O Homem de Alba
de Alexandre Ottmann
É
difícil falar de amor a quem não amamos, mas vou tentar. Ele é, talvez, a única
doença que deu certo, uma ferida aberta que ninguém quer curar. No entanto,
depois de viver o impossível e de transcender meus limites, estou curado. Jamais
imaginaria, apesar de os gregos antigos já alertarem desse pathos, que a felicidade do homem só se realizaria por uma doença.
E o meu acometimento da maladie d’amour foi
tão lindo quanto delirante.
Não
lembro exatamente onde ou quando a conheci. Acredito, entretanto, que nossos
primeiros encontros foram no litoral catarinense em algum verão da década de
setenta. Recordo de sumirmos da companhia de nossos amigos, aparecendo tempos
depois com alguma história pouco convincente. Assim como não me convenceram os
argumentos do sumiço, para sempre, da minha doce e amada Alba. Como é possível
aceitar passivamente a morte daquela que me deu a chance de ser mais de uma
pessoa? Afinal, se desde o nascimento fui uno, indivisível, preso em um só
lugar, em uma só vida, um dia me desdobrei em outra pessoa, em um eclipse
daquela realidade solitária.
Aos sessenta e cinco anos, eu precisava ir três vezes
por semana ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre fazer hemodiálise. E
aconteceu de se romper um aneurisma cerebral em Alba numa dessas tardes minhas na
nefrologia do HCPA. Estava consciente quando chegou à Santa Casa de
Misericórdia, disseram-me os médicos. Por conta de decretos municipal e
estadual, não me deixaram vê-la antes da cirurgia. Em dezoito de março já se
multiplicavam no Brasil os casos de infecção por coronavírus. E diversas
instituições restringiam acessos para evitar o contágio, em especial a pessoas
do chamado grupo de risco - aquelas com doenças crônicas ou idosas. Eu.
Melhor sorte
não tive na UTI, após a recuperação. Ainda no saguão, nosso filho, a quem demos
o nome de Rômulo, sob lágrimas relatou a drástico quadro de meningite
pós-operatória. Aguardavam a vinda de um aparelho respirador do outro pavilhão,
onde concentravam esses equipamentos para uso em pacientes infectados por
COVID-19. “Aires”, com voz fraca, quase desaparecendo, a única palavra dita. Como
eu me sentia? Aires, o Polifemo, um monstro terrível, sem forma, enorme, cujo
único olho foi arrancado. Por Alba, eu via os dias em cores vibrantes e
desvairadas. Agora túmido de insuficiência, apenas vejo a borboleta embaçada,
titereira em partida, murmurando meu nome em homenagem à minha mais recente
condição de marionete de mim mesmo. Afora isso, apenas Rômulo e sua insistência
na confusão mental, a que atribui à falha renal.
- Rômulo, sangue do meu sangue ontem, vai me aturando
que te deixarei herdeiro pleno.
- Meu pai, que dizes? Acaso também ofereces universal
patrimônio a todos os meus irmãos, cujas mães desconheço?
- Se existem, como afirmas, fogem cruéis deste velho
já na margem, embarcando? Ou enviam um coió abutre?
- Não cuspas no leito nem ofendas quem recusou teu
abandono aos enfermeiros! Por isso enjoaram as bainhas de tua velha espada.
- Claro que encantas minha imaginação, e meu coração
preza a transição do teu amparo ao dos anjos que me tomam a mão!
- Como agradas, não agradas. Diria das toxinas, não
houvesse precedentes repetitivos fixados na ambivalência do elogio e da
humilhação.
- Meu anjo, não te apresses. Não me quero triste,
porque te quero alegre.
- Velho pai, meu carinho não estragou. Vou trabalhar
oito horas por dia, começando às nove. Plantarei e regarei.
- Procedes com muito acerto em tão meritória ação,
digna dos maiores elogios! Hei de te presentear, pois bem sabes que não posso.
- Quero teu chapéu panamá e teu terno de linho branco.
Não visto o traje porque ainda não deu a hora. Encerradas as exéquias, recoloco
meu vestido de barra lavrada.
- Contentas-te só com isso? Não queres meus sapatos e
minhas meias?
- O mais tudo eu tenho, meu pai, em estado de ainda
servir bem. No momento, precisão maior são as comodidades para alívio dos
intestinos.
Nem mesmo o barqueiro me acudiu quando caí no rio. Ainda
afundando, olhei para cima. O que seria luz da superfície eram nalgas
romulescas atravessadas por um profundo vale a centrar seu portal em extrusão:
minha última imagem.
Quando Rômulo matou Remo, o vivente morreu em gênero. Não
lembro o nome da sobreposta identidade, embora o perfume me lembrava o de Alba,
jamais esquecida. Repeti mulheres fortes, altas, coradas e inominadas por mais
de quarenta anos. Sementes fertilizadas em odres cheios d’água, onde
floresceram, disseram, encantadoras criaturas. De todas, Rômulo a mais fina transgenia
original, descendência direta do amor virginal do verão de setenta e poucos.
Estaríamos, creio, próximos das bodas de ouro. Loucos
me dizem louco e me afirmam bodas de outro, mas Alba casou comigo. Tão certo
quanto errados os não-loucos da minha loucura. Então me perguntam a rotina, se
não foi de samurai alistador de lindas bainhas, descartando cada uma após sua
conquista e uso. Enfermeiros e médicos inseridos e me inserindo no cenário
donjuanesco.
Como aceitar as sandices dessa gente que vive em um
universo nidificante de incongruências? Ou não percebo a horda primeva de covidianos
adoradores de Thanatos, incitados pelo animal totêmico a compartilhar infecção
contagiosa? Ora, se eu vivesse à mercê dos dias, do tempo, não me daria conta da
culinária que come tudo que voa, menos os aviões, tudo que tem pernas, menos as
mesas, e tudo que nada, menos os barcos. Não sou frouxo no que digo e tenho
passo certo. Ainda que tenha, como hipótese, deitado em qualquer cama com
amantes diversas, ao dormir sonhava caminhando sempre pela mesma rua. O
esclarecimento nem sempre vem ao final, pois quem me leva ao mausoléu sabe que
carrega uma mala cheia de histórias dentro.
Fui levado desde a tenra idade ao mamilo. Daí não
parei mais. Um dia até me aconselharam: “Aires, saia da placenta social!”, mas
ignorei e continuei prematuro. Com vinte anos reinaugurei meu amor e passei o
resto da vida apaixonado pelo homem de Alba. Eu o quis dentro de mim, como já
tive um dia. Esse homem me penetrou nas areias do litoral paradisíaco de Santa
Catarina, em algum verão de há quase meio século. E foi Alba quem me
proporcionou a virilidade do masculino. Como não dizer que ela esteve sempre
comigo? Precisei dela para chegar a ele. Quando o alcançava, fugia ejaculante.
Vivi compreendendo as delícias preliminares quase
sempre como mais deliciosas que o orgasmo. Fui, sim, ébrio do desejo ao prazer.
E, no prazer, saudoso do desejo! Desejei desejar o homem de Alba, essa é que é
a verdade. A vida sem um para-quem é um como-se. O resto foram cálices, nos
quais bebi até a última gota.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: