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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 5x06

Conto de Baby Blue
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Sinopse: Karen enfrenta um visitante misterioso enquanto reflete sobre seu casamento com Guto. O encontro toma um rumo inesperado, levando Karen a uma decisão desesperadora para proteger sua família. Uma narrativa intensa que explora segredos sombrios e a força do amor materno diante de ameaças iminentes.

5x06 - Jogo Sujo ou Amor?
de Baby Blue

— Acho que um cafezinho agora, seria ótimo —  disse abrindo um enorme 

sorriso que transparecia sonsice e um hálito sujo.

— Claro, faço num instante.

Ela se ergueu e seguiu em direção a cozinha. O calor era tamanho que sentia quase que o corpo inteiro imerso em suor, de modo que se sentia uma babosa atravessada por longos cortes, escorrendo sua interminável baba. Isso lhe provocava um desconforto descomunal ao andar, pensando sempre no que o sujeito poderia pensar dela. A blusa ainda por cima era branca e enormes manchas escapavam aos olhos do visitante.

Homem estranho. E não era só sua aparência de maníaco, todo desarrumado e amassado, mas também o seu olhar. Aquele olhar invocava um tremendo desconforto no peito, mesmo sem entender o porquê. Fosse um tom de malícia que se ocultava rapidamente ou uma dose de cinismo que se sobrepunha, aquele gesto lhe dava uma leve sensação de medo, como se estivesse em frente a um penhasco. Tentava se distrair de tais constatações de todo modo, até mesmo para que não cometesse o erro de transparecer esse tipo de pensamento. Porém, quando se virou, se pegou aflita ao lhe ver fitando-a quietamente, como uma espécie de câmera humana, e, felizmente, conseguiu reter qualquer amostra de surpresa.

Apanhou uma chaleira em um gesto rápido e logo a encheu dentro da pia.

— Se a senhora não se incomodar, eu prefiro com água filtrada.

 Ela parou sem saber muito bem o que responder. Como podia ser tão folgado dessa forma? Guto não tinha paciência com ninguém, nem com os próprios filhos, imagina com um tipo cheio de coisas como aquele. Qualquer bobagem já fazia o marido congelar o olhar... numa expressão dura, como quem coloca uma faca sobre a mesa... talvez... não, não. Exagero seu. Guto não era como esses favelados que passavam no jornal toda hora, matando esposa por isso, matando namorada por aquilo, não, de forma alguma. Ela tinha sorte. Guto era um homem instruído, inteligente, formado em advocacia pela melhor faculdade de Pernambuco. Se tinha um defeito ou coisa do tipo, era apenas ter esse seu jeito sisudo de homem sério, importante, que às vezes poderia soar como... outra coisa. Mas apenas soar.

— O senhor não sabe que a água quando ferve mata qualquer coisa?—  atou o quanto pode um certo sarcasmo. Não poderia ser grossa com uma visita e ainda por cima, um amigo de Guto. Isso não era papel de mulher séria.

— Mas sabe a senhora, que eu não gosto de água de torneira, é por causa do gosto de cloro... a senhora não sente? — mais uma vez abriu aquele sorriso... tão repleto de dentes, tão amarelo, numa espécie de transmissão forçada de simpatia.

— Sim... claro.

Não questionou. Abriu também um sorriso (muito mais contido, obviamente!) e se virou, despejando toda a água na pia. Se movendo ao filtro, começou a encher de novo a chaleira, num processo lento. E lentidão era tudo o que queria evitar.

Onde será que estava Guto que não chegava de jeito nenhum? Será que tinha apanhado as crianças na escola ou teria acontecido alguma coisa no caminho que o atrasara? Não, bobagem sua. Claro que ele buscara. Guto podia ser um homem um pouco, como podia dizer? Ocupado, talvez... sim, um homem muito ocupado, como de praxe todos os homens sérios como Guto eram, mas era um homem pontual. Sistemático. Sabia que no fundo, apesar de tudo, amava os filhos mais do que qualquer coisa. Se preocupava sempre com a rotina das crianças. Sempre perguntava da escola, cobrava boas notas, exigia o caderno todos os dias; vez e outra, nos fins de semana, levava-os à Cambury, um bairro pequeno no litoral norte de São Paulo, como uma forma de recompensá-los (as crianças e a ela mesma). Uma praia tão linda! Aconchegante. Fora os almoços em Maresias (outro bairro litorâneo, vizinho a Boiçucanga), cheio de pratos exóticos, cheios de camadas e texturas, sentia-se a própria Mumtaz Mahal... ou quase isso. Mesmo em casa, a alimentação dos meninos era sempre prioridade.

