5x10 - Um Tiro na Noite
de Cassiano Ricardo
Leonardo chegou em casa depois de um intenso dia de trabalho; cansado, arrebentado, eu diria. Problemas, muito pepino para resolver na corretora – uma das maiores do país – em que ele trabalha. Noite agradável. Tudo conspirava para ir ao bar, tomar cerveja, jogar conversa fora, relaxar. Decidiu, trocou-se, pegou o celular e a carteira. Ao sair, opa! Como pode? Estava esquecendo algo.
Voltou, foi para o quarto, abriu a gaveta da cômoda e tirou uma pistola preta e bege, semiautomática, colocou-a em cima do móvel e ficou alguns minutos olhando-a, mania recém adquirida. Ele e a arma, ali no quarto, paralisado, fascinado. Obcecado, na verdade. Orgulhoso, pensou: é das mais modernas, bonitas, de marca famosa.
Leonardo virou expert em armas de tudo quanto é tipo, revólver automático, semi automático, mecânico, metralhadora e coisas do tipo. Estuda, pesquisa e compara sua arma com as demais, convicto de que a sua é superior à maioria do seu tipo. No clube de tiro (CAC), então, ele se realiza, principalmente no momento em que da sua pistola, saem as balas em direção ao alvo, que, na sua cabeça, teria que ser tudo que odeia. Virou terapia, válvula de escape. Ganhou novos colegas e amigos, cujo elo é o armamentismo. Conversam sobre esses assuntos horas a fio. Aquela metralhadora é melhor do que a outra! E tem aquela.... Vocês viram a nova automática que saiu da marca tal....E por ai vai.
Voltando ao quarto (diante da arma), Leonardo finalmente a coloca no largo bolso interno do seu blaser. E a fome já dava o ar da graça. Era por volta de nove horas. Ganhou a calçada com a galhardia de alguém convicto de que, fazendo a justiça com as próprias mãos, está protegido da sanha dos bandidos, nesse nosso cotidiano de assaltos, assassinatos, estupros, violências várias, como é diariamente martelado pelos meios de comunicação, sobretudo os mais sensacionalistas.
Passos largos, quarteirões após quarteirões iluminados pelo clarão de um belo luar, até que Leonardo avistou o aglomerado de gente no cruzamento de duas ruas. Havia quatro bares, um em cada esquina. O pessoal conversava, bebia, ria e tudo o mais, não só dentro dos recintos, mas na calçada, beiradas da rua, como ali, cotidianamente acontece. Um verdadeiro point, dos mais agitados da região.
Leonardo foi chegando, chegando; a cerveja geladinha na cabeça, o som murmurante das conversas, as risadas, tudo cada vez mais próximo de seus ouvidos, quando ele foi surpreendido por uma moto que encostou ao seu lado. O garupa, rapaz novinho, forte, alto, olhou para ele com ar ameaçador, em seguida pôs a mão no bolso e começou a puxar algo; antes que começasse a falar alguma coisa Leonardo puxou sua semiautomática e, desajeitadamente, deu um tiro. A moto saiu em disparada.
Num bar do outro lado da rua, um homem que tomava sua cerveja, diante do longo e desgastado balcão de madeira, sentiu alguma coisa entrando no seu corpo, soltou um grunhido forte e caiu no chão. Alvoroço. Pânico. Correria. O pessoal mais próximo à vítima tentou socorrê-la, enfim, fazer alguma coisa, sem saber exatamente o quê, pelo inesperado da situação.
O homem ali, estirado, região do peito já ensanguentada e um filete de sangue se esvaindo e formando um caminho pelo descolorido piso. Desesperadamente gemia, gritava e se contorcia. Angústia. Rodeado, tentavam acalmá-lo, dizendo que o resgate estava a caminho.
Leonardo, do outro lado da rua, paralisado, pistola na mão, parecia que a ficha não tinha caído. As pessoas próximas, perplexas, olhavam-no. Rebuliço. Já se ouvia as sirenes das viaturas da polícia vindo de tudo quanto é lado. Rapidamente, toda a área estava isolada e as entradas próximas ao cruzamento, fechadas pelos carros e policiais, civis e militares, postados nas calçadas.
Leonardo sentiu uma mão no seu ombro, como que o acordando para a dureza da realidade. Estremeceu. Dois policiais civis, já compreendendo a dinâmica da situação, o abordaram. Um deles perguntou:
— O que aconteceu? Foi você quem atirou?
— Sim, eu ia ser assaltado. O garupa da moto sacou uma arma e eu atirei para me defender.
— Os assaltantes fugiram? Foram atingidos?
— Sim, fugiram. Não consegui acertá-los, pelo que me parece.
— Você tem porte de arma?
— Sim, tenho. Está tudo regularizado. Fiz curso de tiro, também. Agi em legítima defesa.
— Nós vamos à delegacia, lá será aberto o BO e você vai explicar tudo para o delegado. Ok?
— Sim.
Os altos gemidos, entrecortados por falas já sem sentido do homem caído, perturbavam Leonardo.
— Antes, posso ver o homem ferido? — Perguntou ele.
— Sim.
Meio zonzo, Leonardo atravessou a rua, abriu passagem entre a multidão aglomerada na calçada e na rua. Uma parte, incrédula, conversava sobre o ocorrido; outra, jogava conversa fora, bebiam, brincavam, meio que alheios. Ele passou por uma das largas portas de entrada do bar, furou o cerco das pessoas em volta do corpo caído, se agachou. Ao lado, uma mulher desesperadamente pedia que o homem aguentasse (não desiste, segura firme, o resgate já vem). O sangue já estava empossado. Como o homem caído estava com o rosto virado, ele foi para o outro lado. Ao encará-lo, o horrendo grito de Leonardo ecoou pelo bar e para fora. Todos tremeram. Ele começou a chorar compulsivamente, como que em transe… suas pernas bambearam, perdeu o ar, parecia que ia desmaiar.
Por um rápido instante, vieram as imagens na mente de Leonardo. Duas crianças brincando no quintal. Depois, já adolescentes, jogando futebol, taco, botão, aprontando pelas ruas do bairro, andando de bicicleta, empinando pipa, os carrinhos de rolimã e tudo o mais. As viagens para o litoral e as tantas diversões. Os amigos em comum, Paulinho, Arlindo, Vitão, Marquinhos...Muitas cervejas juntos, nos bares da vida.
Leonardo, em voz alta: Murilo, não, não, não! As pessoas não sabiam mais a quem acudir, se a ele ou à vítima.
Escorado pelo pessoal, Leonardo viu Murilo dar um último suspiro. Sua boca abriu-se e assim ficou, os olhos abertos, arregalados, paralisados, imersos na poça de sangue.
Antes de ser levado para a Delegacia, os olhos de Leonardo cruzaram com o corpo de Murilo numa grande caixa preta, de plástico, sendo empurrado pelos socorristas do Corpo de Bombeiros, para dentro da ambulância. A porta se fechou e seu melhor amigo se foi para sempre. A sirene do veículo massacrou sua mente. Pouco depois, estava perante o delegado.
Nem sabe como lá chegou.
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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