3x07 - Vinte e Sete
de Pedro Linhares
Tudo começou com um grito. Apenas um grito, agudo e forte, bastou.
Era de madrugada, e ela não deveria estar acordada. Sua rotina não incluía tal hábito, principalmente porque precisaria trabalhar cedo no dia seguinte, mas ali estava ela, olhando para o teto de seu quarto, admirando a tinta branca e as lâmpadas apagadas, sem conseguir fechar os olhos e pegar no sono, quando ouviu um som extremamente familiar e que invocou uma reação subconsciente de descobrir o que estava acontecendo.
Maria olhou para o relógio despertador ao lado de sua cama e suspirou ao ver a duas e um passar para duas e dois. Seu quarto estava escuro, assim como o resto da casa, assim como o resto dos quartos das outras casas. Todos dormiam. Ninguém deveria estar gritando no meio da noite.
Ela se dirigiu à janela, para respirar um pouco do ar gelado noturno. A janela de seu quarto, e isso já fora o motivo de um processo que o dono do prédio recebera, ficava no limite de proximidade do outro bloco de apartamentos ao lado, tornando perfeitamente visíveis quaisquer coisas feitas nos cinco andares mais próximos, dois acima e dois abaixo. Maria morava no terceiro andar.
As janelas, como o esperado, tinham suas cortinas fechadas e luzes apagadas. Nada de interessante acontecia ali naquele momento, nem mesmo um gato de algum dos moradores espiando a rua como ela fazia. Nada de estranho, nada de incomum: tudo permaneceu quieto, por alguns minutos.
Uma luz se acendeu no primeiro andar do outro prédio.
As cortinas se iluminaram, e duas silhuetas puderam ser vistas: um homem, certamente, por conta do tamanho e do formato, e uma menina, com não mais que doze anos, pelo mesmo motivo. A mão dele cobria a boca dela. Ele se movia como um animal selvagem. Ela, em desespero, com medo, apavorada, sofria. Um dos braços da menina estava esticado, na direção de algo que provavelmente era a fonte da luz, talvez um abajur, pressionando seu interruptor. O homem, sem nem mesmo parar o que estava fazendo, violentamente puxou a mão dela e a luz se apagou.
Maria piscou, incrédula.
A manhã do dia seguinte chegou. Maria não dormira. Banhou-se, alimentou-se, escovou os dentes, vestiu-se e saiu de casa, em direção à escola. Seu rosto estava castigado pela noite em claro, inundada de pensamentos como “Devo chamar a Polícia ou não?”, “E se não for nada disso?”, “Mas e se for?” e outros do mesmo gênero. Talvez as crianças não percebessem — mas eram crianças, e ela sabia que não seria o caso. Certamente perceberiam, principalmente suas feições preocupadas. Deveria fazer algo a respeito?
Talvez uma música do rádio a alegrasse um pouco. Uma melodia suave começou a tocar, e ela não soube identificar se era jazz ou blues, mas era calmo e triste, um lamento. Estática preencheu o ambiente. O locutor decidiu conversar.
— Interrompemos nossa programação normal para notícias de última hora. Na semana passada, sexta-feira, uma garotinha, Elisabete Soares, nove anos, desapareceu. Seus pais, Mônica e Eduardo, foram buscá-la em sua escola, no horário de costume, e a menina não estava lá. “Foi buscada pelo ‘tio’, com uma autorização assinada”, disse um dos funcionários, que preferiu não se identificar.
“Caso você, ouvinte, saiba de qualquer informação, por favor, telefone para o seguinte número: 48 9…”
Maria mudou rapidamente de estação, mas logo desligou o rádio. Chegara na escola. Seria a sua Elisabete? A pequena Lis que já não ia à aula desde a segunda-feira? Não, claro que não, os pais disseram que estavam viajando… Mas por que Mônica mentiria? Eram tão amigas… E Eduardo, também mentira?
Seus alunos chegaram aos poucos, interrompendo seus devaneios enquanto arrumava a sala de aula, colocando lápis de cor sobre as mesas e algumas folhas brancas junto para a dinâmica que pretendia fazer naquele dia. Esqueceu o assunto pelo resto do dia, observando as linhas coloridas feitas pelas crianças.
Como professora de artes, certas coisas ainda lhe eram permitidas como método de ensino — o próximo passo seria tinta sobre tela, mas queria ter certeza dos bons resultados antes de propor a ideia da Galeria Infantil à diretoria, um projeto que vinha organizando há alguns meses, porque lera que a chamada “arte livre” fazia muito bem para os cérebros em desenvolvimento e em período tardio de alfabetização.
A sala de aula foi preenchida pela primeira turma, e pela outra logo em seguida, e depois pela terceira, então veio o recreio, e mais a quarta e a quinta turmas. Finalmente, o intervalo do almoço. Elisabete era o único assunto no restaurante perto da escola, onde praticamente todos os professores iam comer naquele horário. De mesa em mesa, era só o que se ouvia.
Maria permaneceu calada enquanto comia, pensando.
Continuou suas aulas à tarde como de costume, e então voltou para casa. No caminho, comprou uma câmera de visão térmica. Custou caro, mas precisava ter certeza sobre o que vira, sobre o que achara que vira.
