A Árvore
de Cassiano Bovo
Numa cinzenta manhã,
Claudionor, um senhor de corpo atarracado e cara de poucos amigos, caminhava
pelo corredor de uma das torres do conjunto residencial do qual era o síndico. Como se fosse o dono,
inspecionava o que via pela frente. Passou pela porta, adentrou ao pátio e foi
para a outra torre; um comprido espelho na lateral, o quadro de flores na
parede, a mesinha com pequeno cavalo de pedra e já estava de frente para a
entrada do prédio. Deu de cara com a frondosa árvore na calçada. Os galhos, as largas
folhas e as flores de um vermelho exuberante esparramando-se edifício adentro,
chegando até à guarita da entrada.
Claudionor nem ligou
para a bucólica beleza que contrastava com a massa do concreto. Apenas veio-lhe
à mente as reclamações de alguns moradores de que o arbusto tornava o local mais escuro, escondia as pessoas e facilitava assaltos. A faixa de um lado a outro da
rua, em frente ao prédio, onde se lia
“Este conjunto faz parte do Programa Vizinhança Solidária”, atestava o nível da preocupação dos
condôminos.
Naquele momento
Claudionor maquinou a ideia de pedir à Prefeitura a remoção da árvore. E isso
não lhe saiu mais da cabeça e foi incontrolavelmente crescendo, dia após dia,
alimentado pelos cotidianos programas policiais de rádio e TV martelando a
mente, as queixas de assaltos e furtos, o clima exacerbado de violência e a
sensação de perigo iminente. Pelas conversas que tinha com os moradores, ia
testando. E via que a proposta poderia prosperar, embora percebendo que muita
gente torcia o nariz.
E veio o dia da
assembleia ordinária do condomínio. Claudionor, ansioso, foi o primeiro a
adentrar no modesto salão de festas, no andar térreo, observando as pessoas
chegando, mas não em grande número, como sempre.
A assembleia tratou
das questões de praxe de um condomínio e caminhava para o seu desfecho habitual. E entrou no último item da pauta: outras
questões. Silêncio. Todos já se preparavam para ir embora quando Claudionor
tomou a palavra. Disse que tinha algo importantíssimo
a dizer. Aquele homem que geralmente inspirava
pouco entusiasmo, e que era visto como
quem fazia o “arroz com feijão”, desatou
a falar sobre a proposta. Usou o clima de violência e de medo na cidade para
preparar o terreno, disse que no bairro a situação estava até pior do que na
cidade em geral, que os bandidos estavam dominando, coisas do tipo. Falou de
assaltos na rua, em frente ao prédio, e até de homicídios e estupros.
Inseriu a árvore no meio do discurso afirmando que o arbusto facilitaria essa
situação, aumentando o perigo, pois escondia
as pessoas, tornava o local mais escuro.
E reforçou dizendo que vários condôminos pediam
providências, sobretudo a remoção da árvore junto à Prefeitura, e que ele
concordaria.
Se a maioria dos
presentes não via a hora de ir embora,
dado o clima até então pouco contagiante da assembleia, a partir dali
abruptamente tudo mudou. Pegos de surpresa, olhavam estupefatos para o síndico.
Um senhor de cara magérrima e longos cabelos disse que a árvore contribuía para o meio ambiente, embelezava o local e que a nem a Prefeitura acataria
tal coisa. Uma mulher gorda, com enormes óculos vermelhos, disse que havia
coisas mais importantes para o condomínio se preocupar e que a violência tinha outras causas. Outro indivíduo lembrou
que o prédio já fazia sua parte ao entrar no Programa Vizinhança Solidária,
além da existência de um aparato de segurança terceirizado, e caro. Eles que
mexessem com isso, disse.
Depois de uma
silenciosa pausa, a impressão seria de um fim de discussão e nada feito, mas
uma sequência de intervenções dando apoio ao síndico apontou para outro
sentido. Diziam que a proposta tinha
sentido, que era necessário ao menos pensar no assunto, em falas que
misturavam inconformismo com violência urbana e ódio aos políticos; script
esperado para um típico reduto de classe média, como defensores de sua
fortaleza contra os ataques externos.