— Karen, cadê a comida dessas crianças? Você não tá vendo que elas tão morrendo de fome? Não param quietas! Porra, eu trabalho o dia inteiro pra encher essa merda de casa de comida. A sua única obrigação é fazê-la... o que te custa, Karen?! O QUE TE CUSTA?!

A água começou a ferver. O sujeito continuava a pressionando com aquele olhar cheio de calma, uma calma quase que de cobra.

— Já estou quase terminando.

— Eu sei... estou vendo passo-a-passo. — Sua voz arrastada se desfez lentamente em mais um de seus malditos sorrisos. Porém, esse tinha em seu tom, algo que atravessou o corpo de Karen em um arrepio. Era um estranho sorriso de certeza.

Dessa vez não conseguiu nem mesmo disfarçar qualquer reação de desconforto. Colocou o pó no coador e o coador na garrafa térmica. Então, apagou a boca do fogão e derramou lentamente a água quente sobre o café.

Onde Guto arrumou aquele homem? De onde o conhecia? Nunca nem tinha ouvido falar nele em todos esses anos. Será que... será que era algum tarado? Um bandido disfarçado? Um estuprador? Se pensasse bem, faria todo sentido. Descobrir o nome dos donos da casa, estudá-los, depois passar-se de amigo do marido, entrar na casa quando nem ele nem as crianças estivessem... ela ali, sozinha, pronta para ser atacada. Quantos casos ouvia todos os dias na TV de coisas parecidas... ou até piores?

Apanhou duas xícaras e começou a servir o café.

— Eu prefiro sem açúcar.

— Tudo bem — ela murmurou, pensando ainda naquela ideia que começava a se formar em sua cabeça. O que faria se ele fosse mesmo um bandido? Não poderia ficar simplesmente parada. Esperando o perigo vir até si como um cão furioso, sem quem o contivesse. Sentia que sua casa, sua família... sua vida tinha urgência de alguma atitude. 

Antes de pegar as xícaras, escondeu uma faca no fundo do bolso da calça jeans. 

— Espero que o senhor goste. Sabe como é né? Café cada um toma a seu modo.

— Não tenho dessas. Pra mim, uma coisa é uma coisa...

Dessa vez foi sua hora de amarrar um sorriso à face.

— Se o senhor não se incomoda, preciso fazer uma ligação....

— É, realmente, o Guto tem mania de fazer isso...

Foi naquele momento que ela teve certeza de que aquele homem não fazia a mínima ideia de quem se tratava do seu marido. Guto nunca se atrasara na vida. Era meticuloso, gostava de tudo ao seu modo. Até por isso mandara construir aquela casa naquele lugar, daquela forma, justamente para não ter vizinho algum e nenhum problema que pudesse florescer em decorrência disso. Ele podia pagar pelo que quisesse, inclusive por sua paz.

— Não é pro Guto não. Já estou acostumada com isso.

Mais uma vez, o sujeito abriu o sorriso repugnante.

Ela então foi em direção ao quarto deles, no fim da casa. Entrou, trancou a porta e pegou o celular. Fez a senha e foi até o telefone. O plano era simples, apenas manter-se segura, ligar para polícia, depois rapidamente ligar para Guto para que não viesse de forma alguma com as crianças, para que as mantivesse em segurança. Pela primeira vez, experimentava uma sensação de protagonismo, de importância. Não gostava de admitir, mas no fundo do fundo de seu peito... odiava Guto. Odiava quieta, um ódio escondido por precau... não, por segurança, um ódio escondido para que houvesse paz na casa. Para que os seus filhos pudessem ter paz. E por mais que ficasse calada, dia após dia, aquele ódio ainda estava ali. Toda hora era fartamente alimentado, como um javali sedento de fome. Sempre que ele a chamava de burra, sempre que ele a diminuía na frente dos outros, em especial de seus filhos, falando sobre sua origem, de seu deslumbramento com a vida digna. Com comida, com água, com cama, com... com o que mesmo, meu Deus? Onde estava a dignidade naquilo tudo? Qual era o preço de tudo aquilo? Sempre que ele podia fazia questão de jogar na sua cara que todo o dinheiro vinha dele, que ela tinha sorte de estar com ele, de aguentá-lo. Aquilo doía tanto, mas tanto... e doía porque ela realmente o amava. Mesmo com todo ódio, com toda tristeza, ele era o pai de seus filhos. Era o homem que a fizera completar os estudos, que lhe cedera um novo horizonte de vida... por isso calava, por isso ouvia, por isso era grata. E em sua gratidão, eterna prisioneira.

