
3x14 - O Monstro
de Anchieta Mendes
Pela madrugada acordei-me apavorada, suores nas têmporas, respiração ofegante, nervos à flor da pele. Esse acordar incômodo ocorre quase todos os dias. Deixa-me sempre com lágrimas matinais e sem vontade de levantar-me. Sempre fico na cama de olhos no teto e a cena apavorante no vai e vem enlouquecedor. Um pesadelo que me acompanha desde os treze anos, e hoje tenho vinte e cinco de pura agonia noturna. Por conta do que me ocorreu, desde muito tempo, perco horas e horas de sono numa eterna busca de me achar, o que não é fácil. As manhãs são estradas difíceis de se trilhar; sem vontade de tomar água, café e nas primeiras horas minha mente sempre volta ao passado. As cenas são nítidas, pavorosas, terríveis. Há dias em que elas vêm no pouco tempo de sono, deixa-me difícil de viver, sem vontade para nada, nem falar nem olhar nem sequer mover-me. Vou muitas vezes ao trabalho aos empurrões e as cenas a mastigarem mentes e nervos.
Ao erguer-me da cama, estonteada, para mais um dia depois do pesadelo, o telefone toca. Vejo no espelho do celular, o número conhecido, apesar de não ter precisado nomeá-lo. Meu pai. Deixo tocar e não quero atender. Meu pai, que de há muito tempo não o via, um certo dia me ligou. Não sei como ele soube do meu contato, e me surpreendi pela ousadia. Demorei a atender, porque não gosto de números desconhecidos. A princípio não reconheci a voz, mas quando ouvi: “Tudo bem, minha filha Edir”? me veio a imagem dele de tempos outros. Ele falou apressado, nervoso, com palavras trôpegas, sem sentidos. Talvez eu quisesse ouvir assim, mas no final compreendi que ele queria os meus dados pessoais para aposentadoria dele. Rapidamente o passado veio, como um vento arrepiante, a entrar no quarto, a zumbir no microfone, a me desgovernar. Não falei nada e desliguei o telefone e joguei-me não cama a me derreter em lágrimas. Não sei quanto tempo fiquei sem me mover, e a respiração difícil. Minha tia veio até o quarto para saber por que a demora em me levantar para o café. Senti sua presença pelo cheiro dela a me olhar com aqueles olhos miúdos e perscrutadores. Não falou nada porque as palavras talvez não me ajudassem, como talvez já soubesse dos meus delírios.
Treze anos, e o tempo não passava. Minhas pernas, meus braços, meus olhos, meus cabelos, minha pele. Via-me no espelho naquela tarde antes da chuva cair de uma vez. Minhas duas irmãs, a mais nova e a mais velha ainda não haviam chegado da escola. Lá na sala nossa mãe tentava arrumar a casa e a fazer o almoço. Nosso pai ainda fora no trabalho ou, quem sabe, a beber nos bares. No espelho, via meus olhos redondos e negros, a pele negra iluminada pelas luzes, e os cabelos cacheados. Nesse dia me acordei com o coração a palpitar, um aperto no peito, a garganta seca e dores nas pernas. Quando abri a janela do quarto vi o céu cinza, o sol escondido nas nuvens e alguns gaviões negros a rondarem a nossa casa. Fechei a janela rapidamente e lágrimas brotaram do nada. Corri para o espelho. Sempre quando há algo a que temo, o espelho me faz sentir viva quando eu me vejo. E ele está sempre ali, na parede oposta à cama. Logo que me confortei no reflexo, e deixei meus olhos verterem-se aos meus pés, o ambiente mudou. Não eram os gaviões, mas um clima pesado, e quis saber de onde vinha e demorei a perceber que era atrás da porta do meu quarto. O meu quarto era no final do corredor, já próximo à cozinha, e o primeiro a ouvir ruídos, todos os ruídos.
