3x01 - Antônio
de Mayanna Velame
Amasso o cigarro contra o cinzeiro. Suspiro e Antônio acompanha
cada movimento que realizo. Sobre a mesa central da sala: caixas de papelão com
livros, discos dos Beatles e um rádio à pilha. Preciso ordenar tudo nas
prateleiras, que um dia foram fixadas por mim. Antônio, bem que poderia me
ajudar a retirar esses objetos. Assim, juntos estaríamos organizando em nosso
coração, a saudade que Ana Bela nos deixou.
Ana Bela me faz falta e eu ainda posso ver seu rosto,
delineado nos enormes e amendoados olhos
de Antônio. Por mais que eu o ignore, ele é tudo que tenho. E nessa casa, entre
paredes e concretos, ainda ouço os passos sossegados, de quem um dia amei.
Antônio é a herança que Ana Bela me agraciou. E por ela,
farei aquilo que me pediu: “Flávio, ame o Antônio.” No silêncio que se
dissipa, ao som das marteladas que dou contra os pregos. Antônio parece
desconfiar da minha boa vontade. Aliás, devo dizer que durante algum tempo: eu,
Ana Bela e Antônio formamos um triângulo amoroso, calculado em equivalente
ciúme.
Se Antônio chorasse, Ana Bela cancelava o cinema, mesmo com
os ingressos já garantidos. Nas viagens de fim de semana, Antônio era presença
confirmada. Jamais, ele dormia sozinho. Entre Ana Bela e eu, lá estava o
intruso, sucumbindo minhas últimas parcelas de paciência.
Durante algum período, precisei fingir que possuía alguma
afinidade com Antônio. De vez em quando, levava-o para passear, embora pouco me
obedecesse. Se eu lhe fazia um agrado, da sua parte, não havia qualquer
recíproca.
Houve uma manhã, que encontrei todos meus escritos
espalhados sobre o tapete. Canetas de um lado, papéis de outro. Enfurecido,
jorrei todo tipo de infortúnio sobre
Antônio. Ana Bela censurou-me e fiquei alguns dias sem poder vê-la.
Antônio como sempre fora o culpado. Tirou-me Ana Bela e o
meu juízo. Confesso que inúmeras vezes tentei perdoá-lo. Mas era inviável
competir a atenção de Ana Bela com ele. Rodeando nossas sombras, Antônio com
seu jeito turrão, não me dava trégua. E
sempre que eu arriscava um beijo ou um
abraço mais prolongado. Antônio antecipava seu corpo — como um muro a impedir a invasão do meu amor.
Agora, Antônio e eu atuamos na diplomacia de conciliar
nossas personalidades. Ana Bela aonde quer que esteja, não merece assistir à
nossa discórdia. Não sei que condição de sentimento, Antônio sustenta por mim.
Talvez, ele me entenda como um homem sisudo e insosso. Eu bem que dramatizo
alguns momentos de irmandade com ele. Mas Antônio é resistente igual a um
touro.
Para afugentar qualquer desconfiança que tenha. Apanho uma pequena bola de plástico, perdida entre meus sapatos encaixotados. Faço uma contagem regressiva e lanço o objeto redondo no ar. A bolinha quica várias vezes no chão. Com as pupilas trepidadas, Antônio apenas a contempla, sem sair do sofá.
***
Não irei negar. De início, quando Ana Bela me apresentou
você, senti uma inevitável repulsa. Essa tua feição sempre séria, de nada
combinava com a delicadeza de Ana Bela. Flávio, você sempre foi um cidadão
muito centrado. Busquei tanto me integrar ao seu modo de ser. No entanto, teus
desejos sempre foram a tua literatura e Ana Bela.
Concordo contigo, cheguei à vida de Ana Bela bem depois de
ti. Porém, ela me adotou, dedicou sua afeição para uma criatura já
desacreditada como eu. É óbvio que eu
almejava Ana Bela somente para mim. Seu afeto era único e o nome do meu batismo
foi seu maior presente.
Em minha presunção,
não havia como dividir Ana Bela com você. Contudo, ela também te amava e todos
os dias, eu me tornava confidente desse amor. Quando se encontrava desapontada,
por algum motivo banal, Ana Bela sabia que entre as estrelas e a razão de
existir. O amanhã novamente surgiria com você. E tudo voltaria à normalidade,
predestinada para aqueles que se amam.
“ Antônio, o amor é isso: desassossego...”
Ana Bela tinha um fascínio pelo seu sorriso. Perdi as
contas, de quantas vezes eu a flagrei, admirando você, nas capas de revista e
suplementos literários. Por isso, insisto em te dizer, não sejas injusto com Ana Bela. Ela foi feliz
com você e comigo também. Portanto,
peço-te, não podemos desistir da gratidão de tê-la conhecido.
Perder um grande amor
é como perder um sonho. Ana Bela aqui já não mora e até hoje, ainda não me
adaptei com a ausência de seus cuidados.
Reservo comigo o tom da sua voz, o lençol arrumado sobre a cama e o
beijo de boa noite. Sigo triste a saber de como tudo se desfez, numa fração de
dias.
Perto de partir, Ana Bela
não era mais a mesma. Uma fragilidade inexplicável foi diminuindo toda a
luz, da mulher que logo pela manhã, corria comigo pelo jardim da casa. Ana Bela
já não resistia aos seus próprios passos, não possuía mais ritmo em viver.
Algo estranho nos
rodeava, enquanto na tv, noticiários informavam a chegada de um vírus letal. Ao
meu lado, Ana Bela desfalecia e na semana seguinte, seu rosto sardento
mostrava-se protegido por uma máscara de pano. Você, Flávio chorava e, impossibilitado, não podia
abraçá-la. Em desalento, presenciou de longe, Ana Bela sendo levada para
sempre, no carro da ambulância.
Sozinho permaneci, e você, Flávio ficou dias sem me visitar.
Graças aos vizinhos, mantive minhas refeições diárias. Com seu retorno, posso
te reencontrar exausto e pensativo, com
o fardo que se chama Antônio.
No fim de tudo, sou uma criatura amável. Embora, eu tenha minhas queixas para com você. Qual o problema de eu me deitar no sofá? Será que você me enxerga como um ser asqueroso? Ah, Flávio! Eu, Antônio, tenho o devido direito de tomar café com você! Não entendo a razão de tanta resistência comigo...Você também precisa zelar e ter respeito pelos meus sentimentos. Daqui dessa casa, eu não saio! Ana Bela haveria de viver aqui. E em nome de sua memória, irei preservar tudo aquilo que ela fazia por mim. Aceite você ou não!
***
Uma língua úmida permeia entre os dedos adormecidos de
Flávio. Aos poucos, ele acorda e seus olhos ainda baixos, percebem a presença
de um ser peludo, erguido e sustentado pelas suas duas patinhas traseiras.
Flávio reconhece a cabecinha de pelugem crespa e cinzenta. Com um sorriso
comedido, simula uma seriedade não vigente. Por outro lado, Antônio solta um
latido amistoso e abana seu rabinho em busca de afago. Homem e cão se
reconhecem neste momento. Como se cada um, projetasse um no outro, a mais
sincera e única necessidade de encontrar, o que ainda resiste ao tempo, o
amor.
CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Gisela Peçanha
Paulo Mendes Guerreiro Filho
Rossidê Rodrigues Machado
Telma Marya
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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