5x11 - Não Mereço Perdão
de Tchello d'Barros
Pequei novamente, padre! O senhor sabe que, quando eu morrer, vou diretamente pro inferno. Nem sei bem por que sempre venho aqui, contar essas barbaridades que cometo, por causa de meu ofício. Acho que volto só pra abusar de sua paciência, porque assim me sinto mais aliviado. É um peso que me sai dos ombros. Mas errei outra vez, padre!
O senhor sabe que não escolhi essa profissão de matador, sempre penso que foi ela que me escolheu. Pois, às vezes, quando faço um serviço caprichado, sinto ter feito uma limpeza neste mundo; parece até uma missão. Já lhe contei dos safados que tenho mandado pro outro mundo. Ainda nem rezei todas as penitências do mês passado, mês movimentado: um político e um traficante, na mesma semana. Ao menos, o traficante era gente boa, ajudava a vizinhança na comunidade, fazia alguma coisa pelos pobres. Mas o senhor sabe que eu não escolho meus alvos, nem faço perguntas, nem quero saber dos motivos. Olha, nesse ramo, a gente deve ter critérios, é preciso ter princípios.
Mas padre, pequei de novo e, desta vez, tô incomodado! O serviço não tá me saindo da cabeça. É que dessa vez, foi mulher, padre. Eu não gosto nem de bater em mulher, a não ser quando elas pedem, quanto mais fazer um trabalho assim. Já fiquei incomodado quando aceitei a encomenda, por telefone. Pois, pra complicar, foi também uma mulher que me contratou. Aquela voz rouca e aveludada me pediu pra fazer uma execução. E fiquei ainda mais intrigado, quando ela disse que a vítima era outra mulher. Mas o senhor já me conhece, padre, não escolho meus alvos e gosto de fazer tudo muito benfeito. Sou um profissional. Tenho um nome a zelar, uma reputação no mercado.
Antes de investigar o novo alvo, para achar o momento certo do abate, comecei a me perguntar o motivo dessa contratante misteriosa, de voz rouca e aveludada. Provavelmente, seria ciúme, disputa por homem, ou até por mulher, sabe-se lá. Podia ser por inveja. Talvez, motivo de herança. Quem sabe, queima de arquivo. Ou seria por grana mesmo, algum seguro de vida milionário. Chantagem. Olha, padre, neste negócio, os motivos são os mais variados, acredite.
Quando comecei a vigiar a casa de minha futura vítima, para estudar os hábitos da moça, primeiro me impressionou o fato de ela morar sozinha. Depois me chamou a atenção sua beleza natural: dessa, que não precisa de maquiagem. E tinha uma silhueta esguia, uma elegância clássica, aparentando uns 30 anos. Era discreta nos seus hábitos, do tipo reservada. Não recebia visitas, nem visitava ninguém. Apesar de bonita, não tinha namorado, nem saía para baladas. Apenas, aos sábados é que dava uma espécie de ronda pelas livrarias da cidade. Assim, aumentava as fileiras de livros, nas estantes da casa. Aos domingos, à tarde, frequentava um desses bingos eletrônicos. Não sei se ganhava ou perdia, mas sua vida social era pacata, veja só.
Durante a semana, saía cedo de casa, passava em uma confeitaria da esquina, tomava seu café puro e comprava chocolates, muitos chocolates. Seguia, então, para a entrada do edifício em que trabalhava. Não consegui descobrir, exatamente, o que ela fazia lá. Parece-me que era executiva de uma multinacional, ou algo assim. Ela saía ao meio-dia, sempre sozinha, para almoçar nos restaurantes ali por perto. Por vezes, dava uma olhada nas novidades das vitrines ou visitava alguma livraria. E passeava pelas calçadas, usando terninhos bem alinhados em cores sóbrias. Sempre com os cabelos presos, óculos alinhados com o desenho das sobrancelhas, bolsa combinando com os sapatos… Enfim, formava um conjunto bonito. A única coisa que não combinava eram aqueles olhos castanhos, bem bonitos até mas meio tristes. Tinha um ar de quem tá longe, longe... Era como se algo faltasse, parecia trazer no rosto, uma mistura de saudade e esperança. Nãos sei. O que sei é que no fim da tarde, ao sair do trabalho, ia direto para casa. Às vezes, demorava-se na banheira, com velas aromáticas, música suave. E, depois de um copo de vinho, mergulhava nas leituras, que, não raro, passavam da meia-noite. E assim vivia sua rotina: o cotidiano de uma mulher comportada, mas muito solitária.
