Batizado como Marino Bonaventura, Seo Tiê ganhou esse apelido logo que se mudou para a
Rua do Azevinho e a meninada do bairro se encantou com sua criação de pássaros
que, aliás, eram todos tiê-sangue.
A casa bem ventilada abrigava na varanda quase trinta
gaiolas, sempre impecavelmente limpas, misturadas aos vasos de avencas e
violetas no sombreado. Frutas, papas, alpiste e água nunca faltavam ali.
Com sua natural simpatia, a pança avantajada e os lindos
olhos azuis, Seo Tiê acabou recebendo o convite para se tornar Papai Noel de
loja, logo depois de se aposentar e vender a sapataria onde exerceu ofício
desde os 16 anos, ao lado do pai.
A história de se tornar outra pessoa nos meses de dezembro agradou
tanto a ele e aos que o encontravam naquela fingição bonita que acabou se
tornando um hábito ao longo dos anos seguintes.
Os amigos tinham grande orgulho dele que, se já era querido
no bairro, tornou-se também uma celebridade nas ruas da cidade.
Os anos se passaram e novos bebês nasceram nas redondezas.
Outra geração passou a visitar rotineiramente a casa dos tiês, onde se podia
observar os passarinhos saltitando nas gaiolas enquanto as histórias do seu
dono continuavam encantando as crianças. Mas havia ainda outra coisa que atraía
a todos: os postais que a filha do ex-sapateiro enviava a ele do Quênia.
Numa tarde azulada e clara de dezembro, uma das meninas que
sempre apareciam por lá mexeu com a paz do velho amigo ao perguntar para a sua
vizinha:
-Giovana, você não acha que passarinho de gaiola tem vontade
de voar?
- Claro que tem, mas existem muitos perigos se eles forem
soltos...os gatos famintos que o digam.
-E não seria melhor morrer em liberdade? _ perguntou Elisa.
Seo Tiê escutou em silêncio e mesmo intrigado não fez
qualquer comentário. Despachou as meninas, vestiu-se de vermelho e foi para a
loja no centro da cidade realizar seu trabalho de Papai Noel.
Mesmo com o movimento dos clientes e o barulho das ruas, a
conversa ouvida não saiu da sua cabeça e durante doze dias aquela preocupação
não o deixou. Na noite de 24 de dezembro ele saiu exausto da loja, tomou o
ônibus e depois de uma viagem de 50 minutos desceu no ponto final e foi
caminhando em direção à própria casa.
A figura solitária e maciça daquele Papai Noel de passos
leves na madrugada chuvosa despertava simpatia, surpresa e lembranças tardias
nos pedestres.
Ao chegar em casa e já se livrando do gorro e da barba
postiça, Seo Tiê empurrou de leve a porta que nunca trancava e entrou na sala.
Um cheirinho bom denunciava comida nova na cozinha. Na mesa posta para uma só
pessoa estavam talheres e prato, além de uma tigela com frango assado, batatas
e farofa. Os vizinhos nunca falhavam.
Além da ceia caprichada havia um grande embrulho de presente.
Seo Tiê tirou pacientemente a fita dourada e o papel vermelho brilhante do
pacote para então descobrir uma gaiolinha p rimorosamente pintada de branco.
Dentro dela, um tiê-sangue perfeito. Bastava a pessoa se movimentar ou bater
palmas na frente dele para que os trinados viessem de imediato. Era uma obra de
arte, moldada pena a pena, por mãozinhas chinesas. No lugar do coração da
pequeníssima ave ficava uma caixinha de música. Seo Tiê olhou penalizado aquela
coisinha sem vida e no instante compreendeu um montão de coisas.
Comeu com satisfação o seu jantar e, vestido como estava,
foi se deitar. Levantou-se logo depois porque a inquietude não dava lugar ao
sono. Resoluto, caminhou para a varanda. Descobriu as gaiolas tapadas por
tecidos escuros e foi levando todas elas, de duas em duas, para a calçada. Lá,
abriu as portas minúsculas do cativeiro e soltou seus bichinhos de tantos anos.
Primeiro sonolentos e depois desconfiados, os passarinhos
foram se lançando no ar. Voavam até os postes de luz, saltitavam pela
pitangueira, um instantinho nos ramos do manacá florido e depois se afastaram
pelos fios para, finalmente, desaparecerem na noite enluarada.
Papai Noel se deitou novamente e então dormiu na mesma hora.
Sonhou que uma revoada de pássaros de cores e tamanhos variados atravessava o
Oceano Atlântico, ansiosa para chegar às densas florestas do coração da África.
Acordou cedo, sentindo-se despreocupado e feliz. Obedecendo
ao hábito antigo dos domingos e feriados, abriu a gaveta da cômoda e foi mexer
na caixa dos postais incríveis caprichosamente escolhidos pela filha que
conhecia seu gosto pelas maravilhosas criaturas africanas. Sem nenhum
estranhamento, notou que as letras continuavam onde sempre estiveram no papel,
mas quanto aos passarinhos nem sinal deles.
A explicação era uma só.
Tema de abertura
Jingle Bell Rock
Intérprete
Glee
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2024 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: