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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 5x01 (Season Premiere)

Conto de Leonardo de Almeida
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Sinopse: Will, um jovem negro de vinte e dois anos, vive dos seus bicos de pintura enquanto sustenta um relacionamento estranho com Margot, uma moça que abandonou sua família rica para viver junto dele. Em meio aos perrengues do dia a dia, um trabalho de prazo curtíssimo e um patrão insuportavelmente exigente, Will sente a pressão se acumular, chegando a conclusão de que a tinta derramada sobre o assoalho não é tão diferente assim de sangue quando seca.

5x01 - Tinta Seca
de Leonardo de Almeida

“Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”

Bertolt Brecht.


Numa praça limpíssima, porém impregnada de poluição sonora — sendo ela resumida no barulho oriundo dos carros que deslizam sobre a rua recém-asfaltada ao lado e os próprios transeuntes, desesperados por chegarem em suas empresas no horário em que são pagos para chegar, Will, um moço de vinte e poucos anos, pele escura e olhar naturalmente cansado, caminha tranquilamente pelas longas calçadas cheias de recortes de pedrinhas que se moldam em uma espécie de quebra-cabeças preto e branco. As pessoas caminham a seu lado, aglomeradas, como se fossem borrões ininteligíveis. Will veste uma larga blusa da cor off white, perfeita para quem está se adequando a troca de estação entre verão e outono, e calças pretas de moletom. Roupas surradas e "descartáveis". Roupas em que poderia se sujar à vontade enquanto trabalha. Em sua mão esquerda, carrega um balde preto pela alça metálica, o mesmo portando seus itens de pintura (rolo, pincel e 

bandeja). O telefone celular de Will toca e ele o tira do bolso com a mão livre, admirando o ícone "MARGOT" em sua tela quebrada.

Alô?

Saiu sem de despedir. - A voz feminina no telefone é baixa e monótona, sendo até mesmo difícil de se escutar em uma praça tão barulhenta quanto a que Will está. É a voz também de uma moça na casa dos vinte e poucos, aparentemente tímida e introspectiva.

Ah, foi mal… O patrão ligou do nada, então tive que vir trabalhar.

Ele não havia te dado folga hoje?

Aham, mas mudou de ideia, aparentemente. Acontece direto com esses velhos ricos. Margot suspira.

Eu invejo tanto a sua calma, Will. Se uma das meninas da Dengo Chique me enchesse o saco, eu surtaria de raiva. Não falaria nada, é claro, mas arrancaria os cabelos.

É que não tem muito o que fazer, né? O patrão manda e a gente que é orelha seca obedece. A vida é assim. Se a gente parar pra pensar sobre essas coisas, o risco é soltar um parafuso.

Tem que estar com um parafuso solto mesmo para aceitar esse tratamento com um sorriso no rosto.

Nossa, como tu tá revoltada hoje, né?

Se tivesse me acordado na hora que saiu…

Eu já pedi desculpas, não pedi?

     —… Talvez meu humor estivesse um tiquinho melhor.

Queria saber se todas as garotas ricas são tão caprichosas quanto você.

Só as que fogem de casa para "se amigar" com um pintor de obra.

Bom, a minha princesa quer mais alguma coisa ou estou dispensado?

Ah, sim… traz macarrão instantâneo, se receber hoje. Não temos nada para o jantar.

Só se você chamar de miojo, como gente normal. Vamos, repita comigo: Mi-o-jo. Margot termina a ligação do nada, sem se despedir. Will, suspirando, diz “Beijo então”.

Ele segue caminhando pela multidão, se misturando à massa de pessoas da praça, se afastando pouco a pouco e sumindo no mar de pedestres ao atravessar a rua.

Após algum tempo, Will cochila com a bochecha direita recostada na barra metálica do ponto de ônibus, acordando no susto ao escutar uma buzina estourando na rua à sua frente. Ao seu lado, um homem e uma mulher, aparentemente também indo para o trabalho, conversam, praticamente berram, sobre um assunto que para Will era incompreensível, pois o pegou do meio, sem contexto.

… Bem na minha vaga! Já falei pro gerente que… — Disse um homem ao lado.

O barulho da rua se intensifica, os carros arrancando, os gritos dos cidadãos estressados e as buzinas. A medida que o som ambiente aumenta, seus colegas na espera do ônibus também aumentam o tom de voz, tentando se sobressair.

… Aquela lá meteu não sei quantos atestados essa semana. Não sei como não mandam ela embora. Também, dando para o chefe até eu.