O celular de repente começou a tocar. Ela se assustou, mas logo leu o nome de Guto.

— Alô?

— Karen, O Marco Antônio já chegou?

— Como assim?

— Tá surda? O Marco Antônio, meu amigo, já chegou?

— Sim... ele está lá na sala, passei um cafezinho agora pra ele...

— Ótimo, mas não deixe sozinho, não seja mal-educada. Lhe sirva algo de comer, deixe-o à vontade. Já peguei as crianças, mas tô parado no meio desse trânsito maldito. Deve ter sido um desses motoqueiros...

— Poxa, Amor...

— Quando eu estiver chegando te aviso, até lá não o deixe só.

— Tá bom...

Desligou. No fim das contas tinha mais uma vez se precipitado. Mais uma vez fizera papel de idiota, de imbecil. Sabe, bem que queria que esse tal de Marco Antônio fosse um bandido, pelo menos assim, não teria que aguentar a sua presença incômoda. Como, meu Deus, pudera ser tão paranoica? Tá... Paranoia não; não ousava pensar desse modo. Sabia muito bem que ser mulher implicava em sempre estar atenta.

Guto nem perguntara como ela estava, nada. Deus, quantos anos faziam que ele não conseguia mais dissimular alguma preocupação por ela? Ela, sua própria esposa. Às vezes pensava, quieta, longe de todos, se ele realmente pensava nela. Era a mãe que cuidava dos seus filhos, era a cadela na cama que lhe fazia as vontades, era a dona de casa que prezava sempre para que tudo estivesse limpo, em ordem, era tanta coisa junta, que nem mais sabia se ainda era esposa. Mesmo nas poucas vezes que ainda transavam ele sempre exigia, louco, tomado de vontade:

— Diz que você é minha, vai, sua putinha, diz pra mim!!

E ela tão confusa, tão desesperada, grunhia que sim, era dele e apenas dele. Desse jeito logo acabava. Ele se partia no auge de seu prazer solitário e tombava do outro lado da cama, dormindo tal qual uma criança. Ela não. Permanecia olhando o teto, pensando a vida, pensando o que era.

E a vida, a essa altura, já era tela desbotada. Os dias passavam e de tão iguais, pareciam um só. Um longo dia que não tinha fim. O que ainda a afugentava de sua solidão eram os filhos. Sempre que podia, interrompia sua eterna faxina e os levava à praça (todos entorpecidos de alegria). João, por ser menino e por ser um pouco maior, era o mais atrevido. Se pendurava nos brinquedos, desafiava meninos maiores e logo os cativava com amizade. Era um menino esperto, percebia as coisas com facilidade, até mesmo o que não compreendia. Vez e outra vinha até a mãe e questionava seu olhar úmido. Ela disfarçava, o distraía, mas guardava o carinho do filho consigo, como se portasse o mais valioso dos tesouros. Fisicamente era igual a Guto, os olhos levemente puxados, a pele mais esbranquiçada, as covinhas nas costas, os calcanhares finos. Sempre gostava de pensar que, se por um lado, a aparência, a inteligência tinham sido bons frutos vindos do pai, por outro, ele tinha o seu coração. Aninha já era mais contida, mais inocente. Curiosa, perguntava tudo à mãe, disfarçando com vergonha o seu desconhecimento. Karen se via muito na filha. Tanto nas características que compunham aquele pequeno corpo, quanto seu jeito sempre meigo de rir, seu jeito de andar, seu jeito de brincar e até o medo de interagir com outras crianças.

E foi junto com os filhos que o conheceu. Estava num banco ao lado, quieto mexendo no celular e fumando um cigarro. Era um rapaz bonito, moreno, cabelo Black, não deveria ter mais do que 25 anos. Estava com uma roupa simples que destacava o corpo forte que tinha, quase de atleta.

