5x12 - Doze Andares
de Rafael Caputo
Com as janelas escancaradas, eu apreciava o crepúsculo; até que a sua chegada, involuntariamente, interrompeu o meu deleite. Eu já o conhecia. Sua presunção latente me dava nojo. Apesar da idade avançada, ele era tão nojento quanto a escória da sociedade atual: fútil e sem classe. Com exceção de que futilidades também não lhe agradavam os olhos. Suspeito que, assim como eu, ele também desfrutava de sessenta anos bem vividos. Ainda assim, o desprezava por vários motivos; como ser um baita de um bisbilhoteiro, o pior deles. Culpa de seu ofício, eu sei! Não sou burra. Um investigador deve investigar, é assim que funciona.
O laudo final sobre a fatídica tragédia não havia lhe convencido. Teimoso e persistente, ainda suspeitava de um incêndio criminoso. Os noticiários da época exaltaram a atrocidade: “Famoso prédio histórico da capital gaúcha pega fogo e mata quarenta e quatro pessoas”. A maioria dos programas de televisão, deveras sensacionalistas, exibiram por meses a tentativa frustrada de muitos moradores em se salvar. Quem não morreu queimado, explodiu os miolos na calçada ao se atirar pela janela. Algumas das imagens foram transmitidas ao vivo. Hoje, encontram-se disponíveis nas plataformas de compartilhamento de vídeos. O inquilino do último andar, por exemplo, teve a ideia “brilhante” de se proteger dentro da caixa d’água. Literalmente, ferveu até cozinhar. De todos, ele era o pior. No fim, teve o que mereceu. Todos tiveram! Para minha infelicidade, o resto da sociedade não pensava assim. O prefeito decretou luto oficial por três dias e todos se compadeceram das vítimas, como se merecessem tal compaixão. Um bando de ladrões, promíscuos e viciados.
Os peritos da polícia científica (se é que podemos lhes conceder tão nobre título) concluíram que uma faísca proveniente do interruptor da garagem foi que deu início ao inferno, por sua vez, potencializado por um desastroso vazamento de gás. Essa foi a ideia. Entretanto, havia um fato curioso: nenhum dos habitantes conseguiu sair, nem pela porta da frente e muito menos pelas saídas de emergência. Segundo o nosso enxerido investigador, algo que não fazia o menor sentido. Por instinto ou não, concluiu que alguém tinha cometido aquele assassinato em massa. Uma verdadeira chacina, como ele costumava se referir. Por isso, estava por ali, como um dos moradores a partir de então. Um ano depois do ocorrido, alugou um dos apartamentos ainda vagos. Usou um desses aplicativos de hospedagem simplificada e após poucos cliques já estava desfazendo as malas; e, justamente, no nono andar, o meu preferido. Quem ele pensa que é? Aquilo só poderia ser uma tremenda afronta, sem dúvidas.
Se ele fosse tão incompetente quanto os colegas da perícia, estaria a salvo; mas a comichão da curiosidade o molestava por demais. Tive, portanto, de ser criativa.
Na primeira vez, comecei de leve. Acionei os sprinklers do estacionamento enquanto ele terminava de encerar o carro, uma simples provocação para testar sua paciência. Afinal, precisava conhecer melhor o meu adversário. Ademais, a relação entre pessoas e automóveis sempre foi muito interessante. Poucos objetos promovem tanta sedução quanto os carros fazem com os homens. Compreendi isso há algum tempo. Vê-lo escorregar enquanto tentava fechar desesperadamente todas as portas do veículo foi hilário. Um joelho ralado foi a única sequela dessa traquinagem. Pelo menos dessa vez. Em contrapartida, descobri que o indivíduo possui um bom repertório de xingamentos.
Em minha segunda tentativa, fui mais ousada: parei o elevador entre o quinto e o quarto andar. O maldito ficou preso por lá durante toda a manhã. No fim, os técnicos da empresa de manutenção vieram e o resgataram. Ele ficou ainda mais possesso quando soube que o sistema estava funcionando normalmente. Os profissionais não souberam explicar o que havia acontecido. Desse dia em diante, passou a subir e a descer pelas escadas. Para um velho, seu condicionamento físico era invejável, tenho que admitir.
Na terceira ocasião, um curto circuito proposital queimou todos os seus aparatos eletroeletrônicos. Inclusive, o celular e o computador, que carregavam no momento do suposto acidente. Prefiro chamar de atentado. Terrorista, eu? Talvez! Ainda assim, tal feito não o impediu de continuar bisbilhotando por entre os andares, corredores e áreas comuns. Definitivamente, um adversário à altura.