O semáforo exibe o sinal vermelho e o barulho das freadas dos carros aumenta exponencialmente. Will olha de soslaio para a boca da mulher e em seguida para a do homem, mas não escuta nada além do som ambiente, aumentando de forma desconfortável, como se fosse uma chaleira apitando prestes a ferver. O barulho da cidade se torna insuportável a ponto de Will fechar os olhos e tampar os ouvidos (largando a alça do balde com os utensílios de pintura quando o fez), mas é salvo por um ônibus alaranjado chegando, calando todo o ambiente a não ser pelo barulho baixo do motor.

Will, após pegar o balde novamente, sobe a escada do ônibus, atrás do homem que conversava ao seu lado. O moço da frente deposita o dinheiro para o cobrador sem problemas, passando pela catraca. Will coloca o cartão sobre o leitor, mas dá negado, com o saldo zerado. Ele tenta de novo e de novo, enquanto a mulher atrás dele grita para que ele saia da fila se não vai entrar. Acuado, Will desce do ônibus, deixando os outros passarem a sua frente. Tira o celular do bolso e liga para seu patrão. 

Já não era para estar aqui, moleque? — A voz do senhor soava num jeitão meio bronco, falava em tom de repreensão mesmo nos papos casuais.

Ah, foi mal. É que como o senhor me chamou assim do nada…

Não sei qual o problema dessa sua geração. Na minha época ninguém ficava resmungando pelos cantos. A gente trabalhava duro, meu filho! Sem reclamar. Essa gurizada de hoje não pode ver um problema que já quer…

Senhor! Eu estava dizendo que deu ruim no meu cartão. Fui passar e apareceu que o saldo está zerado.

Claro, ué? Eu não recarreguei.

Não recarregou? Como espera que eu…

Que dia é hoje, moleque?

Dia 30, mas é que…

E que dia eu deposito as passagens?

Todo dia primeiro. Mas eu pensei…

Pois pensou errado. Não vou depositar antes só porque você não economizou as passagens direito. Bem, venha logo pra cá. O inquilino vai se mudar no fim de semana, então esse apartamento tem que estar um brinco hoje, entendeu?

E desligou o telefone. Vendo o ônibus fechar suas portas e seguir seu caminho, Will suspira e passa a caminhar, se afastando. Enquanto caminha, a cidade gigante vive ao seu redor, seus prédios e pessoas, a paisagem urbana que Will vê ao se dirigir ao apartamento que vai pintar. Passa-se praticamente a manhã inteira dele fazendo o cansativo caminho a pé.

Will aperta a campainha e, depois de soar o barulho, a porta se abre revelando a figura do velho cujas feições distorciam-se no formato de carranca eterna, como se os seus músculos tivessem congelado naquela expressão. Calvo, pele clara, meio cinza, alto, vestindo uma camisa social que lhe aperta a pança de cerveja e óculos escuros que param mais sobre sua testa do que cobrindo seus olhos.

Está atrasado! Eu não te falei pra vir cedo pro apartamento?

Ah, desculpa. Eu precisei vir de a pé, por isso demorei mais. — Will respondeu, um pouco ofegante. O Patrão resmungou algo incompreensível e entrou no apartamento. Will o seguiu. A porta se fechou.

Will deu uma boa olhada no apartamento, sem móveis e de paredes brancas de argamassa. As portas de dois quartos pareciam recentemente terem sido colocadas, ambas marrons e com maçanetas douradas. Era um

lugar amplo, três quartos, uma sala espaçosa, um banheiro e uma cozinha. No meio da sala, onde estavam parados de pé, havia, largado no assoalho, algumas latas de tinha, um balde vazio, um pedaço de ripa para mexer, lixa, uma escada metálica dobrada e alguns panos. Também havia um cabo de vassoura para se encaixar o rolo.

Vem mais gente da firma, né? — Will perguntou.

Não. Ninguém quis vir trabalhar no sábado.

Devo ser o único idiota então.

O que disse?

Que fui o único que veio. O velho estava desconfiado.

Ah, sim, mas se soubesse que vinha tão tarde tinha te mandado ficar em casa! O problema é que ninguém quer se esforçar e acha que vai ficar rico do nada. É preciso de muito suor, moleque! Você nem imagina. Se eu não tivesse me esforçado, jamais chegaria onde estou.

Seu pai deve estar orgulhoso…

O Patrão, ruborizado, passa a caminhar pelo apartamento como se fizesse uma vistoria, indicando a Will  algumas coisas que ele precisaria.