Ah, padre, concluí que o melhor lugar para cumprir minha missão seria dentro da casa dela. Para tanto, precisava estudar esse ambiente. Na primeira vez que entrei na casa, após ela ir para o trabalho, notei o bom gosto na decoração: tudo combinava com tudo. Na sala, havia um conjunto de gravuras de mandalas e, num corredor, uma série de fotografias artísticas, de túmulos e crucifixos de cemitérios. No quarto, sobre a mesa de cabeceira, tinha algumas caixinhas de comprimidos antidepressivos. Pelas paredes, imagens de deuses orientais, acredito. E era impossível não sentir aquele cheiro no ar, um resto de incenso. Muito incenso. Feito esse primeiro reconhecimento de terreno, depois de cheirar todos seus perfumes, muitos perfumes, saí do local. Tomei, então, os devidos cuidados para não deixar qualquer marca, nenhuma impressão digital, essas coisas. Neste ofício, a gente deve ser assim, muito cauteloso.
Bom, padre, achei melhor voltar no dia seguinte. Queria saber mais dessa mulher, que, aparentemente, não fazia mal a ninguém. Dessa vez, me demorei, vendo seus álbuns de fotografias. Boa origem, algumas viagens, formatura, um ex-namorado, que, parece, chegou a ser noivo dela. Encontrei também um caderno, com muitos manuscritos: poemas, principalmente. Nunca sei se o certo é dizer poemas ou poesias... Mas li alguns ali. Quase sempre, falavam de vida e morte, de céu e inferno, coisas assim. Até que gostei. Acho que o senhor iria gostar também...
Não resisti e, no terceiro dia, voltei para bisbilhotar, um pouco mais, a vida dessa pessoa, cuja data final tava escrita em minhas mãos. É que eu queria encontrar um motivo, embora isso fosse contra minhas regras. Com cuidado, fui vasculhando tudo, mas não vi ainda nada que a fizesse merecer essa fatalidade. Sob a cama, encontrei apenas umas revistas de homens nus e, numa gaveta, várias calcinhas muito bonitas. Eram de estilo erótico, com transparências, fendas, penugens e outros enfeites. Acho que ela teria lá suas fantasias. Remexendo mais um pouco, achei uma caixa, com cartas do tal ex-namorado. Tive o cuidado de ler cada uma, na ordem em que foram escritas. As primeiras eram todas muito melosas, com muitas declarações e muitas promessas de amor. Algumas, até mesmo, elogiando as paisagens íntimas da destinatária, mas vou lhe poupar desses detalhes, padre! Depois de um ano, começavam a falar de planos, de juntar as escovas de dentes, como se diz. Mas, depois, o namoro foi esfriando, o relacionamento entrou em crise, e as declarações passaram a ser reclamações, brigas e menções às irreconciliáveis diferenças de temperamento, de personalidade, de objetivos e por aí vai. Por fim, na última cartinha, ele rompia a relação, era uma despedida. Finito. Achei que esse cara não merecia alguém como ela. Ah, não merecia mesmo...
Tudo naquela casa era bonito, mas, ao mesmo tempo, um pouco triste. Eu fiquei puto da vida por não ter achado um motivo pra que alguém quisesse acabar com aquela mulher. E, só porque agora eu conhecia um pouco da intimidade dela e já tava até me apegando à minha próxima vítima, vê se pode uma coisa dessas! Pra ser sincero, padre, a vontade que eu sentia era de executar a contratante. Mas o senhor me conhece, padre, sou um profissional: meus clientes em primeiro lugar. Tenho um nome a zelar, e, depois, meu pagamento já estava depositado em minha conta. Era preciso cumprir a missão, sou um homem de palavra.
Observei cuidadosamente essa vítima: desde a delicadeza dos gestos, como andava de maneira graciosa e como gesticulava, sempre de jeito muito suave. Por isso, escolhi um método que não fosse cruel e sanguinolento, como geralmente acontece. Planejei esperá-la dentro de sua casa. Um pouco de éter, pressionado nas narinas, faria com que ela desmaiasse imediatamente. Depois, uma ingestão induzida, com barbitúricos letais, faria o resto. Assim, seria rápido e indolor. Ela não merecia sofrer.
E foi como aconteceu, padre, agora há pouco. Logo que terminei, vim direto pra cá. E se estou tremendo, é porque sei que dessa vez não vai ter perdão. Depois do serviço feito, vi no celular dela, um vídeo recente. Era ela em um evento, no café de uma livraria. E lá estava ela, de cabelos soltos, sem óculos, declamando seus poemas, com aquela voz rouca e aveludada…
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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