com outro sorriso exuberante. Ela perguntou:
- Ué Sandoval, está indo atrasado para o
trabalho?
- Não, estou começando o trabalho mais tarde um
pouco.
- Mas que coincidência, meu ônibus agora passa
dez minutos mais tarde do que o do horário anterior.
- Feliz coincidência – respondeu Sandoval,
fingindo surpresa.
Sandoval não chegou atrasado para o trabalho,
por ser o gerente e querer dar bom exemplo sempre chegava bem mais cedo, mas
chegou junto com os demais funcionários.
Como passou a sair um pouco mais tarde de casa,
sua mulher perguntou:
- Por que você está saindo mais tarde para
trabalhar, mudou o horário?
- Não, não, eu estava chegando muito cedo à loja
sem necessidade, simplesmente me adequei para não perder tempo.
- Ah, bom! – respondeu a mulher convicta da
verdade.
A vida seguia sua rotina, a melhor hora do dia
para Sandoval era a viagem para o trabalho, se assentava próximo à cobradora.
Quando não estava cobrando passagens, entabulava uma conversa de assuntos
diversos, falava-se do
clima do dia, passava pelas novelas de televisão e ia para assuntos mais
sérios, como corrupção no governo e a violência do dia a dia. Aos domingos
ambos não trabalhavam e por isso a segunda-feira, dia em que normalmente todos
os trabalhadores detestam, era um dia de alegria para Sandoval, o motivo, é
claro, rever Doralice. E numa segunda-feira a garota não foi trabalhar.
Sandoval perguntou ao motorista o motivo, não teve receio em perguntar, pois
este era testemunha das conversas diárias entre ele e a menina. “Ela está de
licença médica” foi a resposta. Não quis se aprofundar, disse apenas um “Ah, tá
bom”. Queria saber mais, porém ficou com medo de ser mal interpretado por se
preocupar tanto.
Passou o dia pensando em Doralice, estava doente
e ele não sabia com que gravidade. Num momento de reflexão deu-se conta que
exagerava na sua inquietação por uma pessoa estranha. Sim ela é uma estranha
repetia para si mesmo, apenas uma conhecida do ônibus. Aquela apreensão que
sentia sem dúvida era porque gostava dela, afinal todos os dias conversavam e
isto já se arrastava há alguns meses, ele não era uma pessoa insensível.
Mais dois dias sem que Doralice retornasse ao
trabalho. Corroído pela
ansiedade ele não aguentou, perguntou ao motorista sobre Doralice. “Ela está
internada, parece que é pneumonia" - respondeu o motorista. Arriscou
a perguntar qual o Hospital. ”Hospital São Jerônimo” foi a resposta. Resolveu
visitá-la. Ela é minha amiga, não há nada demais em visitar uma amiga, se
justificava. Do serviço telefonou para o hospital para saber os dias e os
horários de visitas. Naquele dia teria visitas às quinze horas. Comunicou aos
seus superiores que se ausentaria por breve tempo na parte da tarde para
resolver uma questão bancária impossível de solucionar por telefone ou
internet.
Foi de táxi, comprou flores. No hospital
conseguiu, com alguma dificuldade, localizar a enfermaria onde estava Doralice.
Teria que esperar; somente duas pessoas poderiam entrar de cada vez. A
recepcionista apontou para duas pessoas com aspecto humilde, um senhor que
seria presumivelmente pouco mais velho do que ele acompanhado de um
adolescente, dizendo que eram parentes da enferma, disse também que era
proibido levar flores aos doentes. Sandoval aproximou-se das duas pessoas,
falou que era amigo da moça. O senhor olhou para ele, para as flores e perguntou:
- O senhor é patrão dela?
- Não, somos só amigos.
- De onde?
- Do ônibus, pego o ônibus em que ela trabalha
todos os dias.
- Ah, entendo – respondeu o senhor.
- Trouxe umas flores para ela, mas é proibido
levá-las para a enfermaria, não sabia...
Sandoval sentia-se patético, ali, junto a duas pessoas estranhas com
aquelas flores nas mãos. Começava a se arrepender de ter ido ao hospital
quando o senhor retomou a conversa:
- Eu sou o pai dela. Meu nome é Pedro.
- Sandoval, muito prazer – respondeu apertando a
mão que lhe era estendida.
- Este aqui é Ronaldo, irmão da Dora.
- Prazer – respondeu Sandoval apertando mais uma
mão.
- A mãe dela está lá com ela e mais o namorado,
já vão descer.
