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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 5x07

Conto de Rafael Escurus
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Sinopse: Piu-piu é um menino que tem como referência o patrão do tráfico local. Até onde essa amizade poderá levá-lo?

5x07 - Mania Nacional
de Rafael Escurus

A corda de nylon verde apertava o pescoço peludo, enquanto um gemido engasgado fugia da boca escancarada e ia se apagando, aos poucos, junto com a sua vida. Piu-piu ficou ali, em pé. Uma satisfação, misturada com curiosidade, inundava seus olhos. Lembrou de quando era pequeno e encontrou o pai, naquela mesma posição, dentro do barraco. Nunca esqueceu aqueles dedos pretos de fuligem, os pés sujos, os dentes podres, a camiseta encardida. 

Quando cansou da contemplação, virou as costas e deixou o bichano pendurado naquele galho de cinamomo. Seu pelo preto, manchado de branco, mal era perceptível entre a vegetação.

O menino pulou a estreita vala cheia de lixo, que separava a área de mata do asfalto carcomido da vila Maricá, e se encaminhou para casa. Adentrou a rua mais próxima e logo teve seu passo interrompido.

- Olha o Piu-piu, aí!

Um alegre grupo de garotos, que talvez ele pudesse chamar de amigos, o abordou. Uma mão estendida lhe ofereceu um cigarro enrolado, fininho.

- Dá uns pega aí.

Aceitou a oferta e, em pouco tempo, já compartilhava a alegria fumegante do grupo. Se destacava no bando. Sua baixa estatura e compleição física disfarçava seus 16 anos, mas aparentava quatro a menos. A pele clara, tostada de sol, e o cabelo oxigenado inspiraram seu apelido. 

O mais chegado a ele, entre os meninos, era Maique. 

- Qual é Piu-iu, disseram que tu teve no colégio, hoje!

- Tive que ir, né. A coroa tava me enchendo o saco.

Maique acenou com a cabeça, demonstrando sua solidariedade para com a situação do amigo:

-Tá lôco… aquele professor otário, lá.

- O Rafael? Sim, baita otário. Tentou tomar meu celular.

- Ah, é? E tomou?

Piu-piu jogou a mão direita para cima, como se espantasse uma mosca.

- Claro que não, né. Não deixei.

- Mas por que ele queria teu celular?

- Ficou mordido porque eu tava vendo o vídeo do negão V8, junto com os guri.

O amigo arregalou os olhos.

- Pode crer! Eu vi esse vídeo! Tá lôco, o negão é boca-braba. Tu viu?

- Eu vi, esquartejou o cara, igual um frango, e jogou a cabeça pros cachorro...

 A conversa pairou no ar por um instante, tensa. Os dois pareciam preocupados com a implicação de tudo aquilo que acabavam de mencionar. Como se pensassem no infeliz que ganhou o mesmo fim que um peru de Natal, ou em quem seria o próximo a acabar do mesmo jeito.

Maique quebrou o silêncio depois de um tempo.

- Tá, o negão V8 quer trocar umas ideia contigo. 

- Comigo? Sérinho?

- Sérinho.

Piu-piu ficou pensativo por alguns segundos. Respirou fundo e se dirigiu ao amigo.

- Então, tá, depois dou uma banda lá. 

Os dois tocaram as mãos, em despedida. Depois, o menino de cabelo oxigenado se dirigiu aos demais.

- Falô, gurizada. É nóis.

- Pode crer, Piu-piu, vai pela sombra.

Desde que terminou o turno da manhã na EMEF Maricá, Piu-piu estava na rua, como quase sempre. Almoçou no refeitório da escola e foi perambular pela vila. Material escolar? Nenhum, só o celular que ganhara do atual patrão da biqueira, o negão V8. 

Após passar por um campinho de futebol, chegou a sua residência. A mãe estava na porta, tocando a poeira para fora com uma vassoura. Quando viu o filho, botou as mãos na cintura. 

- O que tá fazendo aqui a essa hora Uzias? 

- Não me chama desse nome!