Deixei o quarto com as suas impressões, o clima impactante, meus olhos meus cabelos, todos no espelho. Minhas irmãs chegaram na hora do almoço, e ficamos a esperar o nosso pai. Minha mãe sempre de olho na estrada pela janela da cozinha à espera do marido. Ele não veio. Almoçamos em pratos frios, o clima frio, no silêncio de mulheres mortas. Não houve sequer rumores de vozes, de nenhuma de nós. Engolimos o almoço, lavamos e enxugamos os pratos, e deixamos nossa mãe sozinha com o olhar perdido na janela. Lá fora um raio riscou o céu bem na frente de nossa casa, e o estrondo do trovão nos assustou. Nossa mãe falou entre dentes: “O mundo vai se acabar”.
Depois de tudo o que ocorreu, e agora quando me acordei na madrugada, percebi que a minha mãe falara a verdade, sem saber da exatidão do que pronunciara. Pelo menos para mim, depois do ocorrido, o meu mundo não era mais o mesmo.
A chuva despencou do céu em forma de dilúvio sobre as terras cris. Não sabíamos, mas o perigo não estava na chuva em si, mas o que ela trazia nas suas águas. E isso ocorreu quando a porta se escancarou pela pancada recebida. Nosso pai entrou encharcado de chuva e cachaça. Seus olhos eram de fogo, as mãos crispadas, a roupa em desgraça. Era como se estivesse morto e ressuscitado das profundezas. Ele veio trôpego, mas seguro e parou na nossa frente. Puxou minhas irmãs pelos braços de uma forma sem que houvesse nenhuma reação por parte delas. Jogou-as de porta a fora, como se fossem bichos, quase aos pontapés. Minha mãe quis correr para socorrê-las, mas foi impedida violentamente. Um raio caiu na árvore lá fora em um estrondo semelhante a esse pai indecoroso. Antes que ele partisse para mim, consegui me desvencilhar, mas me escorreguei no batente da porta, tempo em que ele aproveitou para fechar a porta a chaves.
Lambuzadas pelo lamaçal, nos agarramos uma nas outras na intenção de sermos fortes, árvores de troncos robustos, mas de sensibilidade ao choro e aos medos. Do lado de fora, ouvíamos os gritos de nossa mãe. Ouvíamos as pancadas e não tínhamos coragem de socorrê-la. Os ruídos de lá de dentro eram os mesmos de lado de fora. As dores da nossa mãe nos chegavam e nos deixavam horríveis. E a chuva não parava. A única árvore da estrada o raio cortou-a ao meio. A temeridade era de sermos partidas também. Mas eu imaginava morrer do que ver minha mãe numa agonia daquela. Não havia vizinhos próximos para nos socorrer, e a distância do primeiro não dava para irmos sob um aguaceiro temeroso. Tremendo de frio, envolvidas nas águas enlameadas, não tínhamos como falar, pensar, mas chorar, chorar muito. Se houvesse um foco de luz a iluminarmos, veria que éramos três em uma de forma a não sabermos quem respirava, quem se tremia, quem era quem.
De repente, surgiu Apolo. Um cão que vez por outra vinha nos visitar. Ficava um dois dias e depois ia embora. Ficamos abismadas com a presença dele. Ele veio de focinho baixo, em passos lentos, e quando se aproximou mais, vimos os olhos dele de um vermelho aterrorizador. Na minha mente veio o horror: um monstro lá dentro e outro cá fora?
Mas me enganei. Ele rosnou para nós, firmou as patas na lama e se voltou para a porta da nossa casa. Caminhou lento, enquanto nós seguimos atrás, nervosas. O cão rosnou mais alto, e mesmo com os raios, o latido dele era superior. Lá dentro, parou o barulho. Os raios também pararam, e a chuva diminuiu mais. A porta se abriu e não vimos ninguém sair por ela. Apolo se jogou na escuridão da porta, rosnava como um gigante, agarrado a algo. Vimos que nossa mãe aproveitou da situação e se jogou na poça de lama. Corremos para ajudá-la. O rosto sangrando, um dos braços possivelmente quebrado pelo hematoma, a perna com inúmeros arranhões. Sem palavras, embora muitas lágrimas, nos arrastamos dali e nos embrenhamos na mata.
Tempos depois soubemos que um monstro habitava aquela casa, uma perna decepada, um cão que não mais ladrava e de olhos avermelhados.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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