O observava enquanto as crianças brincavam de esconde-esconde. Tinha receio de que o moço a percebesse. Não conseguia deixar de prestar atenção naquela calma de passarinho, naquele corpo forte, tão cheio de curvas e músculos e veias e...

O que estava fazendo? Enlouquecera? Se Guto sonhasse com isso era capaz de sei lá o que. Tiraria as guardas das crianças, a humilharia na frente de todo mundo, como a mais suja das vadias! Isso se não a...

 E foi aí que ele a percebeu. Ficou louca de vergonha, de medo, mas o alvo de seus olhos, lhe correspondia com um sorriso. Ela não sabia o que fazer, então sorriu também, apenas seguindo o fluxo daquela inesperada interação. Depois foi aquela coisa: o sujeito se levantou e veio até seu lado. Muita descrição, muito cuidado, fazia perguntas tal qual uma pessoa que extrai das unhas uma farpa. “Posso sentar?”, “Qual o seu nome?”, “Aqueles são seus filhos?”. Ela sabia bem como corriam essas coisas. Foi quando perguntou se ela aceitava sair com ele, naquele mesmo dia. Não sabia como responder, mas não queria dizer não. O medo se manifestava a todo custo, lembrava dos filhos, lembrava de Guto. Ficou em silencio. Ele insistiu. “Vai! Vai ser rápido, prometo, não farei nada que você não queira” e sorriu. Um riso branco, limpo e por mais que exalasse a cigarro, ela já não sentia mais cheiro de nada. Desesperada, antes que o não se formasse na concha de sua língua, disse sim, quase que sem pensar. E naquele sim, saboreou um prazer indescritível, inchado de culpa, mas tão quente... o desejo preso na boca. Mandou uma mensagem para a mãe para ter certeza do encontro. Pela primeira vez em anos, se dava ao luxo do absurdo.

A mãe consentiu e então marcaram o horário. Às 15:00, em um lugar reservado a umas três ruas dali. E assim foi.

Deixando as crianças na casa da mãe, foi para casa se enfeitar. Havia algo que amargava seu futuro encontro, um remorso intruso, bobo, que ainda persistia em sua mente. Guto podia ser uma pessoa difícil às vezes, mas sabia que era uma boa pessoa; era um bom profissional, um bom pai, um bom filho, um bom amigo... por que aquilo não se estendia a ela? Por que essa bondade só lhe vinha através de migalhas, em beijos mornos, presentes caros...? controle, só podia ser. Se a beijava, não era por amor, nem mesmo por desejo, era apenas uma forma de afirmar sua posse sobre ela; se lhe presenteava ou se preocupava com sua aparência, era apenas uma forma de lhe garantir algum valor. Pagava as unhas, o cabelo, as roupas, e uma ou outra maquiagem como se... como se fizesse a manutenção de seu carro.

Sem mais nem menos, foi. Desta vez não era caça, mas caçador. Chegou no restaurante e logo viu-o na primeira mesa. Antes de sentar-se...

— Você está bem?

Na voz áspera e fria de seu visitante, despertou das lembranças, que, até aquele momento, a haviam resguardado daquela companhia desagradável. 

— Oi, seu Marco Antônio, mil perdões - destrancou a porta – Estava no telefone com Guto agora pouco... acabei perdendo a noção do tempo.

— Magina, não tem problema. E então, o que ele disse?

— Disse que tá o maior trânsito por lá, mas que a qualquer momento chega!

Marco Antônio prendia nela um olhar incômodo, quase como se quisesse a constranger. Ela não soube como reagir, apenas sentiu necessidade de sair daquele quarto, de se afastar daquela figura estranha e se ocupar o mais rápido, enquanto a falta do marido não se encerrava de uma vez.

Porém, ao primeiro passo que deu em direção a porta, a passagem foi agilmente bloqueada pelo desconhecido. Não conseguia conter aquele aspecto ingênuo, cortês e tolo que no papel de esposa desde sempre se fez necessário. Quantas vezes fora a mesma cena, a mesma situação, onde abaixar a cabeça não era nem de longe uma escolha e sim uma obrigação e ao invés de expor o que pensava e o que sentia verdadeiramente, colava ao rosto um sorriso tolo que no lugar das palavras, se fazia resposta a qualquer coisa.

— O senhor pode me dar licença? - sua voz se erguia sem rispidez nem hostilidade; entretanto, guardava em si uma firmeza que até o momento, era inexistente.

