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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 5x04

Conto de Carlos Henrique dos Santos
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Sinopse: A história de um jovem que ao completar 18 anos descobre que faz parte de uma família de matadores de aluguel ligados a uma organização misteriosa chamada A Dinastia.

5x04 - A Dinastia
de Carlos Henrique dos Santos

    O tiro ecoou no interior da igreja, assustando os pombos e os primeiros fiéis que chegavam para a missa da manhã de domingo. 

***

   O que deveria ser um dia feliz acabou sendo o pior dia da vida de Caio. Ao completar dezoito anos, o jovem recebeu duas notícias, ambas ruins. A primeira foi descobrir que o pai era um assassino profissional e que fazia parte de uma dinastia em que todos os integrantes eram matadores. A segunda foi saber que tal posto era herdado diretamente de alguém da família, não sendo possível se desvincular desse fato. Havendo uma recusa por parte do herdeiro da vez, tanto este quanto os demais familiares seriam exterminados, já que A Dinastia constituía um grupo forte, íntegro e homogêneo e não seria abalado ou desfeito pela mera recusa de um novo integrante, fosse quem fosse.

   Agora cabia a ele assumir seu lugar na organização. Seu pai não deu detalhes sobre a origem do grupo como também não explicou os motivos que levaram Alencar, o tataravô de Caio, a entrar para A Dinastia. Mas ficou claro para o rapaz que a aura de mistério era um ponto importante na identidade da organização e que apenas com o tempo, talvez, recebesse mais informações. Junto das notícias, Caio ganhou de presente uma bela caixa de madeira. Trazia desenhado em alto relevo o emblema AD, de A Dinastia, adornado por pequenas pedras preciosas. Ao abri-la era possível ver alguns desenhos de diferentes tipos de armas, indo desde facas e machados até revólveres e fuzis. Compunha ainda seu interior trinta fileiras de pequenos arquivos. Eram os exercícios obrigatórios, como o pai de Caio explicou, ou seja, cada ficha daquelas mostrava um desafio que o herdeiro deveria cumprir para se tornar um verdadeiro assassino profissional. Inicialmente o jovem sorriu imaginando que tudo não passava de uma brincadeira. Algo semelhante ao trote que vivenciou há poucas semanas ao entrar na faculdade. Entretanto, o pai prontamente o repreendeu, dizendo que ele deveria ter mais deferência. Caio ficou quieto, afinal, era preciso respeitar as cinco gerações dentro do seu clã que honravam A Dinastia, pois a partir de agora caberia a ele dar mais um passo nessa história. 

   Passou a conhecer um pouco melhor quem eram seus antepassados, descobriu que viviam vidas de fachada, não sendo na prática advogados e sim matadores. Soube que todos os bens que possuíam foram conquistados através das diversas mortes por encomenda praticadas ao longo do último século e que, por isso, deveria terminar sua faculdade de Direito, mantendo assim a tradição e mascarando a imagem em torno do nome da família; trabalhar no escritório Alencar & cia, fundado por seu tataravô, além de cumprir as tarefas elencadas na caixa que recebera de presente. Isto é, ao longo dos próximos trinta anos, deveria, além das encomendas que recebesse diretamente da alta cúpula d’A Dinastia, executar todas os serviços indicados no catálogo recebido. Para isso, se fazia necessário assassinar anualmente uma vítima específica, pois dessa forma a organização se consolidava como uma das principais no ramo de matadores de aluguel do país.

   Dando um beijo na testa do filho, o pai se retirou. Alegou que seria importante o jovem descansar um pouco enquanto lidava com toda aquela informação. Sozinho no quarto Caio tentou dormir e não conseguiu. Eram novidades demais caindo com força sobre ele. Sentiu como se estivesse em uma tempestade dessas de verão que chegam sem aviso prévio, o deixando totalmente encharcado. Mais do que novidades, eram questões um tanto absurdas entrando abruptamente em sua vida. Não bastasse a ideia de maioridade e a possibilidade de se tornar universitário e viver uma vida nova longe de casa (a faculdade onde pretendia estudar ficava em outra cidade e ele teria com isso todo um mundo a descobrir), agora ficara sabendo que era membro de um clã de assassinos que mantinha fortes laços com um grupo obscuro chamado A Dinastia. Nem um filme policial, dos que Caio tanto gostava de assistir com o avô, seria capaz de surpreendê-lo tanto. Com um misto de curiosidade e receio pegou a caixa e se pôs a manusear os arquivos: ator, banqueiro, contador, dona de casa, engenheiro... assim iniciava-se a listagem das suas vítimas futuras. Organizadas em ordem alfabética, ela enumerava uma série de profissões. As trinta fichas vinham ordenadas pelas vinte e seis letras do alfabeto, finalizando com zelador. Em seguida apareciam quatro novas, estas eram de cores diferentes, possuíam o AD em destaque, como uma marca d’água, e não indicavam uma profissão mas traziam um pequeno texto: “O verdadeiro assassino deve ser capaz de matar com total consciência. “Penso, logo atiro” deve ser seu lema. Não é permitido sentimentalismo, por isso, os quatro crimes finais são os mais emblemáticos e somente a sua execução dará ao candidato a honraria de ser um membro permanente d’A Dinastia.” Após o texto cada cartão apresentava uma nova frase, na seguinte ordem: 27- seduza e mate. 28- alguém próximo deve pagar pelos erros cometido no passado. 29- nenhuma família é perfeita. 30- não há deus, não há pecado e padres são perversos.