Aquela palavra, namorado, fez Sandoval
estremecer. Na sua cabeça procurava entender o porquê daquela palavra ter lhe
causado sobressalto. Ela era jovem, bonita, claro que tinha um namorado e ele
nada tinha a ver com isso.
Viu uma senhora e um jovem saírem do elevador e
caminhar em direção ao trio do qual fazia parte. O pai da moça se incumbiu de
fazer as apresentações. A mãe repetindo o gesto do marido reparou nas flores
que Sandoval tinha nas mãos, este deu a mesma explicação. O pai chamou Sandoval
para subir, o irmão esperaria mais um pouco. Sandoval disse que não demoraria,
pois teria que voltar ao serviço, mas não sabia o que fazer com as flores. A
mãe solícita, disse que as seguraria.
Subiram. Pronto, estava diante de Doralice,
abatida, mais linda do mesmo jeito, constatou Sandoval. Ela mostrou aquele sorriso
deslumbrante dizendo:
- Sandoval, que surpresa maravilhosa.
- Ora o que é que isso, afinal somos amigos –
respondeu cheio de sincera alegria pela acolhida entusiasmada da garota.
- Então você ficou conhecendo meu pai, minha
mãe, meu irmão e meu namorado?
- Sim, são muito simpáticos – respondeu,
sentindo-se novamente angustiado com a palavra namorado.
O pai entrou na conversa:
- Ele trouxe flores, mas não deixaram subir.
- Que gracinha, disse Doralice, mas não deixaram
por quê?
- Não sei – disse o pai.
Sandoval explicou que não deixavam porque as
flores poderiam trazer bactérias e contaminar o ambiente. Depois eles falaram
sobre a doença de Doralice, ela explicou que realmente foi acometida de uma
pneumonia, que em cinco dias mais ou menos teria alta. Sandoval disse que
precisava retornar ao serviço, além disso, o irmão dela estava lá embaixo
esperando para subir, queria apenas saber como ela estava e graças a Deus
estava tudo bem. Despediu-se e desceu para portaria. Pegou as flores com a mãe
da moça e saiu para a rua, viu uma lixeira e nela jogou as flores, em seguida
entrou num táxi.
Após o trabalho, no ônibus de volta para casa se
entregou aos pensamentos do que ocorrera naquele dia e concluiu: Estava
apaixonado, estupidamente apaixonado por uma moça que poderia ser sua filha,
aliás, muito provavelmente ela teria a idade de seu filho mais velho, vinte
anos. Como é que ele aos quarenta e quatro anos, bem casado, com dois filhos,
tinha também uma filha de dezessete anos, se apaixonara assim, bobamente por
uma jovem cobradora de ônibus.
Os dias se passaram e nada de Doralice voltar ao
trabalho. Numa segunda-feira eis a menina no seu
posto de serviço, não resistiu e beijou-lhe a face. A garota parecia mais alegre do que de
costume. Tudo voltou como antes, muitas conversas, risos, pequenas
confidências. Certa vez o ônibus bem mais vazio, Sandoval segurou-lhe as mãos,
quase falou de seus sentimentos, por um momento teve a impressão de que
Doralice esperava que ele o fizesse, faltou coragem.
Uma manhã Sandoval recebeu uma notícia atroz da
garota:
- Vou ficar noiva no sábado – disse olhando-o
nos olhos, sem sorrir.
- Que bom, está feliz? – disse sem muita
convicção
- Claro que estou – respondeu ela também sem
convicção.
Estranhamente, naquele dia, quase não
conversaram, pouco riram, aquele pequeno diálogo de alguma forma quebrou o
encanto que os unia. Pouco ante de descer do ônibus, Sandoval fez uma pergunta:
- O casamento é para breve?
- Meu namorado quer casar no fim do ano, em
dezembro – respondeu cabisbaixa.
- Então o noivado vai ser curto, estamos em
julho.
- Pois é.
Estou grávida Sandoval – disse com lágrimas nos olhos.
Foi um dos piores dias da vida de Sandoval, não
conseguia se concentrar no trabalho. “Estou grávida Sandoval”, ouvia a frase
continuamente. Agora teria que reprimir aquele amor a qualquer custo, aquele
dia de sofrimento era apenas o primeiro dos muitos que ainda viriam – pensava
ele.
Voltou para casa à noite, suas agruras ainda não
haviam encerrado. Aquela amizade dentro do ônibus não passara despercebida dos
usuários do coletivo, muitos deles conhecidos da família do Sandoval. Logo após
o jantar a mulher o interpelou:
- Estou sabendo que você tem uma amiguinha,
trocadora de ônibus, muito bonita.
