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Antologia O Mal que nos Habita - 3x08

Conto de Rafael Navarro
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Sinopse: A amizade de infância entre Vinicius e Ricardo toma um rumo sombrio quando a inveja e a obsessão consome um deles por meio de uma teia de comparações doentias. O conto explora os limites tênues entre a amizade e a perversão, revelando como uma conexão inocente pode se tornar um pesadelo macabro.

3x08 - Amigos de Infância
de Rafael Navarro

   Eles eram amigos de infância. Estudaram na mesma escola, faziam as mesmas atividades extracurriculares, com pais pertencentes aos mesmos círculos sociais. As aulas de inglês aos sábados, as visitas à locadora de jogos, os álbuns de figurinha. Apesar disso, nunca foram realmente próximos, nunca fizeram confissões, detalharam sentimentos ou vulnerabilidades. Fizeram muitos trabalhos de classe juntos e algumas viagens durante o mês de julho organizadas em família. Visitaram as Cataratas do Iguaçu, Salvador e Buenos Aires. Vinicius e Ricardo. Nunca Ricardo e Vinicius, sempre Vinicius e Ricardo. Vinicius sempre foi mais alto, atlético e bonito. Ricardo tentava se esconder atrás dos livros, mesmo sempre sentindo-se desinteressado por qualquer tipo de leitura. Vinicius também tirava melhores notas na escola, participava do time de futebol e tinha desenvoltura nas relações interpessoais.

Eles foram amigos de infância. Uma relação de conveniência, iniciada por seus pais e mantida por eles com o passar do tempo. Apesar disso, a cada ano, o afastamento dos garotos era maior. Havia uma sensação de que a mudança era arrastada, não abrupta, porém com uma espécie de doce euforia para seu fatídico encerramento. Estava nos pequenos detalhes que não notamos de imediato: a demora para responder uma mensagem de texto, o atraso para sair da classe ou a agilidade para combinar a realização de um projeto estudantil com outra pessoa da sala. Até que tornaram-se estranhos com a mesma facilidade com que se aproximaram. E a sensação acabou sendo extremamente reconfortante. No início, sabiam um do outro pelos próprios pais, que levaram um tempo até notarem o afastamento dos filhos.

“Eles eram amigos de infância” pensou a mãe de Ricardo após perceber a relação dos meninos estremecer. Mas, com a perda do trabalho do marido, a mudança de bairro e o preço da gasolina, também era difícil manter a mesma rotina de antes. As viagens haviam acabado, os encontros de final de semana ficaram cada vez mais raros e cumprimentos constrangidos nas reuniões de pais e mestres tornavam-se relativamente sufocantes. Ela sabia que os adultos também haviam se afastado. Mas ela já havia passado por isso outras vezes. Era assim: as relações começavam, se estreitavam, e eram desfeitas. Às vezes lentamente e outras de maneira repentina.

“Nós éramos amigos de infância”, pensava Ricardo com frequência. Pontadas pungentes de amargor que se espalharam como ervas daninhas rodeavam sua mente quando a imagem de Vinicius surgia em sua memória. Enquanto cresciam juntos, ele havia se acostumado a comparar-se com o outro para ter uma dimensão de seu lugar no mundo. E essas comparações eram feitas de contrastes sólidos e nítidos. Ricardo era calado, soturno e indiferente. Assim, Vinicius era falante, solar e afetuoso. Ricardo era mais baixo, rechonchudo e com braços finos. Isso significava que Vinicius era alto, esbelto e com membros superiores bem definidos. Ele sempre seria pior, pois Vinícius o superava em tudo.

Mesmo quando eram amigos de infância, Ricardo já havia percebido que nunca tinha gostado de Vinicius. Não verdadeiramente. Sentia algo diferente. Prestava uma atenção constante nos movimentos que ele fazia. Observava o sorriso que o garoto despertava nas pessoas ao redor e sentia uma dor profunda a cada elogio que ele recebia. Essa dor lhe lembrava a sensação de uma ferida aberta e ardente, como a que teve na primeira vez que caiu ao tentar andar de bicicleta. Era perguntar-se do porquê que não tinha o mesmo formato da boca do outro, seus dentes retos ou a cor dos olhos. Todos os dias existia algo novo para descobrir, decifrar e devorar sobre ele. Todas as formas como Vinícius era melhor do que ele. A superioridade que possuía. Chegava a ser inebriante. E foi durante o afastamento que ele esteve mais próximo de Vinicius do que nunca.

“Eu fui seu amigo de infância”, pensava Ricardo já durante sua adolescência, tendo mudado de colégio e acompanhado as mudanças na vida de Vinicius e sua família à distância. Toda noite antes de dormir, ele repassava as novas informações que encontrava do jovem. Era um ritual prazeroso que não dividia com ninguém. Era como saborear algo delicioso, porém proibido. O ato solene de sentir-se inferior em comparação à Vinicius. Doce como chocolate, envolto em uma embalagem dourada, despido lentamente. O agradável som do tablete sendo rompido entre os dedos, a tomada do paladar pela doçura do açúcar que sobe rápido pelo corpo e acaricia o cérebro em uma espécie de orgasmo.