   Caio não sabia mais o que pensar. Fechou a caixa com força e chorou convulsivamente. Lágrimas escorriam por sua face, queria gritar mas sabia que não deveria chamar a atenção do pai. Pensou em rezar, pois mesmo não sendo devoto era um jovem que acreditava em Deus e às vezes acompanhava a mãe à igreja para assistir as missas matinais de domingo, porém desistiu, sentia-se mal, perdido e sem capacidade de se concentrar numa oração, por mais simples que fosse. A última ficha o deixou atônito. Sentia náuseas, uma dor revirou seu estômago, pensou que ia vomitar. Se controlou, foi até a janela e a abriu. Fechou os olhos, sentiu o vento frio entrar, se arrepiou, respirou fundo e desejou que o tempo passasse o mais rápido possível ao longo dos próximos trinta anos.

E o tempo passou, veloz. Frente ao espelho do banheiro, Caio via refletida sua face séria, talvez aquela que menos gostasse e admirasse nele mesmo. Já no espelho da razão de Caio havia um misto de reflexão e angústia, de dor e ódio, de amargura e incompreensão. Aos quarenta e oito anos era um homem silencioso, de poucos amigos, solteiro, sem filhos e que morava sozinho num bairro de periferia. Mantinha-se afastado dos poucos familiares que restavam: duas tias e algumas primas. Seu pai e avô já haviam morrido, o que fez dele um homem ainda mais amargurado, porque agora detinha sozinho o segredo familiar. A Dinastia talvez fosse o que possuísse de mais seu e isso só fazia aumentar sua aflição. Desde seu aniversário de dezoito anos convivia com o peso de saber que era parte de algo atroz e desumano. De início aceitou ser da organização com medo das represálias que a família poderia sofrer. Chegou mesmo a contestar todo o poder d’A Dinastia se recusando a cometer seu primeiro assassinato. Mas bastou dizer isso para receber um tapa no rosto e ter apontada uma arma para a cabeça pelo próprio pai. E naquele momento o jovem pôde ver nos olhos de seu genitor algo que nunca vira. Sentiu um calafrio percorrendo todo o corpo com a certeza de que nada o impediria de puxar aquele gatilho se Caio não cumprisse com o destino que lhe fora reservado. 

   Então Caio matou. Seguiu à risca as indicações da caixa com os crimes do papai, como ele dizia em tom irônico para si mesmo toda vez que precisava, ano após ano, cumprir com aquelas obrigações. Mas agora ele se sentia muito cansado. Fazia menos de um ano seu pai falecera e desde então Caio percebia como viveu toda a vida perdido dentro da própria solidão. 

   Agora estava ali, entrando na igreja prestes a executar seu último ato para, enfim, se ver livre d’A Dinastia depois de três décadas. Toda sua existência foi uma fuga em direção ao futuro, caminhava para a frente querendo na verdade dar um passo atrás, retornando assim para seus dezessete anos. Só que isso não era possível, então Caio decidiu se vingar. Se não teve a chance de viver a própria vida com liberdade, podendo fazer escolhas autônomas, A Dinastia também não viveria mais em sua família e por isso não casou, não teve filhos e não transmitiu a ninguém o legado da sua miséria. Agora seria o ponto final, não haveria mais continuidade para aquele fluxo insano de sangue sendo derramado em vão, seu tataravô não deveria ter feito o que fez, prendendo seus descendentes à Dinastia e Caio encerraria esse ciclo. Chegou cedo à igreja, procurou o padre alegando urgência, sentou no confessionário, pediu perdão e, antes mesmo que o clérigo dissesse algo, um tiro ecoou no interior da igreja assustando os pombos e os primeiros fiéis que chegavam para a missa da manhã de domingo.


Conto escrito por
Carlos Henrique dos Santos

Desenho
Gilberto Belotti

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Gisela Peçanha Paulo Mendes Guerreiro Filho Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado Telma Marya

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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