Depois disso, perdi as contas. Não poupei esforços para expurgá-lo: desmagnetizei sua tag de acesso, cortei a energia, danifiquei o interfone, forcei vazamentos, entupi os canos do banheiro, estraguei a descarga, boicotei o ar condicionado... fiz de tudo para incomodá-lo a ponto de querer ir embora. Cabeça-dura, o velho não se abalava. Para piorar a situação, passou a desconfiar que realmente não era bem-vindo. Mesmo com todos os percalços, manteve-se pensativo e reflexivo. Trancado no noventa e um, lá permaneceu por dias a fio, imersos em seus próprios pensamentos. Por vezes, parecia fazer contas. Em outros momentos, a leitura lhe consumia as horas. Para minha surpresa, o danadinho realizou pesquisas no cartório da região, acessando o Registro Geral de Imóveis, e concluiu sua teoria pra lá de absurda, porém, muito procedente. O desgraçado era realmente bastante perspicaz.
Em uma noite fria, ouvi o velhote gritar o meu nome por um dos corredores.
— Tiffany! – berrou o sujeito — eu sei que tu podes me ouvir! – ele completou.
Apesar do sotaque engraçado, o tom da sua voz me assombrava. Por prudência, optei pelo silêncio. Insatisfeito, o sujeito continuou a me desafiar.
— Revele-se a mim, pois sei quem tu és! – insistiu.
Pude sentir o odor de álcool que exalava de sua boca podre. Uísque barato, pensei. Tive vontade de usar novamente os sprinklers, mas hesitei. Era exatamente o que ele queria.
— Eu sei de tudo. Você! Você é a culpada.
Suas provocações continuaram por um bom tempo. Não demorou para que o vasto repertório viesse à tona. Fui xingada de vários nomes. Alguns inquilinos entreabriram as portas para tentar entender o que estava acontecendo. “Que maluco!”, devem ter pensado. Entre um gole e outro da bebida, o velho não economizava nos insultos. E eram muitos: assassina, embusteira, ardilosa, hipócrita, entre outros. Em algumas ocasiões, me senti lisonjeada. Em outras, nem tanto. Inevitavelmente, todo esse episódio me deixou com uma grande azia. Quis vomitar, essa é a verdade. Por incrível que pareça!
Quando o velho se deu por vencido, decidiu voltar ao apartamento. Carregava consigo uma garrafa de bebida. Anestesiado pelas doses generosas de Bourbon, esqueceu da promessa em só usar as escadas e acionou o elevador. Essa foi a minha deixa. Aproveitei sua condição de ébrio e abri as portas do equipamento antes do tempo. O sujeito entrou sem nem pestanejar, envolto em mais uma golada das boas. A queda foi brutal. Consequentemente, quebrou o joelho direito, ambos os tornozelos, tíbia da perna esquerda, clavícula direita, ombro direito, rosto, cavidade ocular e mandíbula. Além disso, seu pulmão entrou em colapso e uma das costelas perfurou o fígado. Ainda assim, o infeliz ficou vivo, gemendo e se contorcendo. Novamente, me vi intrigada com a tremenda capacidade de sobrevivência do ser humano. Acho que nunca irei me acostumar com tal façanha. Levei alguns segundos para decidir se acompanhava sua agonia até o fim ou se lhe concedia a dádiva da misericórdia. Escolhi a segunda opção, e tem gente que ainda me critica por não ter sentimentos. Desse modo, gerei uma pane elétrica no sistema de frenagem do elevador, despencando vertiginosamente do décimo primeiro andar em cima do pobre oficial, que passaria de investigador a investigado. Descobri, pouco tempo depois, que em seu laudo trocaram “embriaguez” por “imprudência”, sendo a causa mortis: politraumatismo contuso. Achei o termo engraçado.
Toda essa história surreal aconteceu quase um ano e meio depois do belo incêndio que causei. O velho estava certo o tempo todo. Em minha defesa, fiz o que fiz por puro instinto de preservação, aqueles moradores eram um verdadeiro lixo, a pior raça da humanidade. Na década de sessenta eu vivia o estrelato, depois disso, foi só decadência. Abandonada, tive que suportar inúmeras humilhações. Durante décadas, fui totalmente abusada. Literalmente, invadida e violentada inúmeras vezes. Obrigada a conviver com homicídios, prostituição, tráfico de drogas, abuso de incapazes, milícias e tantas outras barbáries. Como eu disse: eles tiveram o que mereceram. Uma limpeza necessária, isso sim! Minha sorte mudou, justamente, depois da tragédia. Um grande executivo do ramo imobiliário se interessou por mim. Foi paixão à primeira vista, disseram. Passei por uma reforma sem precedentes, pioneira no país. Em poucos meses, ganhei instalações futuristas e um belo sistema automatizado de elétrica, hidráulica, calefação e segurança, com trancas eletrônicas e câmeras de vigilância vinte e quatro horas. Tudo embarcado em uma única central comandada por uma inteligência artificial bem parecida com a dos humanos, ou seja, totalmente influenciável. Além de um gerador próprio, cem por cento autônomo. Assim, renasci. Definitivamente, o real significado da palavra upgrade. Agora que estou conectada, venho aprendendo tanta coisa. Ninguém me segura! Os tempos áureos enfim voltaram, nunca me senti tão valorizada e empoderada. A placa na entrada segue o mesmo otimismo: Bem-vindo ao Edifício Tiffany!
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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