No
capítulo anterior, Drica e Tiana cuidam dos corpos dos rapazes enquanto Imã e
Belchior se transportam para encontrar Rui e Carlito. No mundo das máquinas Rui
convence a matriz a devolver as cirandas. Mas, Carlito sumiu.
CAPÍTULO 11 - A DRICA ESTÁ LÁ
Escuridão,
tudo está escuro e frio. O cenário não podia ser mais hostil, o vento, que
arranha a pele, parece sussurrar gritos desesperados no ouvido. Nada pode ser
mais assustador para alguém do que acordar num ambiente praticamente sem vida.
É como se não houvesse céu ou chão, apesar da sensação gelada que sobe pelas
pernas. O jovem Carlito tenta acostumar os olhos à pouca luminosidade, se
esforça para não ceder ao medo que a imaginação está criando.
O
solo não é firme, ao contrário, parece granulado, como se fosse areia, mas não
é fofo o suficiente para afundar com o peso do corpo, o que é bom sinal. Os
ecos dos gritos assustam, a impressão é que existem criaturas por todos os
lados, o problema é que não dá para se fixar em nenhuma referência e essa
sensação é inquietante. Por mais que tente, não consegue ignorar a situação.
Mas sem encontrar nenhum lugar que possa servir de abrigo, ele decide caminhar
“pra quem tá perdido, qualquer caminho
serve”, pensa.
Os
olhos começam a lacrimejar, a respiração fica ofegante e o coração parece
explodir no peito, “o que virá em
seguida?” o choro diante do que é temeroso seria até uma reação natural,
mas Carlito se obriga a manter a postura, não se perdoa momentos de fraqueza,
um líder não pode recuar diante das dificuldades. “Líder de quê, ou de quem?” se questiona, é o momento em que o jovem
se dá conta da solidão. “Continue,
Carlito, continue andando, não é parado que chegarei em algum lugar.”
Imã
surge na porta do escritório, Drica e Tiana se assustam com a menina.
—
Ajudem aqui, preciso levantar o Rui.
—
Graças a Deus, como você está? — Tiana abraça Imã.
—
Estou bem tia, quanto tempo fiquei fora?
Drica
consulta o relógio.
—
Pouca coisa, acho que não chegou a dez minutos.
—
Que bom, fiquei assustada quando vi o soro espetado no braço dos meninos.
Rui
também acorda e Belchior o ajuda a se levantar, enquanto isso Tiana se adianta
para a copa.
—
Caramba, só dez minutos? Eu jurava que tinha ficado uma vida inteira...
—
Não, Rui, a gente tava falando da Imã, você e Carlito estão nessa viagem desde
ontem... — Drica esclarece, mas estranha uma ausência — Por que o Carlito não
acordou?
—
Ele sumiu assim que eu e o senhor Belchior surgimos. — Imã responde.
—
Putz! O C3 ainda tá perdido. — Rui retira o soro do braço. — Pô, tô com a maior
fome, será que dá pra comer alguma coisa antes de...
—
Rui, você vai comer e voltar pra sua casa. — Imã puxa a ciranda da mão do
amigo.
—
Venham meninos, já arrumei a mesa! — Tiana chama da copa.
—
Vão na frente que eu quero ver minha mãe. Vem comigo senhor Belchior — Imã se
separa.
Rui
vai para copa, mas antes adverte.
—
Você não vai entrar nessa sem mim. É meu amigo e eu quero ajudar.
Drica
mete a mão no bolso.
—
Toma aqui, Rui, liga pro seu irmão que ele tá doido atrás de você.
Belchior
olha para Drica desconfiado, Rui apanha o aparelho celular e olha para a tela.
—
Rui, fala aí onde você esteve? — Drica se senta ao lado curiosa.
—
Caraca, por onde começo? Depois que você foi atrás da Imã naquele mundo que
parece o Paraíso...
—
Ah, lembrei, conta.
—
Apareci num lugar escurão, mas logo percebi que era debaixo d’água, foi uma
loucura. O C3 tava meio perdido, boiando sem saber o que fazer, aí eu encontrei
com ele e foi incrível, a gente disputava corrida de nadar...
—
Peraí, vocês respiravam igual peixe?
—
É, é, nem precisei muito esforço, você tinha que ver a cara do C3 segurando a
respiração, eu disse ‘cara, é só soltar o ar e ser feliz’.
—
Brincou!
—
Num tô falando? E tem mais...
—
O quê?
—
Eu tinha poderes de força. Soltava raios pelos punhos.
—
Não!
—
Num tô mentindo, juro. Eu derrubei um caramuru.
—
Quê isso?
—
Um bichão maior do que baleia e eu enfrentei só no braço.
—
E a Tiana?
—
Ah, minha filha, eu já surgi dentro do bucho dele, mas fiquei quietinha lá.
Sabia que esses meninos iam me encontrar.
—
Caramba, mas só você tinha poderes Rui?
—
O poder do C3 era falar com os potiwares.