O tempo urgia. Era
tarde. Claudionor aproveitou para dizer que era
importante mais discussão entre os moradores, reflexão, e propôs uma assembleia
extraordinária exclusivamente para discutir apenas essa questão. Uma parte se
opôs, mas a maioria acabou aceitando, desde que fosse enviado um documento
esclarecendo a proposta e estimulando a participação. Uma bela árvore acabou
virando um problema de segurança pública.
O evento virou um
acontecimento. Vizinho conversando com vizinho, moradores tentando convencer os
demais; engajamento, inclusive com utilização das redes sociais e grupos de whatsapp para convencimento.
No dia da assembleia
extraordinária o recinto ficou pequeno para tanta gente, como nunca se viu.
Claudionor pensava como algo despretensioso foi crescendo tanto. Cada pessoa se
inscrevia para defender ou criticar a proposta, dentro de um limite de tempo. E
foi uma saraivada de falas, de todos os tipos; defesas, argumentos e cargas de
sentimentos. Uns chamavam a atenção para a loucura daquilo, para a manipulação,
alertaram sobre o clima de violência cotidianamente criado pela mídia, a
influenciar corações e mentes, e que não seria uma árvore que resolveria o
problema. Outros rebatiam defendendo a remoção, muitas vezes de forma
agressiva, misturando as já conhecidas palavras de ordem contra bandidos,
políticos e corrupção. E veio a votação. A proposta foi aprovada por
pouquíssima margem.
Dias depois a
Secretaria do Verde e do Meio Ambiente recebeu um pedido formal, assinado pelo
síndico, e a ata da assembleia. Junto, um documento elencando os
argumentos.
Um dia parou uma caminhonete da Secretaria em frente ao prédio. Desceram um perito e dois homens.
Conversaram com Claudionor, funcionários da segurança e alguns moradores
aleatoriamente escolhidos.
Veio o parecer. O
pedido foi recusado. Claudionor, inconformado, não aceitou. Juntou condôminos
da área jurídica, advogados, até juiz e procurador, e elaboraram um novo
pedido, tecnicamente mais embasado. Algo para impressionar mesmo. Parecia um
tratado. E conseguiram; logo depois veio a aprovação da remoção do criminoso
arbusto.
Quando isso
aconteceu, parecia uma operação de guerra. Rua fechada, caminhão, escavadeira,
trator. Jamais passou pela cabeça de muitos moradores e vizinhos estarem
defrontando-se com aquela cena. Desnecessário dizer da tristeza ao ver cada
galho e tronco ser arrancado. Pior, o espaço vazio na calçada onde antes a
beleza dos troncos, galhos, flores e folhas inundavam o prédio.
Um mês depois um
carrão, tipo SUV, parou em frente ao portão de entrada da garagem do
prédio. Dentro, uma moradora e um homem no banco de passageiros. Crachá de
identificação no vidro dianteiro. Tudo certo. O portão se abriu. O carro estacionou na vaga. Saíram a
mulher e o homem, ele estava armado, mas
não se via. Entraram no elevador e depois no apartamento dela. O homem fez uma limpeza. Colocou dinheiro, joias, objetos de valor em sua bolsa a tiracolo.
Voltaram para o elevador, entraram no carro e saíra
pelo portão da mesma forma. A mulher foi
abandonada em um bairro bem distante
dali.
No dia seguinte, Armando, condômino ferrenho defensor da permanência da árvore, saía do prédio para trabalhar e deu de frente com Claudionor. Armando o encara profundamente, a vontade era dar-lhe um murro, mas se conteve. Passou pelo síndico, que abaixou a cabeça, desceu as escadas, abriu o portão e adentrou à calçada, agora mais larga, com a ausência do arbusto.
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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