— Engraçado, achei que o teu tipo adorava ficar metida num quarto.

Não respondeu. Fechou o semblante tentando manter alguma proteção a sua dignidade e atravessou a porta com a rapidez e a agilidade de uma gueixa, seguindo seu caminhar, sem olhar para trás, sem conseguir digerir aquela fala que ainda se repetia em espiral em sua cabeça.

— Agora eu entendi... é que eu não sou crioulo, né, dona?

Seu corpo inteiro gelou. O homem agarrou-a por trás, amassando seus seios com as mãos ásperas e famintas. Com voracidade, elas correram até o seu pescoço. Lágrimas encheram seus olhos e logo se desfizeram quando ele a atirou no chão, de volta ao quarto.  Tudo era rápido e mesmo confusa e tonta, tentou se erguer na perna da cama. Ele fechou a porta e veio em sua direção. Antes mesmo que ela recuasse, o murro rompeu o ar e acertou seu nariz, a tombando, mais uma vez, no chão. Sem força alguma, ela sentia o estranho montando por cima de seu corpo, botando os joelhos contra sua barriga.

— Nesse tipo de serviço, eu gosto das vagabundas assim que nem você. A gente ganha a mais e faz o que bem entender – riu seu riso grunhido de porco. Aquele homem era seu carrasco. Seu marido tinha sido seu juiz e não havia advogado ou qualquer instância a recorrer. O seu crime? O seu crime era ter desejo... ou talvez, lá no fundo, seu real e imperdoável crime era ser mulher. Mas que raios era ser mulher? Uma pessoa sem vontades, sem escolhas, operárias sem descanso? Eram pessoas? Se até os bichos amavam, se até as crianças tinham revolta, por que ela tinha que passa...

Outro murro recaiu sobre sua face. O rosto era só sangue, encharcando suas roupas e lavando o chão. Nariz estourado, olhos inchados, vista turva. A barriga já não doía, sentia-a dormente, contudo tinha ainda mais dificuldade pra respirar e um refluxo profundo. O quarto, um quadrado azul que em sua tontura rodopiava num eterno giro, como se estivesse bêbada. 

A faca...

Precisava de força e precisava ser precisa. Precisava o distrair de qualquer modo. Como poderia?  Se o mordesse era capaz de morrer sufocada com o sangue do nariz, se não morresse antes, engasgada com o próprio vômito.  Não tinha como. Precisava de uma chance inteira para si. Ele ergueu os braços, levando as mãos mais uma vez ao encontro de seu pescoço, saboreando com os dedos, a fragilidade da sua pele. Olhava para ela como se visse uma barata morrendo, tonta de inseticida. Ali estava! Tirou a faca e a enfiou quase que inteira na barriga dele, com toda força e energia que lhe restara. 

Ela já não era vítima. Com a vida do algoz nas mãos, era uma amazona! Para ter certeza, torceu a faca, enquanto o pobre animal derrotado se contorcia de dor. Seus olhos traziam tristeza na surpresa de que ela, há um instante entregue ao próprio fim, lhe reservara algo a mais além de uma simples presa. “Mulher esperta é cria do diabo” pôde ouvi-lo murmurar. Sua boca afrouxou e então o fino gemido que ainda emitia se tornou silêncio e seu corpo caiu por cima dela.

Com dificuldade, moveu o peso do sujeito para o lado e se arrastou até o banheiro do quarto. Se apoiando na pia, se ergueu em frente ao espelho e pode ver o rosto completamente ensanguentado e inchado. Não se reconheceu. Antes de abrir a torneira, as lágrimas já corriam pela face, traçando linhas no sangue já seco. Com muita, mas muita dor, lavou o rosto. Chorava e já não era a dor que consumia o rosto e o resto do corpo, nem qualquer rastro de vaidade confrontado com seu rosto desfigurado. Chorava de alívio. E por mais que um peso ainda empedrasse seu peito, o prazer de se reconhecer viva, sobrepunha todas as outras dores, físicas e mentais.

Agora, a única coisa que queria eram seus filhos, pois sabia que com eles ninguém poderia a partir ao meio. O amor é dessas fontes de energia sustentáveis que não se acabam e fazem florescer até em terra maldita, a mais bela e destemida das rosas.


Conto escrito por
Baby Blue

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Gisela Peçanha Paulo Mendes Guerreiro Filho Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado Telma Marya

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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