Há água no banheiro, para misturar a tinta. E os panos, caso suje alguma coisa. Pelo amor de Deus não me suje essas portas! Mandei colocar ontem à noite.

Senhor, não trouxemos a lona.

Bobagem, rapaz! Vou trocar todo o assoalho, então não há razão para gastar com a porcaria de uma lona.  Me diga, você consegue terminar hoje?

Will suspira e, abaixando a cabeça, responde:

Sem problemas.

O Patrão, depois de deixar a chave do apartamento, vai embora e Will começa rapidamente seus preparativos, pegando um pouco de água e diluindo a tinta vermelha dentro da lata, mexendo com o pedaço de ripa. Will lixa alguns pontos da parede que parecem ter certa elevação e, após concluir que podia continuar seu processo, despeja a tinta sobre a bandeja, encaixa o rolo no cabo de vassoura e começando seu trabalho. Ele molha o  rolo, tira o excesso de tinta na própria bandeja, pinta a parede, lixa mais um pouco, alguns pingos caindo sobre  o assoalho de madeira. Faz os retoques com o pincel, tanto abaixado para pintar perto do rodapé quanto em  cima da escada, para pintar perto do teto. A luz que entra pela janela se altera, pois anoitece.

Depois de algum tempo, Will descansa deitado no chão, de costas esticadas, encarando o teto, sua blusa off White toda manchada de vermelho, igual o assoalho ao redor. Está cochilando. Escuta-se o barulho de uma notificação, que o faz despertar, no susto, tirando celular do bolso e olhando a mensagem "abre a porta" embaixo do ícone "Margot" em sua tela rachada. Meio confuso, Will se levanta em um salto e caminha até a porta, abrindo-a com a sua chave.

Se depara com Margot, uma moça de cabelo curto, liso e loiro platinado, beirando o branco, mal chegando a cobrir o pescoço pálido. De nariz caucasiano e orelhas enfeitadas por um par de argolas prateadas. Os olhos são pequenos e muito azuis, cobertos de tédio e frieza, fazendo-a ter um aspecto apático para estranhos.

Veste um suéter de tricô de manga longa, listrado numa alternância entre bege e branco, junto de calças confortáveis. Segura em sua mão uma sacola plástica de mercado, que destoa da vibe de socialite que a impregna.

Acho que se enganou, moça. Não pedi entrega nenhuma.

Paciência não era sua virtude.

Deixe-me entrar de uma vez.

Indicou com o braço para que ela entrasse, deixando-a passar a sua frente e entrar. Fecha a porta e a segue, receoso.

O que faz aqui?

Vim te buscar. Pensei em jantarmos juntos. Você tem a mania chata de não se importar consigo mesmo, então não tive escolha.

Que maneira estranha de colocar as coisas...

Margot simplesmente dá de ombros e senta-se de pernas cruzadas em uma das pouquíssimas ilhas limpas de tinta do assoalho. Will faz o mesmo, sentando a sua frente. Mesmo sem nenhum apoio, a postura de Margot é

inabalável, como uma rainha sentando em seu trono. Já Will tem as costas naturalmente arcadas. Ambos ficam  um a frente do outro, de perfil, a diferença sendo cômica para qualquer um que vê de fora. Margot tira de sua sacola de mercado uma pequena toalha de mesa e a estende entre os dois, colocando acima dela os demais

itens da sacola (uma garrafa de vinho, umas fatias de mortadela, pão de forma, uma faca e dois copos plásticos).

Puta merda. Você é maravilhosa, Margot!

Ele pega a garrafa, ostentando-a feito um troféu, e a beija. Logo em seguida, pressiona a faca (um pouco grande demais para o seu gosto) até o fim, para remover a rolha. Quando o faz, dá uma golada generosa, no bico, com tanta vontade que até respinga pelo queixo até seu colo. Estica a garrafa para a moça, que revira os olhos, a apanha e despeja um pouco no copo plástico, tomando um golinho. Will ri do gesto dela.

O que foi? Eu ainda sou uma dama.

Eu sei — Will, sorrindo feito bobo, acarinha os cabelos da moça, que se sente meio constrangida pelo ato tão singelo. Mesmo assim, não reclama, aproveitando as carícias que raramente lhe são oferecidas.

Acho que o vinho te deixou meloso.

É que eu fiquei feliz que você veio me buscar e tal.

Isso é raridade. Esse negócio de ficar feliz.

Podemos, por favor, deixar o cinismo de lado? Só um pouquinho? Estou meio cansado hoje.

