No
capítulo anterior, Imã é tomada pelo arrependimento, mas o pior é que Tiana,
Carlito e Rui desaparecem.
CAPÍTULO 07 - VOCÊ PRECISA SER FORTE
A
sensação é refrescante, o corpo está totalmente relaxado, como se estivesse
repousando sobre um colchão de penas, o silêncio que o envolve completa um
estado de paz e serenidade. A vontade para permanecer aproveitando esse momento
delicioso é quase imperativa. Mas a repentina noção de quem realmente é, e o
que está acontecendo, despertam Carlito do sono.
Em
princípio é difícil enxergar, tudo parece nebuloso e turvo, seus olhos não
conseguem manter o foco em nenhum ponto, então, instintivamente se fixa nas
mãos. Elas não parecem exatamente como se lembrava, havia algo diferente.
Conforme
retoma seus sentidos, Carlito percebe que os raios do sol descem como agulhas
sobre uma camada espessa de... água. “Estou
submerso?”, tentando firmar os pés, ele vê que não há chão e nem paredes e
rodopia sem ponto de equilíbrio. Sim, Carlito está embaixo d’água, por um
instante entra em pânico e grita. Num lampejo de consciência começa a dar
braçadas em direção aos raios de luz. Prende a respiração, o medo invade seu
coração “vou morrer, vou morrer!” o
instinto de sobrevivência o impele a seguir em frente. Porém, assim que chega
emerge não vê nada, apenas água para todo lado.
Desesperadamente,
Carlito tenta manter a cabeça na superfície, mas o cansaço o supera e afunda,
sua mente não consegue pensar em mais nada a não ser encontrar ar para respirar.
“Ar para respirar?”
De
repente, um corpo passa por ele como um raio, Carlito se volta para identificar
o que seria, “só falta me aparecer um
tubarão agora. É sempre assim, quando penso que tá ruim, piora.” Um grito o
faz tremer da cabeça aos pés.
—
Iiiiiiiiirráááááá! C3, C3, olha pra mim, olha, cara, olha pra mim. Eu sou o
peixe mais rápido do mundo!
“Esse é o R2? Como...?” Carlito está
perplexo.
—
C3? O que tá acontecendo contigo? — Rui para em frente ao amigo.
Carlito
tenta se equilibrar mexendo as mãos.
—
C3, fala alguma coisa, cara. Olha aqui, você tá com seu portal aí?
—
O-o que você...? — Carlito olha para a ciranda que tem na mão.
—
Como eu descobri onde estamos? Ah, lembra quando a Imã disse que em alguns
mundos dava para respirar debaixo d’água? — Rui guarda o portal num bolso.
—
E-eu tô respirando debaixo d’água? Wow! Tô respirando debaixo d’água! — Carlito
se empolga e dá piruetas.
Em
um arroubo de alegria os amigos começam a disputar provas de velocidade,
arriscam manobras e experimentam fabricar bolhas de ar para usar como armas de
propulsão. Até que Carlito se lembra de um detalhe.
—
Peraí, R2, cadê o pessoal?
—
Cara, fiquei tão feliz que até esqueci o resto. Devem estar por aí, vamos dar
uma volta.
Na
aldeia dos quarks, Imã, Drica e Belchior ouvem do Vento como os amigos
desapareceram.
—
O Sir Machado pegou uma das cirandas para explicar como chegaram aqui, Sir
Gallagher apanhou outra e a dona Tiana puxou os meninos e então eles
desapareceram da nossa frente.
—
Só isso? — Imã parece frustrada.
Drica
apanha as cirandas que restaram e entrega uma para a amiga.
—
Imã, talvez possamos fazer aquele jeito de novo?
—
Sim, pensei nisso. Belchior, venha conosco, cante aquela canção para voltarmos
ao meu castelo.
O
rouxinol atende ao pedido, pousa no ombro de Imã que segura na mão da amiga.
Rui
e Carlito estão entre temerosos e deslumbrados com o novo mundo, mas à medida
que avançam, a preocupação aumenta.
—
R2, você viu alguma coisa?
—
Ali, tem uma mancha escura, vamos pra lá.
Ambos
nadam com esperança nos olhos. Porém, a “mancha” vai se desfazendo e a visão
não é das melhores.
—
C3, o que é aquilo?
—
Tá parecendo que é muita gente. Será que é o povo daqui? Acho melhor a gente se
esconder.
—
Esconder por que? Lembra que a Imã disse que nunca foi hostilizada?
—
Ô, “Dorys”, você esqueceu que a gente quase foi devorado no último mundo?