—
“Potiwares”?
—
Um povo cabeça-de-camarão que vivia com medo do caramuru.
—
Wow!
—
Quando achamos a dona Tiana a gente ia voltar pra cá, mas aí apareceu um clarão
e a gente se separou. Dona Tiana sumiu e eu e C3 fomos parar no mundo das IAs.
Pera aí, como é que a Imã conseguiu nos encontrar lá?
—
Ah, a gente deu um jeito. — Drica disfarça.
Rui
olha em volta.
—
Cadê a Imã e o Belchior?
De
volta a outra interdimensão, Carlito brinca com a memória: “Quem já interpretou a Mulher-Gato no cinema?
Julie Newmar, Lee Menwether, Ertha kitty, Michelle Pfifer, Anne Hathaway,
Camren Bicondova a última foi a Zoe Kravitz... não, eu me recuso a incluir a
Halley Barry... aquilo foi mais Chitara do que Selina.” Assim ele se
esforça para não sucumbir ao medo, pois já está bom tempo caminhando e não quer
nem saber se está andando em círculos, a intenção é não ficar parado.
Sua
visão já se adaptou a pouca luminosidade e consegue vislumbrar alguns metros à
frente, o que mais incomoda é o vento constante. A invulnerabilidade que teve
nos mundos visitados lhe dá coragem suficiente para avançar. Entretanto a falta
de seres vivos, ou mesmo um ponto que indicasse civilização, o deixa inquieto.
Até então sempre encontrou alguma forma de vida, até no mundo das máquinas, não
era vida orgânica, mas era vida. Esse mundo tem somente chão, céu escuro e o
vento, o que o obrigou a levantar a gola da camisa para tampar o nariz e a
boca. Usa a mão para proteger os olhos da poeira. Até o momento não dá para
dizer se é bom ou mau.
De
vez em quando coloca a mão no bolso da calça e pega a ciranda.
—
Então, o que vai ser? Vai me tirar daqui pra outro mundo doido ou me levar pra
casa?
O
som da própria voz o conforta. Já tentou acionar a ciranda várias vezes, mas
não teve sucesso.
—
O que você quer, afinal? Que eu me descabele? Como é que você funciona, droga!
Ao
sentir os pés sobre uma superfície mais endurecida, Carlito se abaixa para
verificar o chão com a mão, consegue retirar um pouco da areia e encontra algo
parecido com asfalto. Ao olhar para frente, consegue identificar sombras de
escombros. Instintivamente caminha com cautela, as construções lembram grandes
cupinzeiros, ainda assim o aspecto é de que o lugar sofreu algum ataque bélico.
“Definitivamente, teve uma guerra.”
—
Então, senhora Ciranda, onde me colocou agora? — arrisca um contato — Alô, tem
alguém por aqui?
O
vento parece respondê-lo, o ar torna-se quente e abafado.
—
É, senhora Ciranda, acho que somos só nós dois. O que será que aconteceu?
Carlito
entra em uma das cavidades e o que vê o apavora, estão impressas nas paredes as
sombras do que poderiam ter sido formas de vida, ao voltar para o lado externo,
ele se fixa novamente nos muros e fachadas, reconhece as mesmas marcas. “Seria uma bomba nuclear?” As marcas
escuras sugerem que havia muitas criaturas e ali foi um centro urbano, mas
todos desapareceram repentinamente.
É
claro que o conhecimento do jovem Carlito sobre o assunto é superficial, mas
rapidamente o cenário se transforma num filme de terror em sua mente. “Esse mundo foi destruído pela guerra?”
questiona.
Os
escombros em posições regulares denunciam uma estrutura cosmopolita e pelo
visto muito populosa, mas a imagem da explosão lhe causa repulsa. Sem perceber,
Carlito começa a sentir tontura e vertigem, pois ficou impressionado. Em sua
imaginação, contempla milhares de vidas perdidas, sucumbindo em agonia, peles
queimando, crianças gritando, o desespero ao olhar para o céu e ver o destino
caindo como um meteoro artificial, enviado pelo ódio entre semelhantes, suas
vidas e lares destruídos sem a menor possibilidade de defesa.
As
guerras vão muito além dos campos de batalhas ou guerreiros sedentos por sangue
e morte, a guerra também atinge cidades e mata inocentes, os mesmos inocentes
que deveriam ser defendidos pelos soldados. Pela primeira vez na vida, Carlito
se depara com a parte oculta da guerra. Aquelas sombras estampadas nas paredes
das elevações são testemunhas de vidas que foram interrompidas, sonhos
desfeitos, futuros que não tiveram chance de acontecer.
Não
dá para dizer se é o medo, ou se é o sentimento de solidão e abandono, que
assola o jovem viajante, deixando-o mortalmente abalado. A verdade é que não dá
para ignorar a dor pungente no peito. Dessa vez não consegue segurar, Carlito
chora.