- Sim converso muito com ela, todos os dias, é
uma menina.
- Pelo que sei há mais do que conversa...
- Você não vai fazer uma cena de ciúmes por
causa de uma moça que tem a idade de nosso filho, seria ridículo.
- Talvez exatamente por ser uma menina de vinte
anos é que devo me preocupar.
- Só me faltava essa. Pego o ônibus em que ela
trabalha todos os dias, um dia não sei o porquê surgiu uma conversa, a partir
daí surgiu também uma amizade, que mal há nisso?
- Não quero brigar, mas quem me contou disse que
parece que vocês têm mais que amizade, não me pergunte quem trouxe a notícia
que não vou falar.
- Gente fofoqueira é o que não falta. Não, não
quero saber quem é essa mexeriqueira. O que me admira é você acreditar numa
pessoa maledicente. Mas é fácil resolver isso. A
partir de amanhã volto a ir para o trabalho de carro. Já estava mesmo
ficando estressado por andar de ônibus.
- Acho uma boa ideia, mas ainda assim pode ter
certeza de que estou atenta, se eu souber de alguma coisa concreta voltaremos a
conversar. Não quero escândalos nem brigas, não é do meu feitio. Ninguém é
obrigado a viver com ninguém se não quiser, mas isso deve ser dito com todas as
letras, sem falsidade.
Sandoval abraçou a esposa ternamente, com
sincero carinho. Aquele questionamento veio a calhar, era a oportunidade de
esquecer Doralice, nada melhor do que deixar de vê-la para que isso
acontecesse. Sentia apenas certo desconforto por ter mentido para a esposa com
quem estava junto há vinte dois anos.
O automóvel voltou a ser seu meio de transporte.
Três meses se passaram. Doralice ainda estava forte em suas lembranças, o
sentimento que sentia por ela não se arrefeceu. Contudo, não mais a viu,
conseguia ser forte, não a procurava. A esposa parecia convicta de que realmente
tudo não passara de intriga de pessoas mal-intencionadas. O carro estragou, teve que deixá-lo na oficina. No dia seguinte foi para o ponto de ônibus no
horário que a garota trabalhava, a ansiedade o sufocava. Pensava naquele
momento que se tivesse declarado seu amor talvez tudo tivesse sido diferente.
Por causa da família não tomou a iniciativa, mas como disse sua esposa temos o livre-arbítrio
para decidirmos, não somos obrigados a ficar com ninguém contra a vontade.
Dentro do coletivo não estava Doralice, outra trocadora. O motorista, porém,
lhe falou:
- O senhor é o Sandoval, não é?
- Sim, sou.
-
A Doralice deixou uma carta aqui para o senhor há cerca de um mês. Foi quando
ela saiu da empresa.
Sandoval pegou o envelope olhando para os lados,
temia que conhecidos o vissem naquela situação. Tremia, o coração batia
fortemente. Assentou numa cadeira no fundo do coletivo, com sofreguidão abriu o
invólucro, retirou uma folha de caderno pautada e começou a ler.
“Querido Sandoval. Deixei esta carta para você
porque você sumiu desde o dia em que falei que estava grávida. Estou indo
embora de volta para minha terra com a minha família. Desisti do casamento,
primeiro porque o meu namorado demonstrou ser um grande irresponsável que não
vai assumir o filho nunca. Também porque não gosto dele. A pessoa de quem eu
gosto e amo mesmo, infelizmente, é um amor impossível. Ele é bem mais velho do
que eu, mas isso não é impedimento, o que impede é ele ser casado, muito bem
casado. Outra coisa é ele pertencer a uma classe social diferente da minha,
jamais daria certo. Deu para perceber? Estou falando de você. É melhor que
termine assim o que nem começou. Aliás, você decidiu primeiro do que eu quando
resolveu não mais me ver, foi assim que entendi o seu sumiço, foi aí também,
tarde demais, que percebi que havia interesse de sua parte. Nunca antes
demonstrara isso, exceto talvez por alguns olhares, o que eu acho pouco. Não o
estou acusando de nada, eu também me reprimi. Não deixo endereço nem telefone;
engraçado nós nunca termos trocado nossos números de celulares. Escrevi esta
carta com medo de que você jamais a leia, mas não queria ir embora sem falar o
que realmente sinto por você. Adeus. Doralice”.
A palavra “Doralice” quase se desfez no papel
quando uma lágrima escorreu sobre ela.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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