Margot faz um gesto como se fechasse a boca com uma chave e a jogasse para longe, sorrindo sutilmente enquanto isso.

A garrafa esvazia e as fatias simplesmente somem após um tempinho.

...

O cigarro de Will é aceso no meio do breu, aos poucos tornando a imagem nítida. Will repousa a cabeça sobre o colo de Margot, que também segura um cigarro com a mão direita enquanto faz um cafuné em seus cabelos crespos com a mão livre. Ambos baforam a fumaça, vendo-a flutuar até chocar-se contra o teto.

Como foi o trampo hoje?

Foi produtivo. Acho que finalmente aprendi a jogar fora meu orgulho como escritora e escrever algo que pague minhas contas. Isso é bom, certo?

Ruim não é. A Dengo Chique é uma revista até que grandinha, né?

É sim. Inclusive, me chamaram para ser colunista.

Sério? Que foda, Margot. Na moral.

É, mas eu não sei se vou aceitar.

Por quê? As pautas não te interessam?

Nenhuma pauta daquela revista me interessa. Não é essa a questão. É só que eu não quero me comprometer, sabe? Os freelas não pagam tão bem, mas me dão certa liberdade que eu não teria com a carteira assinada. Sei que soo mimada quando falo assim, mas é a mais pura verdade. Se um patrão me tratasse igual o seu te trata, eu surtava. Não tenho o psicológico tão forte quanto o seu.

Você está se subestimando para cacete.

Não estou. Eu choro se alguém fala alto comigo e roo as unhas até destruir minhas cutículas quanto estou ansiosa. Te invejo por lidar com as coisas tão bem. Eu já teria explodido.

Talvez eu exploda em breve. Quem sabe. Todos chegam num ponto em que o copo transborda.

Até você?

Até eu.

Falando nisso, como foi seu trabalho? Ou melhor, está sendo.

A mesma merda de sempre.

Não seria melhor procurar outra coisa?

E o que mais eu posso fazer? Nem o ensino médio eu terminei. Tenho sorte de um velho, por mais filho da puta que seja, ter tido vontade de me contratar. Tenho que ser grato.

Isso é tão conformista...

Isso é realista. Nem todo mundo pode ser tão caprichoso quanto você.

Aprendi a ser caprichosa na marra. Passei a vida inteira fazendo as vontades daqueles crápulas que chamei de pais. Agora, livre deles, posso fazer o que quiser. E farei. É por isso que moro contigo, caso tenha esquecido.

Mas não quer dizer que está livre das consequências, certo? Não terminou sua faculdade de letras e agora passa por perrengues junto comigo.

Margot suspira, desviando seu olhar novamente para o teto e atirando a pequena bituca de cigarro para longe. Se a consequência das minhas ações é passar por alguns perrengues com aquele que amo, as aceito com gosto.

Will cora, encabulado, desviando o olhar para longe.

Covardia sua encerrar nossa discussão com uma declaração tão meiga... — Will murmura.

A frágil paz que sentiam naquele momento foi rompida pelo som do telefone de Will tocando. Levanta-se rápido, como se tivesse sido despertado de um transe. Ele atende o telefone, mas não é mostrado com quem ele fala ou o contexto da conversa.

Alô? Sim. Não, é que eu pensei... Certo. Sim, sim. Tudo bem. Até de manhã. Will, logo após desligar o celular e guardá-lo no bolso da calça, suspira alto.

O que foi? Quem era, Will?

O patrão.

Queria saber se já terminou?

Quem dera. Ele teve a benevolência de me avisar que vai usar a porra do piso! Hahahá! Como eu sou sortudo. Cara, eu tô fodido.

Margot olha ao redor, irritada.

Mas ele não disse...

Disse sim. E eu perguntei sobre a lona, se quer saber.

Não vai ter como ajeitar isso aqui. Parece que esse apartamento virou o cenário de um massacre.

Bom, pelo menos o cheiro de tinta é melhor que o de sangue, eu acho.

E o que fará?

O que mais posso fazer? Vou ver se consigo ajeitar esse troço até amanhã de manhã. Se eu não fizer, ele não me paga e todo esse trampo terá sido inútil.

Precisa de ajuda?

Não esquenta. Vai pra casa e dorme um pouco. Tem dinheiro pra chamar Uber? — Margot assente e passa a juntar as coisas que trouxe dentro da sacola.

Deixa a faca, por favor.

Margot deixa a lâmina onde está, largada no meio do assoalho, e caminha até a porta. Will a acompanha até a saída. Ela fica parada do lado de fora, o som ambiente invadindo a casa.

Me avisa quando chegar? — pede Will

—Aviso — diz ela, lhe dando um selinho. — Sabe, Will... Eu fico chateada por você se dedicar tanto por um patrão que não merece.

E algum patrão realmente merece? Se fosse esse o critério, ninguém mais trabalhava.

Ambos riram. Ele finalmente fecha a porta, ficando sozinho naquela sala que, agora, parece imensa

Will primeiramente pega um pano, esfregando o assoalho de forma até violenta. Quando viu que não teve o efeito esperado, apalpou o piso ao lado sem olhar até achar a faca. Acabou esbarrando a palma na parte com fio, fazendo um corte no formato de uma linha sangrenta. A gota de sangue escorre de sua mão até pingar no chão.

Após algum tempo, essa gota seca, ficando indistinguível das manchas de tinta ao redor no assoalho. Já é de manhã e Will está adormecido no chão. Ele é acordado com algumas batidas violentas na porta, fazendo-o

levantar de imediato e caminhar meio grogue para destrancar a porta.

O patrão entra e lhe mede com os olhos, andando por tudo sem dizer uma palavra, como se fizesse uma vistoria, procurando por falhas no trabalho de seu funcionário. No fim, olhou Will nos olhos e disse

Olha, não tenho como te pagar. O assoalho tá inteiro riscado! E há várias manchas. Várias. Terei que gastar uma grana preta para trocar a porcaria do piso. O que eu vou dizer pro inquilino? Ele ia se mudar hoje.

Depois de dizer isso simplesmente virou as costas e foi olhar a cozinha. Will ficou paralisado no meio do assoalho, quieto, encarando o chão de cabeça abaixada.

Não, não, não. Isso não está certo. — Will sussurra. A resposta vem rápida, gritada do outro cômodo

Não está certo você foder com o assoalho! Te disse que ia usar e olha o estado que tu deixou.

Não era esse o acordo.

De que acordo tu tá falando, moleque? Tá maluco?

O acordo social. O patrão manda e o funcionário obedece. O patrão paga e o funcionário recebe. É esse o acordo. Eu cumpri a minha parte, como sempre fiz. Passei a porra da madrugada raspando tinta seca.

Honestamente, não me importo que pisem em mim. Que me usem, que me magoem, que me descartem. Tenho utilidade, logo existo, é essa a minha filosofia. Assim como qualquer ferramenta, tenho vida útil e não me

importo em ser descartado quando excedê-la. Mas tenho meus limites. Limites que abomino, mas não ouso conter. Conter seja lá o que estou sentindo seria tão injusto... Se bem que injusto é uma palavra que define bem a situação em que estamos, não acha? Nem estou falando sobre você defender tanto o esforço mesmo tendo herdado a firma do seu pai. Digo, você não quer me pagar. 

Já terminou, moleque?

Will dá um longo suspiro.

Você não é um bom patrão.

Will puxa lentamente a faca da manga de seu blusão e em alguns passos silenciosos, já está próximo do velho. Antes que ele vire totalmente, o pintor crava a lâmina em sua pança de cerveja, manchando a área ao redor de onde a faca penetrou, tingindo um círculo vermelho em sua camisa social branca. Quando puxou a faca, o sangue jorra de maneira vigorosa, sujando Will totalmente de vermelho. O velho cai de olhos arregalados, murmurando coisas incompreensíveis. Quando deita estirado no chão, os óculos, que sempre posam em sua testa, finalmente cobrem os olhos. Mesmo com o Patrão caído, Will não para sua saraivada de facadas, sentindo-se eufórico à medida que a faca vai e vem, penetrando a pele enrugada, transformando o velho em uma peneira de tantos furos. Olhos, boca, pescoço, peito, virilha... Will atingiu tantos pontos que, ao redor do cadáver, havia uma poça de sangue.

Satisfeito, Will pegou toda a sua tralha e atirou dentro do balde. O rolo, preso ao cabo de vassoura, ele levou assim mesmo, apoiando o cabo no ombro.

Saiu do apartamento, incomodado pela luz forte do sol que atinge seus olhos acostumados com o escuro, e caminhou tranquilamente. Carregando consigo sua parafernália de pintor, ninguém que lhe viu imaginou que suas roupas estavam manchadas de sangue.



Conto escrito por
Leonardo de Almeida

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Gisela Peçanha Paulo Mendes Guerreiro Filho Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado Telma Marya

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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