- Tá, mas teu pai tá dormindo, ainda, e tu sabe que…

- Ele não é meu pai! Tô nem aí pra ele!

- Tá, mas espera ele sair, vem depois! Não quero briga, hoje.

O menino baixou a cabeça, parecia aceitar a ideia.

- Tá bom! Tá bom. Me dá um pão, pelo menos, que eu tô com fome.

A mulher ingressou na residência, deixando a porta aberta. Piu-piu pôde ver, lá no fundo da peça, uma árvore de Natal, pequena, com algumas poucas bolas prateadas. De repente, sua irmã caçula apareceu. Sorriu e abanou para ela.

- Oi Sarinha.

A menina devolveu o sorriso e respondeu o aceno, tímida. 

Encorajado, ele se aproximou dela. 

- E aí, Sarinha? O que tu pediu para o Papai Noel?

Ela juntou as mãozinhas nas costas e começou a balançar o corpo para os lados. Como se o movimento organizasse seu pensamento.

-Papai disse que só criança comportada ganha presente.

- É mesmo? E tu é comportada?

- Acho que sim!

Piu-piu sorriu e lembrou de quando diziam isso para ele. Comportando-se mal ou bem, o único presente que ganhara na vida fora aquele celular.

Mas, não pôde seguir com suas reflexões, pois sua mãe logo apareceu com o pão.

-Toma, teu pão com mortadela. Agora, vai! 

Agarrou o lanche e se despediu da mãe e irmã. Queria ficar um pouco mais, mas achou melhor não confrontar o padrasto, como lhe fora recomendado. 

Cruzou a esquina de casa e passou em frente a um minimercado. Um cartaz colado junto à entrada do estabelecimento exibia a publicidade de um refrigerante, onde a cor vermelha predominava. Nele, era possível ver um Papai Noel oferecendo uma garrafa do produto anunciado.

Mais duas quadras e chegou lá: a biqueira. Piu-piu falou com os homens que montavam guarda na frente do local: uma casa de alvenaria, de dois andares, pintada de verde. Eles falaram em um walk-talk e, logo depois, o garoto subiu a escada exterior que levava ao segundo piso.

Ao chegar à porta, ela se abriu quase que por mágica. Dentes brilhantes como um rolex de ouro surgiram do nada e ofuscaram a visão do garoto.

- Esse é o Piu-piu! Chega aí, mano!

Era o negão V8: um rapaz de corpo esguio, dois anos mais velho que ele, e, como o nome sugere, de pele negra. 

- Entra, cupincha, entra aí!

Meio acanhado, Piu-piu foi entrando. V8 se dirigiu a dois outros rapazes que estavam no recinto, sentados em um sofá bege. 

- Levanta aí, rapaziada. Levanta, que meu parça vai sentar aí, agora.

V8 e Piu-piu ocuparam o sofá. O móvel era de um tecido que imitava couro, com uma colcha de crochê branca servindo de capa. Piu-piu lembrou de ter visto uma daquelas na casa de sua avó. No centro da sala, uma mesinha de madeira escura. Sobre ela, um porta-retratos exibia uma família alegre. Um homem pardo e uma mulher loira. Entre os dois, um garoto de uns 13 anos.

Piu-piu conhecia aquela família. Ela havia sido expulsa dali a umas duas semanas. 

- Toma aí, sangue-bom! Experimenta esse fumo. Chegou hoje!

A mão direita de V8, suspensa no ar, segurava um cigarro de maconha aceso. Ela parecia impaciente em frente ao rosto do convidado. Piu-piu ficou olhando, por alguns instantes. Sua mente foi assaltada pelas imagens daquele vídeo. A mão de V8 segurando o facão, golpeando o pescoço do cadáver. Lembrou do som do osso partindo.

- Vai, cupincha! - Gritou V8. Os outros dois, que estavam em pé, riram:

- O feio já tá brisado, antes de fumar! - Gargalhadas ecoavam pela casa.