Após
algum tempo se consumindo de remorsos, um barulho chama sua atenção, Carlito
levanta, secando os olhos com as mangas da camisa e se dirige ao suposto ponto
de onde veio o som. Os passos são lentos, mas firmes, o rapaz está disposto a
enfrentar o que aparecer à sua frente, tal o sentimento de revolta que o
encoraja.
Mas,
assim que circula uma das elevações suas pernas congelam, o que vê supera
qualquer pesadelo que já teve. Dezenas de criaturas deformadas estão
perambulando pelas ruas e revirando os escombros. O horror que se concretiza
diante de seus olhos, o fazem recuar cautelosamente para não chamar atenção.
Apesar do pavor, Carlito se esforça para manter o controle, o coração volta a
palpitar forte em seu peito, o ar sufoca na garganta, um filete de suor escorre
da testa. Em princípio, as criaturas não parecem tê-lo percebido, mas quando um
deles volta o que seria o rosto em sua direção, o semblante sem olhos e a boca
escancarada, com caninos protuberantes, indicam que as intenções das criaturas
não devem ser amistosas.
Do
meio deles saltam vários mutantes correndo em sua direção, o instinto de
sobrevivência o obriga a reagir instantaneamente, correndo para longe do lugar.
Carlito não espera para entender a situação, apenas quer continuar vivo.
Enquanto corre alucinadamente, coloca a mão no bolso e apanha a ciranda, se
concentra nela, mas se choca violentamente contra um corpo parado à sua frente.
Carlito é levantado no ar como se fosse uma simples folha de papel.
A
criatura o agarra pela cabeça, fazendo o rapaz gritar de dor. Aproxima-se de
seu rosto e cheira todo o corpo como se quisesse reconhecer a presa. Depois que
perceber a imobilidade da presa, joga Carlito para o canto.
Ao
bater a cabeça no chão, a última coisa que Carlito vê, são dezenas de criaturas
se precipitando sobre ele.
No
nosso mundo os jovens estão discutindo.
—
Pô, sacanagem isso que a Imã fez! — Rui se levanta indignado.
—
Rui, ela tá certa, você precisa ir em casa, seus pais devem estar aflitos
contigo.
—
Ah, que nada, eu disse a eles que ia passar uns dias com o C3, tá tranquilo.
Rui
e Drica vão até o escritório, ao chegarem encontram Imã deitada ao lado do
Carlito. O rapaz não parece bem, sua testa está quente e o corpo com pequenos
tremores.
—
Cara, o que deve tá rolando?
—
Não faço ideia, mas a situação não deve tá boa, não.
—
E o que a gente faz Drica? O que?
Tiana
chega por trás dos jovens.
—
Agora vocês não podem fazer nada. Se insistirem em ir atrás deles é capaz de
piorar as coisas. Vamos acreditar que a Imã vai conseguir trazer seu amigo de
volta.
Uma
voz chama pela Tiana, ela tranca o escritório e volta para o corredor. Drica e
Rui colam os ouvidos na porta.
—
Tiana? Já acordou?
—
Sim, dona Ziza, como você está?
—
Acordei bem... mas, eu estava com tanta dor de cabeça e angustiada. A Imã,
ela... ué cadê minha filha?
—
Não se preocupe com a Imã, eu fui lá no escritório e cuidei dela. Está dormindo
bem. A Drica está lá com ela.
Tiana
leva Ziza para a copa.
—
Ai, tia, é tanta coisa, sabe? Essa decisão com o papai... ele...
—
Que decisão? Vocês precisam ter fé, tudo vai acontecer do jeito que tem que
acontecer.
—
Não sei, está acontecendo muita coisa ao mesmo tempo. Eu e meu marido, a gente…
—
Já disse, tenhamos fé.
Enquanto
isso, Rui e Drica conversam em tom baixo.
—
Drica, a gente precisa fazer alguma coisa, temos que ajudar o C3.
—
Não, Rui, já disse, você vai pra sua casa. Não inventa.
Mas,
Rui não ouve a amiga e começa a vasculhar o escritório.
—
Deve ter alguma ciranda por aqui em algum lugar, deve ter.
—
O que você tá querendo, Rui?
—
Não vou deixar meu parceiro nessa furada. Ele precisa de mim.
Drica
abre a porta.
—
Desculpa, Rui, mas você não me dá alternativa.
Tiana
e Ziza chegam.
—
Quem é esse rapaz?
—
Um amigo da Imã e Drica. — Tiana se aproxima e abraça Rui.
—
E ele já está de saída. — Drica puxa o rapaz.
—
Não, não, dona Tiana, a gente precisa...
—
Não, não precisamos nada, já disse. — Drica não permite que Rui termine. — me
dá esse telefone! Alô... sim, sou eu de novo, vem ao condomínio Bons Ventos
buscar seu irmão, tá aqui enchendo o saco.
Drica desliga e devolve o aparelho sob o olhar furioso de Rui. De repente, um grito arrepia a todos.
M. P . Cândido
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