Era uma câmera grande, de baixa resolução, com intervalo de alcance térmico pequeno, mas que, segundo o próprio vendedor, era perfeita para o que Maria pretendia: analisar amostras à distância através de um material translúcido, como tecido. Certamente era uma pesquisadora, garantira ela ao vendedor, estava comprando o equipamento ela mesma apenas por causa dos cortes na verba do laboratório, esse tipo de coisa. O vendedor acreditara cegamente.
Fosse uma mulher, não teria funcionado.
Maria chegou em casa e resolveu dormir, tentando repor o sono da noite anterior. Ela largou a mochila no sofá, abandonando seus materiais de professora e se dirigiu a seu quarto. Um alarme para as dez horas foi posto no despertador, e ela adormeceu logo em seguida.
Maria acordou ao som de seu alarme — uma porção de sinos cacofônicos e desarmoniosos, perfeitos para a tarefa — e se colocou diante da janela, com as luzes apagadas e as cortinas fechadas, tudo para que não a vissem espionando os vizinhos. O que viu foi, no mínimo, interessante.
Dois borrões vermelhos, girando um ao redor do outro como se estivessem dançando ao som de uma música agitada e angustiante. Na verdade, um deles estava fugindo do outro, procurando qualquer lugar para se esconder, e foi isso que Maria percebeu. O menor corria em círculos, provavelmente parando onde havia paredes, que não apareciam na imagem de tão geladas, oscilando desesperadamente dentro daquele cômodo escuro.
Maria precisava fazer alguma coisa. Tinha certeza do que estava acontecendo, e não poderia deixar que continuasse acontecendo. Precisava impedir, de qualquer jeito.
Naquele mesmo instante, decidida, Maria saiu de seu apartamento e desceu as escadas do prédio. O porteiro lhe deu oi, como de costume, e ela respondeu com um aceno de cabeça, nada como o costume, o que chamou a atenção dele, mas não o suficiente para que se levantasse e fosse atrás para investigar.
Talvez, se tivesse ido junto dela, os acontecimentos tivessem tomado um rumo diferente.
Maria chegou na porta do outro prédio. Não havia porteiro. Ótimo.
Ela chamou um dos apartamentos, um qualquer do quinto andar que ainda estava com as luzes acesas. Um homem atendeu. Ela pediu para que lhe abrisse a porta, pois estava um pouco bêbada e as chaves de casa estavam com as do carro, com uma das amigas, a sóbria. O homem lhe perguntou o nome e o apartamento, como se conhecesse todos os moradores do prédio. Ela respondeu que era a Dona Florinda, do 205, e ele a deixou entrar. Não conhecia praticamente ninguém do prédio, era muito reservado, mas, caso algo acontecesse, ao menos tinha um nome.
Maria riu de sua artimanha, logo se concentrando na tarefa mais importante.
Enquanto subia o primeiro lance de escadas, alguns pensamentos lhe ocorreram, que deveria ter chamado a Polícia, que saberiam o que fazer, que estariam mais seguros do que ela, que tinham protocolos a serem seguidos por algum motivo muito bom. Mas foi só por um instante, pois logo já estava de frente para o apartamento que julgava ser o certo.
Ela se arrumou um pouco antes de bater na porta, pensando em algo para falar assim que o sujeito abrisse a porta, algo que o convencesse a deixá-la entrar em seu apartamento. Ela apertou a campainha.
Um silêncio mais alto que o comum se fez dentro do apartamento, como se tivessem, de repente, parado de fazer o que estavam fazendo.
Um jovem abriu a porta, seminu, com uma toalha branca enrolada na cintura. Maria continuou fazendo contato visual.
— Desculpe incomodá-lo nesse horário e… — começou ela, tentando parecer séria diante da situação. Definitivamente não era o homem da sombra; jovem demais para isso. — Com licença, mas acho que errei o número do apartamento.
Maria sorriu, passando-se por uma senhora idosa e tola, coisa que definitivamente não era.
O rapaz sorriu também. Momentaneamente.
— E quem procura, senhora? — disse ele.
— Bem, eu não sei o nome dele — ela continuou, ainda seguindo o mesmo papel; deveria ter sido atriz quando ainda podia —, mas sei que mora sozinho. Conhece algum senhor, talvez com a minha altura, que mora nesse andar?
O jovem riu suavemente.
— Seu Sandro mora aqui do lado — respondeu. — Acho que atende aos requisitos. Boa noite, senhora.
— Boa noite, rapaz. Obrigada.
A porta se fechou e Maria conseguiu ouvir uma mulher, também jovem, perguntar quem era, e o rapaz responder que não era ninguém e que poderiam voltar a fazer o que estavam fazendo — essa última parte foi abafada, talvez por um beijo; ou um estrangulamento, como a ideia que surgiu como um lampejo repentino, mas que logo desapareceu, sugeriu.
Maria apertou a campainha do outro apartamento. Os mesmos acontecimentos suspeitos se passaram lá dentro, com a única diferença que o quarentão não estava seminu quanto abriu a porta. Estava, e Maria suspirou de alívio quando o viu, vestido. Apressadamente.