Um tanto sem graça, ele agarrou o cigarro. Quando tragou e prendeu a fumaça, uma tosse seca encheu seus olhos de água. Mais risadas inundaram o ambiente.

Animado, V8 deu um tapa no porta-retratos da mesinha de centro, jogando-o no chão. Em cima do móvel, começou a esticar uma carreira de pó branco. 

É isso aí, gurizada! Hoje é farinhada! É Natal antecipado!

Depois de formar quatro carreiras, V8 fez um canudinho com uma nota de cem reais e alcançou para o convidado.

- Que que tu pediu pro Papai Noel, Piu-piu? - Os dentes de V8 brilharam de novo.

Com os olhos pequenos e a voz picotada entre uma tosse e outra, ele respondeu: 

- Eu quero,,, uma mamãezinha…

A casa pareceu tremer com a explosão de gargalhadas que seguiu a resposta do pequeno garoto de cabelo oxigenado.

- É por isso que eu gosto desse meu cupincha! É por isso que eu gosto dele! - repetia V8, com socos no ar.

E a noite seguiu assim, em meio à risadas, fumaça, whisky, energético e cocaína. Piu-piu não sabia mais que horas eram. Ele nunca sabia, mesmo. Só via as horas quando estava na escola. Também não viu em que momento caiu no sono, não lembrava de nada.

Acordou com o som de pancadas. Tudo estava escuro, não conseguia nem ao menos ver que lugar era aquele. Forçou os olhos e reconheceu o sofá no qual ele e o negão V8 consumiram diversos tipos de entorpecentes. As pancadas não davam sossego. Se deu conta de que elas vinham da única fonte de luz do recinto: a porta da frente, que era feita de metal, com uma grande portinhola de vidro canelado que abrangia quase toda a sua dimensão. De modo que Piu-piu podia ver a silhueta de quem batia.  

Era inconfundível: a roupa vermelha, o cinturão preto, os detalhes brancos nas mangas e golas e o gorro vermelho. Faltava a barba branca, mas parecia ele.

 “Não sabia que ele batia na porta das pessoas”: refletiu o garoto. A situação inusitada o deixou desconfiado. Com o coração acelerando a cada passo, ele se encaminhou até a silhueta. A figura continuava batendo. Os golpes se davam na parte metálica da porta. 

Piu-piu colou o corpo na parede ao lado da porta, como se estivesse procurando proteção, e, com cuidado, levantou os dois pinos que fechavam a portinhola, um a um. Devagar, a folha de vidro foi se movimentando e revelando o visitante noturno. Era ele, mas estava diferente. Não tinha as bochechas rosadas, como as dos cartazes de refrigerante. Seu corpo era delgado e um pouco encurvado. A figura flexionou os joelhos e se colocou a uma altura pouco mais baixa que a do garoto. Semiocultos pelo gorro vermelho, estavam aqueles olhos. Duas esferas negras que o fitavam de baixo para cima, sem se moverem. Seu rosto era cinzento e coberto de rugas, como a pele de um lagarto. Da boca do menino, congelado pela presença da aparição, conseguiu sair:

- Papai Noel?

Os olhos continuavam fixos nele, sem se mover. Piu-piu pensou ter visto um sorriso.

- Papai Noel? 

... 

- Boa tarde, minha gente! Está começando mais um Mania Nacional! O seu programa de todos os dias! E vem comigo! Vem, minha senhora, meu senhor, que eu tenho uma história de arrepiar! 

Olha só, um catador de papel achou um saco vermelho jogado na calçada. Sabe, o saco do Papai Noel? Pois é, igual! E o que tinha no saco, minha querida telespectadora, meu querido telespectador? Pois, no saco, tinha quatro cabeças! Cabeças humanas! Ééé… não tô brincando, não. Eram quatro cabeças de jovens de, aproximadamente, 12 a 19 anos de idade.

Solta a matéria aí, Oliveira! 


Conto escrito por
Rafael Escurus

Desenho
Gilberto Belotti

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Gisela Peçanha Paulo Mendes Guerreiro Filho Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado Telma Marya

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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