—
Além do mais, onde vamos nos esconder? Aqui só tem um grande e imenso azul...
não tem mais nada. Só se a gente for pro fundão negro lá. — Rui aponta para o
abismo sob seus pés.
Carlito
titubeia.
—
Às vezes a escuridão é mais agradável que a luz.
—
Tá maluco? Eu que não desço mais. Já tô contente de respirar nesse nível, não
vou testar até onde nosso corpo aguenta. Vem, vamos chegar perto.
Ao
se aproximarem, a dupla consegue ver que são várias criaturas nadando em círculos,
com tanta sincronia que pareciam um só corpo gigantesco e os sons que podiam
ouvir parecem gritos. Mas, não dá para entender.
—
R2?
—
É, tô vendo. Corre!
De
repente a multidão de criaturas muda para a direção dos rapazes e se aproximam
ameaçadoramente. Carlito e Rui tentam sair da frente, mas a turba passa por
eles provocando uma pequena correnteza que os suga junto. A confusão deixa
Carlito e Rui tontos. Eles aumentam a velocidade das braçadas para escaparem,
mas não conseguem, embora a última criatura tenha passado por eles, ainda são
puxados alguns metros. Quando, finalmente, Carlito retoma o equilíbrio procura
por Rui que está distante fazendo sinais desesperadamente.
—
Megalodon!
Assim
que Carlito olha para trás, surge outra criatura com uma enorme boca abarrotada
de dentes, parada bem à sua frente. O grito de Carlito pode ser ouvido há
milhares de quilômetros.
Inesperadamente,
Rui projeta seu corpo na direção do amigo e atrás dele acontece um estouro que
o lança a incrível velocidade, de tal forma que se transforma como um torpedo,
com uma sólida onda plásmica a frente e atinge o lado da criatura jogando-o
para longe de Carlito.
—
Caramba!
Rui
e Carlito se abraçam comemorando. A investida de Rui foi algo sobrenatural.
—
C3, será que eu tenho poderes?
—
Calma, Aquaman, vamos pensar nisso depois, primeiro temos que ficar seguros, já
deu pra ver que aqui o buraco é mais embaixo.
Contudo,
uma escuridão envolve a dupla. Os rapazes estão cercados por milhares de
pequenas criaturas.
—
Rui?
—
Tô vendo.
—
Dá pra fazer aquele lance de novo?
—
Sei não, no momento tô meio tenso... hã! C3, se a água em volta da gente ficar
quente demais ou barrenta, eu já peço desculpas.
Voltando
ao escritório, as meninas se apressam para reencontrar os amigos, mas uma voz
as alerta.
—
Imã, cheguei, cadê a Tiana?
Drica
e Belchior olham para a amiga, Imã gesticula para ficarem em silêncio e sai do
escritório fechando a porta atrás de si.
—
O-oi mãe, tudo bem? Chegou cedo.
—
Oi, ué, você tava no escritório?
—
É, tô fazendo uns trabalhinhos da escola.
—
Tudo bem, vou tomar um banho. Cadê a Tiana?
—
Ela não tava se sentindo bem, tomou uns remédios e foi dormir.
Assim
que a mãe da Imã se tranca no banheiro, as meninas pegam os rapazes e os
acomodam atrás do sofá do escritório. Depois, Imã leva a amiga e senhor
Belchior até a porta.
—
Não vamos arriscar fazer nada por enquanto. Drica, avisa aos pais dos meninos
que eles vão dormir aqui hoje. Quando for mais tranquilo a gente usa os portais
novamente.
Drica
e Belchior concordam, de qualquer forma Imã é tomada de uma esperança que não
sente há muito tempo. Ela só precisa ter contato com o vô Táquio para achar o
mundo dele e trazê-lo de volta, mas antes, tem que resgatar os amigos e a
Tiana. Ainda assim, as circunstâncias são muito favoráveis. Sua mãe termina o
banho.
—
Mãe.
—
O que foi?
—
Nada demais, só queria te pedir uma coisa.
—
O que é?
—
Eu gostaria de visitar o vô lá no hospital.
—
Imã, isso de novo? Nós já conversamos e a psicóloga disse que não é bom pra
você...
—
Eu sei, mãe. Prometo que não vou surtar de novo.
A
mãe da Imã olha para ela com tristeza, toda angústia do desespero da filha e
sua insistência de saber como curá-lo quase levou a família à loucura. Já não
bastava ter que lidar com a dor de ver o vô Táquio em estado vegetativo, os
pais de Imã tiveram muitos problemas com a filha.
A
infância de Imã foi intensa, desde que soube que o vô Táquio escrevia
histórias, passou a vê-lo de forma diferente e foi assim que, aos cinco anos de
idade, ela descobriu que seu avô tinha a capacidade de viajar entre mundos
fantásticos.
Sendo
impossível deixar a neta para trás, a dupla se aventurou em diversos mundos e
conheceu criaturas incríveis. Logo, além do amor natural que tinham um pelo
outro, a união deles se fortalecia com o passar do tempo. Todo fim de semana,
Imã dormia na casa do avô e, nas férias escolares, nem precisava perguntar para
onde gostaria de ir.
Os
pais de Imã até gostavam dessa relação, não há nada mais salutar para uma
criança do que conviver com os avós e, assim, o casal também tinha seus
momentos de folga da dura vida urbana.
Por
isso, a tragédia com a saúde do vô Táquio abalou demais a pequena Imã e, após
três anos de aventuras, foi difícil para ela entender porque não podia mais ver
seu avô. Pelo menos foi assim que seus pais entenderam o desespero da menina,
mas a fixação começou a incomodar. Ao consultar terapeutas, os pais foram
aconselhados a evitar o contato para obrigar Imã a encontrar novas formas de
distração e amenizar a dor da separação que sofria. A solução foi facilitada
porque o vô Táquio se transferiu para uma unidade de tratamento intensivo, sem
acesso para crianças.
Imã
sempre foi uma criança ativa e inteligente, mas a obsessão ficou perigosa após
fugir de casa para invadir o hospital, o que levou os pais de Imã a pensar em
interná-la numa clínica psiquiátrica.
Foi
a amiga Drica quem ajudou a manter a sanidade, sempre próximas desde a
infância, ela cativou a confiança dos adultos e conseguiu refrear os ímpetos de
Imã, o que demoveu os pais da ideia. Foram tempos difíceis para todos.
—
Minha filha... — Ziza tenta ganhar tempo.
—
Mãe, eu prometo que é só um pouquinho. Juro que não vou ter mais aqueles
ataques de pânico. Eu sei que o vô num tá bem, já superei isso, eu só quero ver
ele antes de... você sabe...
De
alguma forma a mãe de Imã percebe que há algo diferente na filha. Sem saber o
quê exatamente, mas não é a mesma melancolia de antes. A menina tenta não se
denunciar, por mais que tente disfarçar o entusiasmo é evidente, coração de mãe
nunca se engana.
Embora,
por mais que a vontade seja evitar o sofrimento, não dá para negar a realidade,
Imã precisa encarar o fato como eles são. A mãe não quer passar por esse
momento sozinha, mas a filha é impulsiva e é ilusão achar que ela vá desistir
da ideia. Uma decisão que já traumatizou a família. Por isso, ela reúne todas
as forças para enfrentá-la.
—
Imã, já conversamos sobre isso e a resposta é, não! — pega o telefone celular —
O-onde você está?... Não, vem pra cá agora!... Sim, é Imã...
—
Mãe, você tá falando com quem? É o papai? — os olhos de Imã começam a
lacrimejar.
Os
dias de injeções, remédios de tarja preta voltam à lembrança, Imã toma o
telefone da mãe.
—
Alô, pai?
—
Minha filha, o que tá acontecendo contigo? Você tá com problemas de novo? — no
outro lado a voz do pai tenta demonstrar segurança.
—
Não, pai. A mamãe entendeu errado, eu tô bem, juro. Só queria ver o vô, nada
demais.
—
Promete?
—
Imã, devolve meu celular agora! — a mãe começa a ficar nervosa.
—
Filha, deixa eu falar com a mamãe.
—
Pai, não fica triste comigo. — Imã devolve o aparelho.
—
Você já tá chegando?... Tá, tá bom. — a mãe continua aflita.
—
Mãe, não precisava fazer isso... eu disse que tô bem. — Imã puxa a mãe para
sentar no sofá.
—
Olha, Imã... eu sei que é duro pra você. Mas, às vezes você esquece que ele é
meu pai e eu também sofro com tudo isso.
—
Eu sei, mãe. Acredita em mim, eu não tô entrando em crise. Por que você não me
ouve?
—
Imã... — as mãos da mulher começam a tremer, ela esfrega como se quisesse secar
o suor.
—
O que foi mãe? Por que está tão nervosa, eu já disse que tô bem.
—
Não é isso, é que...
—
O quê?
—
Você precisa ser forte.
—
Mãe?
A
mulher sobe as mãos tampando o rosto, não tem mais força para conter as
lágrimas, a voz sai embargada, quase sussurrando, a dor na garganta é forte.
— Seu pai e eu estamos considerando desligar os aparelhos do vô Táquio.
M. P . Cândido
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