— Boa noite, vizinho — disse ela, mudando completamente de persona; realmente deveria ter sido atriz; sem esperar uma resposta e o bombardeando com frases e mais frases. — Acabei de chegar de viagem, e percebi que tem um vazamento de água logo em cima da minha garagem. Não posso deixar um conversível estacionado ali nessas condições, o senhor entende, claro. Por isso queria ver os canos do seu banheiro, pois creio que seja o seu, para garantir que não tem nada vazando, sem precisar envolver a síndica ou outros moradores nisso. Afinal somos adultos, e podemos resolver esse problema sozinhos.
Ele ficou parado pensando. Virou-se de lado, mostrando o perfil, contrapondo uma fonte de luz que vinha de algum lugar da sala de estar. Maria teve certeza, sem dúvida nenhuma. Era ele.
— Vizinho? — insistiu ela.
— Boa noite — disse ele, sem emitir nenhuma gentileza no tom de voz. — Claro, entre. Sinta-se à vontade.
Maria sorriu, forçosamente, e entrou no apartamento.
Era um lugar feio. Paredes descascando e tinta mofada por baixo em alguns lugares, manchas amarelas ao redor das janelas, piso laminado enrugado pela umidade, rodapés descolados das paredes em ângulos que com certeza deviam acertar os pés de alguém que caminhasse muito perto das paredes… a lista era longa, mas foi o que Maria notou antes de ser conduzida ao banheiro.
Que era um lugar ainda pior.
Ela se agachou ao lado da privada e fingiu examinar os canos da caixa acoplada. Havia vazamentos, que foram esperados assim que ela viu o estado dos canos, mais enferrujados que a lateral de um navio de contêineres, mas nenhum que pudesse causar o problema que, supostamente, molharia seu carro. Ela perguntou se havia outro banheiro na casa, ele respondeu que sim, havia, a suíte, ela se podia ver, ele que não, ela insistiu, ele cedeu, mas que precisava arrumar o quarto antes de mais nada.
Ele correu para dentro do quarto e se trancou lá dentro, e mexeu, isso sem dúvida, nas coisas que estavam lá dentro.
Maria ouviu outro grito, depois um baque surdo no chão, e teve certeza do que fazer. Não poderia esperar mais.
Ela correu até a cozinha e pegou a primeira ferramenta que achou, torcendo para que sua idade e todos os filmes que assistiu não fossem atrapalhá-la ou enganá-la. Maria chutou a porta do quarto, na altura da maçaneta, e a abriu.
O homem estava agachado, com um monte de cordas nas mãos e no chão ao lado, enrolando alguma coisa. Elisabete.
Assim que a menina a viu, ainda zonza da queda, ela arregalou os olhos e tentou gritar, mas a mordaça que, agora, estava ali não permitiu.
O homem viu Maria e pegou, também, a ferramenta mais próxima.
Aquele foi um momento decisivo. Maria deveria ter chamado a Polícia. O porteiro deveria ter ido com ela. O homem deveria ter sido mais cuidadoso. Elisabete deveria ter sido mais atenta e não ter aceitado doces do estranho. Se alguma dessas variáveis tivesse sido diferente, talvez o que se sucedeu não tivesse acontecido. Uma chave inglesa contra uma faca — um homem contra uma mulher — um monstro contra uma pessoa comum — um mal contra um bem.
Elisabete, perdida entre tantas pessoas que giravam ao seu redor, duplicadas pela pancada que sua cabeça dera no chão, acompanhou a luta por alguns instantes, logo tombando para o lado, acertando o interruptor da luminária azul que estava ali no chão. O cômodo se iluminou.
Maria, antes que ele conseguisse se virar completamente, acertou-lhe a mão direita e a atravessou com a lâmina da faca, entre o segundo e o terceiro metacarpo, roubando-lhe a chave inglesa.
Por que, raios, havia uma chave inglesa ali?!
Maria poderia ter parado no primeiro golpe, dando-se por satisfeita com o resultado, poderia ter agarrado Elisabete com toda a sua força e ter fugido dali o mais rápido possível, poderia tê-lo amarrado firmemente em uma das muitas cordas que ali estavam, poderia ter chamado a Polícia e, quem sabe, talvez, uma ambulância para tratar do homem ferido, para que não morresse e passasse o resto de seus dias na cadeia, apodrecendo entre as paredes de concreto e as barras de ferro, onde certamente deveria estar. Mas não parou.
Maria não parou.
Um, dois, cinco, dez, vinte e sete golpes foram desferidos contra o crânio daquele homem. Um, dois, cinco, dez, vinte e sete golpes foram necessários para que Maria parasse de atacar. Um, dois, cinco, dez, vinte e sete golpes foi o tempo necessário para a Polícia, bem como uma ambulância, chegasse no local e a impedisse de continuar, quando um dos vizinhos ouviu os gritos animalescos de Maria e as batidas do metal no chão. Um, dois, cinco, dez, vinte e sete movimentações prazerosas e violentas foram o suficiente para acabar com sua vida pacata de professora.
O homem já estava morto na segunda.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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