“Ele é meu amigo de infância” dizia Ricardo com frequência quando via a imagem de Vinicius refletida em luminosos outdoors pela cidade. Inicialmente como modelo, estampando propagandas de perfumes, vestuário e relógios. Depois como ator em grandes produções, vencendo prêmios, quebrando recordes, sendo exaustivamente mencionado nas redes sociais e canais de televisão. Não existia uma pessoa na Terra que não desejasse ser como aquela estrela. Com o passar dos anos e seu sucesso meteórico em contínua ascensão, a resposta das pessoas ao ouvirem falar do vínculo iam da surpresa à total descrença.

“Eu sou seu amigo de infância”, disse Ricardo em frente a portaria do luxuoso prédio na região com o metro quadrado mais caro do país após a verificação de sua documentação. Ele sentou-se no hall amplo e minimalista, com uma caixa de presente embalada por uma fita. Após horas que pareciam infinitas, muitas trocas de informações entre a equipe de segurança e certa insistência do porteiro, sensibilizado com a persistência de Ricardo, ele foi liberado para subir.

“Meu amigo de infância”, exclamou Vinicius ao ver a expressão assustada daquele homem em sua frente. Trocaram um aperto de mão desconfortável e, enquanto um funcionário dava espaço para Ricardo passar pela porta, Vinicius havia percebido que não pensava naquele menino há, pelo menos, três décadas. O que teria sido dele? O que havia feito durante todos aqueles anos? Com o que trabalhava? Casou-se? Teve filhos? Percebeu que, verdadeiramente, não se importava com a resposta daquelas perguntas. Olhou para a caixa de presente que o outro trazia nas mãos. O desconforto aumentou. Rasgou a fita, que deslizou por suas pernas e caiu ao chão. Era um retrato. Os dois, ao lado dos seus pais, em frente a entrada do Zoológico de Buenos Aires. Trinta e sete anos atrás. Sorriu com pesar e sentiu um leve formigamento deslizar por seu peito. Seus pais haviam morrido há anos, mas a lembrança ainda trazia certa dor.

“Hoje em dia ninguém acredita que éramos amigos de infância”, disse Ricardo, destacando que quanto mais famoso, rico e influente Vinicius ficava, mais difícil era para qualquer um imaginá-los como amigos. Gesticulando, Vinicius agradeceu o presente, enquanto o funcionário que abriu a porta surgiu para servir o café da tarde. Era como se um som estático tomasse conta do ambiente. Ricardo falava que o café servido era tailândes, um dos mais caros do mundo e Ricardo tinha dificuldade para se concentrar enquanto ouvia sobre o processo de fermentação dos grãos que resultaram naquele líquido escuro despejado diante de seus olhos. Escutava um zumbido cada vez mais alto. Teve que se segurar para não levar as mãos em direção aos ouvidos, enquanto o chiado ia aumentando. Cada vez mais alto. Mais intenso.

“Meu amigo de infância”, pensou Ricardo enquanto se atirava em cima do corpo de Vinicius, com as mãos estendidas. Vinicius levou algum tempo para processar a surpresa vinda com o peso do corpo de Ricardo sobre o seu e a sensação de ardor na garganta. Sua faringe estava furada com um círculo aberto pingando. O sangue grosso e escuro saia em jatos rápidos como uma cachoeira. Tentou se desvencilhar do corpo flácido que o cobria, mas perdia as forças pouco a pouco e, antes de fechar os olhos e ficar inerte, viu o brilho de prazer nos olhos de Ricardo pela última vez.

“(...) Vinicius Mendes foi assassinado em sua casa por um amigo de infância. O crime que aconteceu ontem chocou o país e trazemos as últimas novidades do caso (...)” as palavras ecoavam de um aparelho de televisão localizado em uma delegacia no centro da cidade. Na sala ao lado, o delegado já estava sem paciência para o interrogatório. O homem em sua frente estava totalmente calado e aparentava passar por uma espécie de choque. Os funcionários da casa do ator chamaram a polícia após Ricardo ter sido imobilizado por dois seguranças, urrando como um animal ferido.

Vinicius havia sido assassinado por seu amigo de infância com o uso de uma pequena faca pontiaguda encontrada na mesa de café. Como ficaram alguns minutos na sala trancada, o criminoso teve tempo suficiente para cortar partes do rosto da vítima. Após o arrombamento da porta da sala em que estavam, dois seguranças encontraram o ator com o rosto esfolado. O visitante estampava um sorriso sinistro enquanto posicionava os pedaços de pele em sua própria face. Desde a chegada ao distrito policial nem a utilização de psicólogos havia surtido algum efeito para ele falar algo. Quando tudo parecia seguir o mesmo ritmo, o silêncio foi quebrado por uma leve tosse. O delegado se aproximou, extremamente atento ao que ele estava prestes a dizer. Então, a voz fina do homem gorducho disse:

“Nós éramos amigos de infância”.

Conto escrito por
Rafael Navarro

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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